Em 1994, a poeta
acreana Francis Mary, popular Bruxinha, participou da antologia nacional “Língua
Solta: poetas brasileiras dos anos 90”, sob a organização de Beth Fleury.
Francis Mary é autora de Aquiri
(1982), com ilustrações de Hélio Melo; Gota
a Gota (1983), com ilustrações do Dim; A
noite em que a lua caiu no açude (1996), Pré-históricas e outros livros (2004), ambos com ilustrações de
Danilo de S’Acre; e Gogó de Sola/Flor do
Astral (2017). Os poemas, a seguir, foram retirados da antologia “Língua
solta”, seção intitulada FILHAS DE TUPÃ, e nos dão uma boa ideia da obra da poeta.
Interior
Na minha cidade
tem muitas ruas
tem muitas casas
com muitas portas
muitas janelas
com muitos olhos
e principalmente
muitas línguas p.77
Filha da terra
Eu nasci aqui,
no meio desse mato
me criei.
Nadei no rio,
Conheço todas as
doenças
dessa terra.
Conheço todos os
ladrões,
Todos os
exploradores.
Conheço todos nós:
filhos da miséria,
irmãos da fome e da
miséria. p.78
Filha de Tupã
Brincar nas copas
das árvores
com borboletas,
juritis e jaçanãs.
Coração:
sabor
coquinho-tucumã.
Correndo nua nas
matas
como filha de tupã.
p.79
Estela, a brega
Estela naufragava
em vapores de
panelas,
cozinhando sonhos
que não eram
dela...
Ângela Maria,
no rádio à pilha,
insistia em ser
Cinderela.
A vida borralheira
era de Estela:
noites e dias na
janela,
arrastando sua
eterna espera. p.80
Lavadeira
Descer e subir
barrancos,
lata d’água na
cabeça,
roupas para coarar.
Marido bêbado na
cama,
filhos na escola da
rua
e a vida deixada
na beira do rio.
p.81
Boemia
À Chica Toilette
Além do jameleiro,
canções bêbadas
lembram mulheres,
culpadas de tantas
desgraças de amor.
A lua solitária
tem a boca
e o desejo
idênticos
à cor do batom
daqueles que a
todos
se entregou. p.82
Acreano
Nascido no ventre
da mata,
jogado como
alimento
nas vísceras do
dragão,
sente na pele a
reação –
acariciando o rosto
magro
da sobrevivência.
p.83
Acrepecuária
Em terra de bobo
quem tem um boi
é rei... p.84
Anjo da Farda
Chô, chô,
Anjo da Farda!
Guarda me lembra a
farda
do soldado,
cassetete na mão,
reprimindo a
passeata. p.85
Colono
Mãos calejadas
da enxada,
o rosto queimando
ao sol de todo dia,
a ingenuidade
analfabética,
o riso desdentado,
sem protocolo
de alegria... p.86
Seu João
Prato branco
sem feijão,
olhos fundos e
solidão
na vida do seu
João. p.87
Semente coração
A Wilson Pinheiro
Na minha terra
planta-se corações
e nascem lutas
dessas plantações.
O chão é regado
com sangue
e as balas são
sementes
que fazem calos nas
mãos. p.88
Cara de Boi
Nas entranhas dessa
mata
eu vivi.
Das entranhas dessa
mata
foi que eu vim.
Cobra jiboia não me
atraiu.
Mapinguari não me
expulsou.
Eu corri foi de um
bicho feio
com cara de boi.
p.89
Seringueiro
Cipós entrelaçados
num abraço eterno,
casas de palha
secas
cercadas de vastos
quintais:
o seringal.
Cantos de pássaros
livres
sobrevoando
capoeiras e matagais
e o cheiro da amazônia
enchendo
os igarapés.
Castanheiras
imponentes
e seringueiras
seculares
nos caminhos
abertos com facões.
Seringueiro
acordando cedo,
lamparina e
espingarda pendurada,
penetra o útero de
sua mãe
para nascer de
novo,
filho da amazônia.
p.90
Enchente
Não trago nos
bolsos
a palavra mágica
que abra todas as
portas
do entendimento
para decifrar o
caos
transparente
dessa fase louca de
transição.
Colonialismo
latente
quer matar minha
identidade.
E minha verdade
jorra pelos poros
como sangue quente
que deságua no rio
provocando
enchentes. p.91
O Rio
Foi nas margens do
rio
que eu te encontrei.
Foi nas águas do
rio
que eu te lavei.
Foi nas lendas do
rio
que eu me enlevei
e adormeci. p.92
O Boto
Mergulhou em meu
cio
deslizando em meus
seios
suas mãos de rio.
E eu, sereia
seduzida,
Revelei meu segredo
A matrichãs e
tambaquis.
Ainda guardo
seu cheiro barrento
que em noites de
lua
deságua dentro de
mim. p.93
Toma o Teu Coração
Taí, toma o teu
coração.
Sem ele não podes
viver.
Eu quero só um
pedacinho;
distribui a maior
parte
com quem quiseres.
Agora me dá o meu.
Fica com um
pedacinho.
A outra parte
vou repartir
com todo mundo.
p.94
Nada a ver
Não tem nada a ver
minhas lágrimas
antárticas,
nem teu mijo
coca-cola.
E não me olhe assim
com essa voz
impassível
de Jornal Nacional!
p.95
Naufrágio
Do caos
da minha cabeça
escapou um náufrago
pelo ouvido... p.96
Borboleta
Borboleta colorida
voando tão graciosa
pousou na minha
cabeça
pensando que fosse
rosa.
Borboleta, você
sabe
que rosa eu não
sou,
mas a rosa tem
espinhos
que furam como essa
dor. p.97
Minguante
Da cuia da lua
a noite despejou
estrelas
que beijei
derramou lágrimas
invernosas
que chorei.
Choveu. p.98
Bordado
Mãos velhas
aprisionam
estrelas e luas.
A noite
espreita
o momento exato
de libertar
os astros
deixando vazios
os lençóis
onde crianças
safadas
dormem abraçadas
a seus anjos da
guarda. p.99
Crepúsculo
Pisadas
compassadas
Batidas
do coração
Vento
beijando o frio
Tempo
fazendo tricô
com o destino
do mundo... p.100
Ilusão
A mariposa,
morta de medo do
dia,
procura a luz do
sol
na claridade da
lâmpada acesa. p.101
MARY, Francis in
Língua Solta: poetas brasileiras dos anos 90 / Seleção de textos, Beth Fleury,
Celso Cunha Junior e Suzana Vargas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994.
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