domingo, 6 de outubro de 2019

BETHO ROCHA: AQUI JAZ... DE BATOM LILÁS

“Ler e escrever, assim como viver, rimam (fácil fácil) com prazer. Esta é a grande vantagem do livro de Betho sobre os livros sisudos ou então, piegas, publicados ultimamente por jovens poetas acreanos. 
Variedade é a palavra de ordem. Tudo é vário no livro: a temática, a abordagem, a forma, o tom ora brincadeira ora seriedade.
Eu gosto das duas coisas: de sorver a poesia do livro como um suco de cupuaçu nessa morosidade de Rio Branco fofoqueira e calorenta; assim como demorar em cada verso para  uma reflexão sobre os avessos do mundo.”
Laélia Rodrigues
in À guisa de apresentação



A vovó
Quando me viu,
Jogou em cima de mim
Histórias, margaridas, lantejoulas
E croketes.
Parecia que tinha ganho um buquet de rosas,
Que nada
Tinha levado era uma sova.
Vinha do fundo das quebradas
Louca e solteira
Fazia firula
Com a boca cheia de espuma.
Olhava para os lados
Com medo de ser currada.
Quando percebeu que eu a procurava
Correu, escorregou, caiu e balbuciou:
– O salto do meu sapato quebrou.
Ficou tão desinchavida coitadinha.
Levantou, arrumou o echarpe,
Retocou a maquiagem, afrouxou o cinto
E finalmente na frente do meu ar imponente,
Ajoelhou-se, benzeu-se, comoveu-me e perguntou:
Cadê, Dr., o papel pra limpar o meu bum-bum,
Que eu fiz cocô!


- - -


Por onde ficaram meus tamancos,
Minhas manias, doce bijoterias?
Aquele azul véu prateado
Que ganhei de aniversário
Em meus quinze anus?
Acho que deixei escorregar pelas cadeiras
No baile de debu...
Tenho um pouco de saudade sim
Aqui, agora, a essa hora
Nesse mundo ao léo
Se peço peixe me sai pastel
Se peço bife me cai o anel.
Por onde ficaram minhas alegrias?
Aquela bluzinha tomara que caia?
Aquele short tomara que tirem?
Meus encantos, minha realidade está assim:
Cansado no espelho mau olhado,
Desanimado, bem quati
......................................
Ah! Vou botar meus sapatos altos
Passar ruge e batom e sair atrás de mim...


- - -


Feito a lua
Saindo dentro da noite
Ele dá as costas
E sai andando
E nem me olha
E nem me vê

Feito a lua
Erguendo-se dentro da noite
Ele vai andando
E nem me olha
E nem me vê

Feito a lua
Sumindo dentro da noite
Ele nem me olha
E nem me vê

Feito a lua
Penetrando no dia
Ele nem me vê

Feito a lua
Ele dorme
Eu levanto
Ele some.


- - -


Os meninos do meu país
Punham-se a soltar
Pepêtas

E por entre capins navalha
Voavam andorinhas
Em busca do mel

Carros subnutridos
Escorregavam nas ruas
Sua cólera

Eu, de pé
Diante da minha casa,
Estava ansioso para que a noite chegasse
E um anjo vadio
Viesse estacionar
O seu cansaço
Sobre o meu cansaço
E dividisse comigo
As aventuras
De uma nova realidade.


- - -


Desabou sobre mim
Uma noite dessas.
E aí,
Bebi frases lindas
Em copos que embriagaram
Milhões de solidão.
Abusei dela
Como um cão
Perambulando por entre ruas
Já desertas
Arranquei de minha alma
Esperança de vida grande
Que nem sabia
Se existiam mais.
Agora,
Mergulhei por inteiro
Dentro de meu peito
E me vi completamente só.


- - -


Fiz de mim,
Uma variedade de coisas.
(Com muito brilho, é muito claro)
Uma mulher maravilhosa,
Solta, orgulhosa, louca,
Debochada e destemida.
Metade de mentiras,
Outras de serpentinas.
Nos dedos ouro e prata.
Na boca pedaços de ferro e lata.
Sorridente, presunçosa e esculhambada.
Um lado de verdade,
Outro de variedades.
As roupas de seda pura,
Na cabeça doce frescura.
Parte gostosura,
Outra pura gordura.
Nos pés Pierre Cardin
Entre as pernas penas de “passarin”.
Rodando gloriosamente a bolsa assim...
Nos motéis e botequins.


- - -


Amanhecemos como pássaros
Baleados.
A noite que passamos
Trocamos:
Confetes,
Serpentinas,
E bofetes...
Beijos mordidos
Versos rasgados
Lençóis amassados.
A tua cara foi ao chão.
A minha cueca,
No teu dedão.
As tuas sandálias,
Nas minhas mãos.
Os meus artelhos,
Comeu ou não?
Legal!
A tua fome, passou então?
Que barato, cara.
Viva a sensação..........


