terça-feira, 29 de dezembro de 2020

MAX MARTINS: Elegia dos que ficaram

Elegia dos que ficaram

 

I

 

Apenas o rumor

Da máquina incansável de costura

Vai, num canto de dor,

Pela casa enlutada.

 

Está toda fechada

e ainda há vagando pela sala

Um perfume suave

De rosa machucada.

 

Mansamente

No quintalejo o vento

Balança

A roupa preta no relento.

 

Sob a lâmpada triste

(tudo é triste neste lar vazio),

Num retrato sorri por entre flores

Aquele que partiu.

 

Porém rodeando a mesa na varanda,

Recordando os instantes que passaram,

Chora aquela que ficou,

 

Aqueles que ficaram

 

 

Elegia em junho

 

II

 

Só com tua memória

Há uma casa no vale.

 

Estou contando os passos na varanda

– A faca corta o pão separando o tempo em nós –

Mas o relógio continua.

Nos teus sapatos cresceram flores de limo

Verdes e brancas,

E ao redor do vale

Ninguém toca nas rosas em teu louvor.

 

A sala está simplesmente vazia

Como o teu espelho.

 

Hoje só minha filha que não te conheceu

Pensa que morreste.

Ninguém saberá que a vida se estagnou no vale.

 

De longe se vê a chaminé que transpira

O que tu foste

E és.

 

Elegia

 

III

 

Nenhum pássaro na manhã cantou o teu soluço.

Calço os teus sapatos (mas o teu silêncio como dói)

E com eles caminho meio mundo inutilmente:

Faltam os teus passos

E a tua voz imperturbável.

 

Resta o guarda-sol

Mas me falta o jeito de carregá-lo

E a sombra.

Se cinco anos andei com teus conselhos

Agora estou só com tua camisa.

Deixaste uns gestos tristes nos espelhos

Como uma imensa interrogação à minha filha

E muitas vezes é o teu próprio riso que te trazem até

                                     As cadeiras da varanda.

 

Hoje o mundo corre abaixo de teu retrato.

 

Do livro “O estranho” (1952)

MARTINS, Max. Poemas reunidos 1952-2001. Belém: EdUFPA, 2001. p. 364-366