quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

FRANCIS MARY: reunião de poemas

Em 1994, a poeta acreana Francis Mary, popular Bruxinha, participou da antologia nacional “Língua Solta: poetas brasileiras dos anos 90”, sob a organização de Beth Fleury. Francis Mary é autora de Aquiri (1982), com ilustrações de Hélio Melo; Gota a Gota (1983), com ilustrações do Dim; A noite em que a lua caiu no açude (1996), Pré-históricas e outros livros (2004), ambos com ilustrações de Danilo de S’Acre; e Gogó de Sola/Flor do Astral (2017). Os poemas, a seguir, foram retirados da antologia “Língua solta”, seção intitulada FILHAS DE TUPÃ, e nos dão uma boa ideia da obra da poeta.


Interior

Uma coisa eu aprendi:
Na minha cidade
tem muitas ruas
tem muitas casas
com muitas portas
muitas janelas
com muitos olhos
e principalmente
muitas línguas p.77


Filha da terra

Eu nasci aqui,
no meio desse mato
me criei.
Nadei no rio,
Bebi água nos igarapés.
Conheço todas as doenças
dessa terra.
Conheço todos os ladrões,
Todos os exploradores.
Conheço todos nós:
filhos da miséria,
irmãos da fome e da miséria. p.78


Filha de Tupã

Brincar nas copas
das árvores
com borboletas, juritis e jaçanãs.
Coração:
sabor coquinho-tucumã.
Correndo nua nas matas
como filha de tupã. p.79


Estela, a brega
Estela naufragava
em vapores de panelas,
cozinhando sonhos
que não eram dela...

Ângela Maria,
no rádio à pilha,
insistia em ser
Cinderela.

A vida borralheira
era de Estela:
noites e dias na janela,
arrastando sua eterna espera. p.80


Lavadeira

Descer e subir barrancos,
lata d’água na cabeça,
roupas para coarar.
Marido bêbado na cama,
filhos na escola da rua
e a vida deixada
na beira do rio. p.81


Boemia

À Chica Toilette

Além do jameleiro,
canções bêbadas
lembram mulheres,
culpadas de tantas
desgraças de amor.

A lua solitária
tem a boca
e o desejo idênticos
à cor do batom
daqueles que a todos
se entregou. p.82


Acreano

Nascido no ventre
da mata,
jogado como alimento
nas vísceras do dragão,
sente na pele a reação –
acariciando o rosto magro
da sobrevivência. p.83


Acrepecuária

Em terra de bobo
quem tem um boi
é rei... p.84


Anjo da Farda

Chô, chô,
Anjo da Farda!
Guarda me lembra a farda
do soldado,
cassetete na mão,
reprimindo a passeata. p.85


Colono

Mãos calejadas
da enxada,
o rosto queimando
ao sol de todo dia,
a ingenuidade analfabética,
o riso desdentado,
sem protocolo
de alegria... p.86


Seu João

Prato branco
sem feijão,
olhos fundos e
solidão
na vida do seu João. p.87


Semente coração

A Wilson Pinheiro

Na minha terra
planta-se corações
e nascem lutas
dessas plantações.
O chão é regado
com sangue
e as balas são sementes
que fazem calos nas mãos. p.88


Cara de Boi

Nas entranhas dessa mata
eu vivi.
Das entranhas dessa mata
foi que eu vim.
Cobra jiboia não me atraiu.
Mapinguari não me expulsou.
Eu corri foi de um bicho feio
com cara de boi. p.89


Seringueiro

Cipós entrelaçados
num abraço eterno,
casas de palha secas
cercadas de vastos quintais:
o seringal.
Cantos de pássaros livres
sobrevoando capoeiras e matagais
e o cheiro da amazônia enchendo
os igarapés.
Castanheiras imponentes
e seringueiras seculares
nos caminhos abertos com facões.
Seringueiro acordando cedo,
lamparina e espingarda pendurada,
penetra o útero de sua mãe
para nascer de novo,
filho da amazônia. p.90


Enchente

Não trago nos bolsos
a palavra mágica
que abra todas as portas
do entendimento
para decifrar o caos
transparente
dessa fase louca de transição.
Colonialismo latente
quer matar minha identidade.
E minha verdade
jorra pelos poros
como sangue quente
que deságua no rio
provocando enchentes. p.91


O Rio

Foi nas margens do rio
que eu te encontrei.
Foi nas águas do rio
que eu te lavei.
Foi nas lendas do rio
que eu me enlevei
e adormeci. p.92


O Boto

Mergulhou em meu cio
deslizando em meus seios
suas mãos de rio.

E eu, sereia seduzida,
Revelei meu segredo
A matrichãs e tambaquis.
Ainda guardo
seu cheiro barrento
que em noites de lua
deságua dentro de mim. p.93


Toma o Teu Coração

Taí, toma o teu coração.
Sem ele não podes viver.
Eu quero só um pedacinho;
distribui a maior parte
com quem quiseres.
Agora me dá o meu.
Fica com um pedacinho.
A outra parte
vou repartir
com todo mundo. p.94


Nada a ver

Não tem nada a ver
minhas lágrimas antárticas,
nem teu mijo coca-cola.

E não me olhe assim
com essa voz impassível
de Jornal Nacional! p.95


Naufrágio

Do caos
da minha cabeça
escapou um náufrago
pelo ouvido... p.96


Borboleta

Borboleta colorida
voando tão graciosa
pousou na minha cabeça
pensando que fosse rosa.
Borboleta, você sabe
que rosa eu não sou,
mas a rosa tem espinhos
que furam como essa dor. p.97


Minguante

Da cuia da lua
a noite despejou estrelas
que beijei

derramou lágrimas
invernosas
que chorei.
Choveu. p.98


Bordado

Mãos velhas
aprisionam
estrelas e luas.

A noite
espreita
o momento exato
de libertar
os astros

deixando vazios
os lençóis
onde crianças safadas
dormem abraçadas
a seus anjos da guarda. p.99


Crepúsculo

Pisadas
compassadas
Batidas
do coração
Vento
beijando o frio
Tempo
fazendo tricô
com o destino
do mundo... p.100


Ilusão

A mariposa,
morta de medo do dia,
procura a luz do sol
na claridade da lâmpada acesa. p.101


MARY, Francis in Língua Solta: poetas brasileiras dos anos 90 / Seleção de textos, Beth Fleury, Celso Cunha Junior e Suzana Vargas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994.

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