- - -


Deixei meus sapatos altos
Fervendo dentro da panela.
Será que devo sair de saia amarela?
Ou ir para os conchavos do PMDB de chinelos?
Não posso dá muita bandeira,
Se não a vice vai pensar
Que quero o lugar dela.
Acho melhor,
Fazer uma roupa de filé
Botar na cabeça um enfeite qualquer
E entrar o mais rápido possível
Na passarela,
Antes que o governador
Fique morrendo de inveja
E saia fantasiado de gazela
Correndo atrás, aqui da Cinderela.
– Oh! Mai Góde.
Essa minha vida é uma verdadeira novela.
Gostaria tanto de ser uma estrela velha.


- - -


Vou andar
Por entre terras
Ainda não descobertas.
Se não houver amanhã,
Cantarei hoje ao som do silêncio
A minha última canção em vida.
E pelos caminhos transcendentais
De por aí...
Quero estar nu.
Por que a minha alma
Vai entrar no infinito da morte
Na certeza que serei eterno.


- - -


Se fôssemos
Todos muito coloridos
Pintaríamos os lábios de batom
E colocaríamos roupas de papel crepon.
Correríamos sem medo do Projeto Rondon,
Soltando penas
Para o Times registrar.
Mais cedo ou mais tarde
O arraso chegaria
E nós faríamos amor
Em cima da pia.
A maravilhosa noitada de orgia
Seria agonia.

Se fôssemos
Todos muito coloridos
A sina seria filosofia
E a China, utopia.
Aí teríamos um pouco de dau,
Outro de crau...
Tchau lobo mau sem sal cabeça de pau.


- - -


Pus-me diante do espelho
Ui!
Será que sou uma pessoa assim?
Assim, como?
Assim!
Ah! Sim.
É.
Vi algumas penugens na minha cara.
Hum lá vem sujeira.
Vulgarmente chamei-os de barba,
Poderia chamá-los de penas,
Mas ficaria muito bandeira.
Poderia chama-los de plumas,
Mas ficaria muito estrela.
Poderia dizer que era um véu,
Aí teria gosto de fel.
E barba mesmo porque tem gosto de mel.
Continuei olhando pra mim.
Tirei um cravo aqui, uma espinha ali.
Na mesma horinha ficou limpinha
– O que?
– Ora o quê.
A minha carinha.
Passei um pouco de batom.
Gostei não,
Ficou parecendo um pão.
Passei um pouco de rouge.
Gostei sim,
Ficou parecendo um pudim.
Dei um toque no penteado,
A cara ficou igualzinha um tacho.
– Um tacho de que?
– Interessa?
Dei meia volta,
Fiz que ia sair e voltei,
Peguei tudo que tinha na minha frente
E quebrei.
Só não quebrei o espelho
Porque foi o que eu mais gostei.

ROCHA, Betho. Aqui Jaz... De Batom Lilás. Folheto (sem data nem paginação).


BETHO ROCHA (Alberto Antônio Araújo da Rocha) nasceu em 14 de setembro de 1958, em Rio Branco. Após passar temporada no Rio de Janeiro, voltou ao Acre, em fins da década de 1970 e início da década de 1980, e encontrou a cena cultural local em plena efervescência, com vários grupos de teatro amador. Integrou o Grupo Semente e junto a outros integrantes, fundou o espaço Teatro Horta. Abandonando o Teatro Horta, migrou para o SESC, onde deu continuidade ao trabalho. Criou o Grupo Adsabá – Núcleo de Pesquisa Teatral, onde iniciou suas experiências de iluminação e sonorização, chamando a atenção para os valores culturais, políticos e sociais dos povos indígenas. O espetáculo “História de Quirá” foi um grande marco, que nasceu do trabalho de nove anos com os Madija, tendo como o tema o mito da criação, com um inovador jogo de iluminação cênica. Lançou dois livros: “O camicase medroso”, em parceria com Silvio Margarido, e “Aqui Jaz... de Batom Lilás”, ambos na década de 1980. Também foi professor da Universidade Federal do Acre. Foi assassinado em 1º de setembro de 1997, num crime até hoje não elucidado.

2 comentários:

Danilo de S'Acre disse...

Muito bacana, Isaac. O livro postado não está completo, né? É somente uma parte?

Alma Acreana disse...

Sim, Danilo. É uma espécie de "folheto" com alguns poemas dele. Não é daquele livro que ilustra este post. Só tenho esse folheto. Não tenho o livro.