ÍNDIOS DO MUNICÍPIO DO TARAUACÁ
Seus costumes e medidas eficazes para sua civilização
A Reforma (21 de maio de 1922, Ano V, Num.204)
Seus costumes e medidas eficazes para sua civilização
A Reforma (21 de maio de 1922, Ano V, Num.204)
Felizardo Avelino de Cerqueira,
Aos 40 anos de idade.
in IGLESIAS, Marcelo Piedrafita. Os Kaxinawá de Felizardo: correrias, trabalho e civilização no Alto Juruá. Brasília: Paralelo 15, 2010. p.528 |
No intuito louvável de proteger, civilizar e
tornar também verdadeiramente dignos do nome de brasileiros os nossos aborígenes,
o governo tem despendido grandes somas, criando inspetorias e postos indígenas
cujos benefícios infelizmente ainda não chegaram até nós.
O Tarauacá, sobretudo, perto de suas
nascentes, conta com um grande número de tribos selvagens, mas completamente
bravias, outras semicivilizadas, que, com relativa harmonia, têm pouco e pouco
se habituado a conviver conosco, sem contudo abandonarem as suas crenças, os
seus costumes.
Entre os últimos podemos mencionar os
Jaminauás e os Caxinauás, espalhados desde o seringal “Primavera” até as
cabeceiras do rio Jordão, no seringal “Revisão”, onde um grande núcleo de mais
de 400 silvícolas, chefiado pelo destemido cearense Felizardo Avelino
Cerqueira, guarda os seringais circunvizinhos contra os ataques traiçoeiros das
tribos selvagens.
Ainda há pouco mais de três anos os seringais
do Alto Embira, Muru, Tarauacá e Jordão, eram constantemente roubados e algumas
vezes massacrados por esses temíveis filhos das selvas, insaciáveis vingadores
dos seus irmãos surpreendidos e mortos por seringueiros imprudentes.
Querendo evitar esses lamentáveis
acontecimentos, alguns proprietários e dentre esses o malogrado tenente-coronel
José Xavier Maia, convidaram o intrépido bandeirante Felizardo Cerqueira para,
com seus índios semidomesticados, pacificar as rancorosas tribos que em número
avultado habitavam nas florestas virgens, nos limites do Brasil e Peru.
Felizardo veio então residir nas margens do rio Jordão, onde em pouco tempo o
braço do selvagem abriu vastos claros na mata inculta, em que construíram os
seus primitivos cupichauas e onde hoje não lhes falta o milho, nem a banana, nem
a macaxeira, nem o amendoim.
Bastou a simples presença de Felizardo para
que o seringueiro pudesse tratar tranquilamente de sua vida tão dificultada
agora pela desvalorização do seu único produto.
No laconismo, porém, do telégrafo veio a
desoladora notícia que devia entristecer todos aqueles que conheceram em vida a
lhaneza do tratado e o caráter impoluto do velho pioneiro destas paragens que
se chamou José Xavier Maia.
Em Felizardo a notícia produzia profundo
golpe, desalentando-o a ponto de querer, com a perda de seu protetor, abandonar
as terras fertilíssimas do Jordão onde encontrou hospitalidade franca e
generosa, oferecida pelo seu desventurado amigo e companheiro.
ÍNDIOS DO MUNICÍPIO DO TARAUACÁ (continuação)
Seus costumes e
medidas eficazes para sua civilização
A Reforma (28 de maio
de 1922, Ano V, Num. 205)
E a retirada de Felizardo para o Ucayali
importa numa completa desorganização da extração do produto elástico não só no
alto Tarauacá, mas também nas cabeceiras de seus maiores afluentes.
Os caxinauás, conquanto ainda conservam
alguns de seus bárbaros costumes, prestam-nos relevantes serviços, se bem que
grande parte de sua energia se perca por falta dos mais rudimentares
ensinamentos de civilização.
