segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

AMAZÔNIA: O DESPERTAR DA FLORESTANIA

João Veras

Os documentários sobre a Amazônia, comumente, quando não se dirigem pela versão do inferno, o fazem pela do paraíso. Em ambas, reduzida: i – ao exotismo “encantador” (ou bizarro) de seus povos, de suas faunas e suas floras; ii – ao espaço atrasado a se conquistar para ser dominado e usufruído; iii – ao patrimônio natural e humano – de valor monetário – a ser explorado… Reduções estas, entre outras, projetadas para justificar a Amazônia como um território selvagem/primitivo a merecer desenvolvimento, progresso e civilização. Estes constituintes de projetos também imagéticos a serviço da ocupação das mentes pela fúria colonizadora secular que o sistema mundo moderno colonial tem empreendido nas américas desde sempre.
No longa brasileiro, Amazônia – O Despertar da Florestania (de Christiane Torloni e Miguel Przwodoswski, 2018), aquela dicotomia parece não se revelar e induz visibilidade a uma outra versão mais contemporânea de documentário “amazônico”. A obra é cinematograficamente sedutora. Plena de imagens, sons e testemunhos-posições sobre a história recente da ocupação/destruição da Amazônia dentro do contexto do debate ambiental nacional e mundial.   Seu percurso narrativo tem como guia os passos das atuações, nos campos da política e do ambientalismo, da atriz Christiane Torloni, o que revela, por todas as escolhas do filme, um caráter autoral à película.
A versão que exsurge parece trazer uma natureza própria de narrativa, desta feita com vistas à salvaguarda de uma Amazônia em seu valor ambiental e também humano/demográfico, o que envolve os seus povos originários, quando busca se justificar por uma das ideias de florestania (cidadania na floresta) como novidade semântica significativa para esta nova perspectiva de narrativa. Mas daí não passa. E daí supõe estar fazendo a diferença – para uma nova e profunda compreensão da questão – quando (sinto que) não.
Tenho a obra como uma crítica limitada/incompleta, carente de profundidade e redutora no que diz respeito às causas/responsabilidades. Todos são unânimes, aliás o filme é de uma só voz, quanto ao fato de que a Amazônia é um território em permanente estado de destruição. No entanto, fica faltando saber (pela sua versão) a quem tanto as vozes responsabilizam sem mostrar “os rostos dos seus algozes”. O “eles” “destruidor” se assenta quase etéreo (refletido no inferno das imagens sem rosto de uma parte da humanidade obscura) encoberto pelo paraíso de desejos utópicos dos “nós” “destruídos”, todavia agarrados, irrefletidamente, à epistemologias-dispositivos de poder e saber – como florestania e sustentabilidade – que só nos orientam na direção da manutenção da condição colonial profunda que, justamente pelas ideias, segue o seu curso histórico-estrutural a nos angustiar/condicionar.

João Veras é autor de Seringalidade, O Estado da Colonialidade na Amazônia e os Condenados da Floresta (Valer, 2017)
Texto publicado originalmente em: cinemadefronteira.com.br

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