Leila Jalul
Para o Mestre JORGE ARAKEN FARIA DA SILVA, com amor
O Acre era tão feio, tão feio, tão longe, tão longe, que um acreano metido a carioca falou: “Se cu tivesse cu, o Acre era o cu do cu do cu”. Expressão chula, nojenta, descabida e honesta, do seu ponto de vista, pelo menos. Não gostei de repeti-la, mas, se não repeti-la, como expressá-la? Assim foi dito, assim foi escrito. E pronto! Não há em mim qualquer vocação para o escatológico. Para a verdade, isso sim.
Um detalhe é preciso dizer: até hoje, tudo que possui o autor da límpida tradução da terra em que nasceu, tudo o que sua família parasita possui, saiu daqui, ou do cu, como preferir o leitor. E o metido continua aqui, mamando, enganando, se locupletando e todos os “andos” que se possa imaginar. Ingratidão? Não. Oportunismo, carreirismo? Sim.
Mas quero falar mesmo é de um carioca. Recém-formado bacharel, que não pensou nem uma, nem duas, nem três vezes e veio. Veio para ficar. Para estudar, para se firmar na vida, deixando para trás Ipanema, Leblon, Copacabana, princesinha do mar. Nem precisou tomar água barrenta de rio nenhum para ficar, apenas vislumbrou um futuro profissional que almejava.
Uns o julgavam maluco. Não diziam por medo ou respeito, mas o julgavam. Sua inteligência privilegiada, sua capacidade de escrever brincando com as letras, entretextando Castro Alves com Clóvis Bevilácqua, Chico Buarque com Salomão, o Rei David com Amaury Mascaro do Nascimento. Era um escrever fluindo, sem decoreba, na base da citação acertada e encaixada para cada crime, cada caso de amor, cada relatório oficial, maçantes para uns, peças literárias para outros.
Desejoso de aproveitar cada minuto da sua vida operante, cada minuto das suas férias, nunca se recusou a estar em cursos e plateias, com o intuito de aprender. E, nessa busca, foi parar num encontro sobre turismo no Brasil, num tempo que já vai longe, mas não tão longe que não se possa enxergá-lo.
O auditório queria saber sobre Amazônia. Lugar de índios, analfabetos, pobreza, malária e todo um elenco de desgraças. O povo do sul sabia pouco ou quase nada de Brasil. Sabia pouco, ou quase nada até dos lugares onde nasceram. Paulista era paulista. Mineiro comia pão de queijo. Catarinense era alemão. E fim.
No tal encontro sobre turismo, frequentado por futuros agentes de viagens, dispostos a investir numa reluzente fatia de mercado não explorado, e conhecer potenciais, lá estava Jorge Araken.
Pelas intervenções, e que não foram poucas, imagino, pelas variáveis apresentadas de conhecedor de algo fora do eixo sul-sudeste, eis que se encontra numa situação dramática. Falta um expositor e a platéia pede que ele faça as vezes de. Araken não era, nem é, homem de fugir da raia. Sem roteiro, sem slides, sem projetores, pede, em alta voz, a cada um dos presentes o uso da imaginação.
– Fechem os olhos. Abram apenas no final, e se pensem dentro de um navio. Saímos de São Luis e, em breve, aportaremos em Belém. Chegamos ao porto. Desçamos. Estamos no mercado Ver-O-Peso. Sintamos o aroma das ervas, dos banhos, das morenas. Ouçam a música. É Fafá cantando “Pauapixuna”.
E mais:
– Seguimos para Manaus. Apertem mais os olhos. Estamos na Zona Franca. Apertem mais também as bolsas e as carteiras. Tem muita porcaria para vender. Sedas chinesas, aparelhos eletro-eletrônicos. Não se entusiasmem. De noite iremos ao Teatro Amazonas. Assistiremos a uma opereta desconhecida. Todos gostarão. Depois encontraremos Márcio Souza, Leandro Tocantins e o Arthur Cezar Ferreira Reis. Eles têm o que contar, com fidelidade, sobre a Amazônia de ontem e de hoje. Agora se faz noite. No mais tardar, pela manhã, estaremos em Porto Velho. Logo depois, Rio Branco, no Acre.
O povo, de olhos fechados, acompanhava tudo. Se estivesse lá, inquieta como sou, diria:
– Moço, pelo amor de Deus, acabe logo com essa aflição.
Tudo bem. De olhos fechados, já fora do navio, de ônibus, a viagem entre Porto Velho e Rio Branco durou mais de nove horas. Evidentemente, tudo no imaginário da platéia embevecida. Araken, o showman, não sabendo mais o que fazer para hipnotizar os seus escutas, chegando ao Acre, apenas ressalta o bucolismo local e faz a seguinte proposta:
– Gente, estou e estamos todos cansados. Vamos dormir? Amanhã a gente segue caminho.
E se foram acomodar no Hotel Inácio, filho único do George Pinheiro, até então.
Agora, quem fala sou eu. Eu, Leila, seu querer de sempre.
– Araken, me perdoo por te trair. Me alegraria ter te tirado do vexame. Porém, como? Aqui não tinha Gameleira, nem Canal da Maternidade, nem Mercado Velho revitalizado. Aqui só tinha imaginação e amor pela terra dos meus pais e pela terra que elegeste para viver. Você é um carioca, maneiro! Você é o cara!
Como finalização apoteótica, a platéia do encontro de turismo, aplaudindo de pé, olhos abertos, seguiu viagem de volta cantando:
“Peguei um Ita no norte
E vim pro Rio morar
Adeus, meu pai, minha mãe.
Adeus Belém do Pará”.
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