São ainda antropófagos, disse-nos o próprio
Felizardo, com um indiferentismo que nos levou a perguntar-lhe, com certa
admiração, a razão porque ele, verdadeiro super-homem para os indígenas, não
lhes proibia tão repugnante prova de selvagismo!...
Respondeu-nos com tranquilidade imperturbável
de quem tem a certeza de justificar suficientemente a desarrazoada admiração na
qual ele bem compreendeu a forma discreta de uma censura.
“Vivo há dezessete anos com os selvagens e
lhes não desconheço a arraigada superstição conservada através dos anos com o
maior zelo e cuidado.
Os Caxinauás são antropófagos porque comem os
que morrem por um princípio religioso; creem na existência do espírito (uchi,
como eles chamam) do qual eles tem um terror pânico e, o meio de evitar,
segundo a superstição indígena, a vinda desses terríveis espíritos da floresta
é devorar os que morrem para que devorados também fiquem seus espíritos.
A princípio mandava sepultar os mortos;
tempos depois cheguei a saber que eram desenterrados e comidos com o mesmo
extravagante apetite.
Outra coisa principal é o pensarem ser uma
prova de distinção e estima, pois só os da própria tribo merecem tão esquisito tributo.
Um dia, alguns anos passados, quis ser
testemunha ocular deste impressionante canibalismo e, contando com o respeito
veneração que me dedicam, demonstrei vontade inabalável de assistir a prática
deste preceito.
O sol tinha desaparecido de trás da espessa
folhagem da mata. Sobre uma enxerga de folhas de jarina, jazia o magro cadáver
de uma velha selvagem que o peso dos anos quase lhe mumificara o alquebrado
organismo.
Um alarido infernal de gritos e lamentações,
gemidos e cantos, pouco antes interrompido com minha entrada súbita, ecoava ao
longe onde a acauã, no ninho, soltava seus cantos estridentes.
Um, com um grande machado, abria os toros de
madeira cujas achas jogava para um montão de lenha; outro, com enorme facão
começara a desarticular os membros da vítima, a qual, sem braços nem pernas,
foi colocada dentro de uma grande panela de barro, adrede preparada, sob um fogão
improvisado, tendo os braços e pernas sido postos à guisa de calços ao lado do
tronco.
...Uma pequena porção d’água foi derramada dentro da panela de barro, sobre a qual foi emborcada uma outra também de grande tamanho. Vai ter iniciado a cerimônia. Os selvagens todos, ornamentados e armados, começaram a dançar, a chorar e cantar em torno da colossal panela já envolvida por altas labaredas, alimentadas de quando em quando.
ÍNDIOS DO MUNICÍPIO DO TARAUACÁ (continuação)
Seus costumes e
medidas eficazes para sua civilização
A Reforma (4 de junho de 1922, Ano V, Num.
206)
...Uma pequena porção d’água foi derramada dentro da panela de barro, sobre a qual foi emborcada uma outra também de grande tamanho. Vai ter iniciado a cerimônia. Os selvagens todos, ornamentados e armados, começaram a dançar, a chorar e cantar em torno da colossal panela já envolvida por altas labaredas, alimentadas de quando em quando.
Pouco a pouco um cheiro impertinente da carne
que cozia lentamente e se espalhava no ambiente do cupichaua.
Meia noite. E aquela dança macabra não
termina; e aqueles cantos monótonos não cessam; e aquele cheiro repugnante não
passa.
Recostei-me fatigado numa maqueira e fingi dormir. Os cânticos
diminuíram de intensidade e eu percebi que o meu nome era continuada e
disfarçadamente pronunciado... Um ligeiro estremecimento percorreu o meu corpo.
Conheço a gíria dos caxinauás e compreendi que repetiam sem cessar – vê-se ele
dorme, olha com cuidado – e um coro sinistro respondia – Felizardo, único cariú (civilizado) que havemos de comer.
– Um terror súbito se apodera de mim; vi-me perdido e lembrei-me dos meus;
conheci minha imprudência querendo assistir aquele rito diabólico; quis fugir,
verifiquei a ineficácia disto; procurei raciocinar mais ouvia sem cessar – ele
dorme, aproveitemos – e o coro infernal respondia sempre – Felizardo, único cariú que havemos de comer. – Um misto
de ódio e de medo me enervava os músculos.
Levanto-me e, de um salto, pego no braço do
tuchaua e, de revólver em punho, pergunto porque querem devorar-me. A surpresa
a todos paralisou e o tuchaua,
recuperando a calma, explicou que haviam de comer-me, pois, sendo eu tão bom
para eles, tinha direito a essa homenagem que eles disputariam fosse como fosse
– mas depois de minha morte. Estava explicado o caso, cantavam em meu louvor e
esperavam que eu adormecesse para saborearem a carne já cozida.
Deitei fingi dormir e, momento depois, vi-os,
quais abutres, desesperados, esfaimados, disputando cada qual maior pedaço.
Dez minutos depois, apenas alguns lambiam os
ossos já brancos da infeliz selvagem.
Eis a razão porque ainda não consegui abolir
tão bárbaro costume: é uma superstição e essa domina a razão.
O governo, adiantou-nos Felizardo, a despeito
de ter eu pedido, há muito tempo, um auxílio, ainda não me atendeu e eu, só,
não posso civilizar, educar tão avultado número de selvagens.
Sei, que o Sr. Bento de Lemos, inspetor de
índios, em Manaus, mandou ultimamente para o seu delegado na Foz do Jordão
alguns terçados, machados e roupas feitas para lhes serem distribuídas
gratuitamente.
Assim não se civilizam os selvagens e essa
medida nos traz dois inconvenientes: 1o. Os caxinauás, e em geral
todos os nossos aborígenes, não compreendem que um seja contemplado com um
presente se os outros não forem e se a dádiva não chega para todos surge logo
uma perigosa prevenção. 2o. Porque a primeira necessidade numa
catequese indígena é ensinar-lhes e fazer compreender o valor do trabalho. Os
que recebem sem trabalho o primeiro favor julga ter direito aos demais da mesma
maneira.
Não há necessidade de lhes dar ferramenta
quando se lhes pode vender, embora por um simulacro, permutando-a por seus
produtos.
Os índios não são propriamente preguiçosos.
Visto como eles trabalham o suficiente para terem com abundância o
indispensável na maloca – a alimentação, se mais não trabalham é porque ninguém
lhes compra o produto.
Eles necessitam de escola prática que lhes estimulem o ânimo já habituado a uma relativa indolência que lhes dá a facilidade da vida na floresta.
Eles necessitam de escola prática que lhes estimulem o ânimo já habituado a uma relativa indolência que lhes dá a facilidade da vida na floresta.
O Sr. Ministro da agricultura a quem compete o amparo e civilização desses nossos irmãos bestializados pelas suas circunstâncias, deve volver as suas vistas para esta zona a fim de deslocar os índios semicivilizados de um ponto para outro, único meio, verdadeiramente eficaz para a sua profícua catequese”.
Agora diremos nós:
A prática e a bondade do Sr. Felizardo Cerqueira prestariam inestimáveis serviços para o aproveitamento desses milhar e meio de selvagens que reclama, a proteção e cuidado do governo da nação, neste município.
Eles também são brasileiros e no ano da comemoração do centenário da independência do seu país, eles devem também comemorar a independência de sua energia, escravizada pelo selvagismo que lhes serviu de berço.
Nota: Felizardo Cerqueira era cearense, de Vila Pedra Branca, onde nasceu a 29 de outubro de 1886, tendo chegado ao Rio Tarauacá em 1904. Faleceu no Rio de Janeiro em 1961.
Nota II: atualizamos o texto com a grafia corrente, salvo raras exceções, onde preferimos manter a escrita original.
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