sábado, 5 de dezembro de 2020

O INSTANTE SUBLIME NOS ESTILHAÇOS DE DANILO DE S’ACRE

 Isaac Melo

 

Em “Estilhaços” (Nepan, 2020), Danilo de S’Acre apresenta-nos uma cartografia do instante. O instante é um estilhaço arrancado dos olhos do tempo, que tudo sabe, mas nada vê. O tempo é uma categoria medida em instantes. O instante de uma noite, o instante de um abraço, o instante de uma vida. Sem o instante, como experenciar ou apreender o nosso lugar dentro da existência?

Como escreve o poeta, “tem um instante sublime na suspensão / das nuvens apressadas”. E não seriam as “nuvens apressadas” uma metáfora perfeita para dizer da nossa própria condição humana? Diante da eternidade não somos mais que nuvens que passam sub-repticiamente sem deixar qualquer vestígio; apenas um vazio sonoro que ecoa pela noite surda da eternidade: “Dentro da noite estrelada o vazio sonoro preenche a eternidade”.

O que restou do ser humano, da realidade, da poesia, senão estilhaços, frágeis fragmentos encerrados na ilusão de um instante. Sim, “o instante d’água em estilhaços / d’agonia”.

Nesta humana “fantasia silenciosa intermitente”, “as coisas dos outros é tão parecida / com a da gente”. Porque, no fundo, o poeta sabe que não há “nada além da invisível beleza”, que se perde na fala impronunciável, nas “palavras dissonantes” de nossos “lábios labirínticos”.

Nesta cartografia, “ao sul do silêncio”, o poeta, em seu itinerário, caminha por sobre as “areias siderais” até alcançar “a solidão dentro do pensamento”.  E, por entre “sombras ausentes” e “orvalho de estrelas”, depara-se com “a solidão dentro da folha imóvel”. Que instante sublime é o do poeta diante da folha imóvel e vazia.

A cartografia do poeta é, também, uma cartografia amazônica. E seu “mapinguari sapecado” pode ser, ainda, entendido como a Amazônia que queima, neste atual “incensário amazônico”. Neste sentido, o poeta, apreensivo e reticente, diz que “a espera é longa o sono é pesadelo...”. E indaga: “haverá amanhã ainda?”.

Em Danilo de S’Acre, a meu ver, há uma escrita caótica. Cartática. Mimética. Minimalista, até. Uma poesia de estilhaços, diante do “tempo inexistente”, em que a palavra se reverbera na beira do abismo, antes de lançar-se, caótica, no instante sublime de um olhar.

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1

 

Na água

Folha peixe ave

Brilha estrela

No reflexo elétrico

Da imensa solidão

Da noite inteira

Lúcida p. 7

 

16

 

Nunca mais

Amanhã também

Não sei

Nu

Cru e seco

Amanhecer só

Semente e flor p. 22

 

41

 

E a fruta e a lua

Coisa mais ainda

Ela debruçada líquida

Na paisagem da janela p. 47

 

 

45

 

Do poema que fiz

Quase nada restou:

Tirei as tripas secas e crocantes

A pele engelhada pelo tempo dispendido

As veias abertas e outras entupidas

Quanta coisa desnecessária possui um poema...

Quão grande é o corpo inerte e desejável

Nunca aprendi a dissecá-lo,

talvez seja incapaz ou apenas covardia

 

Não sei que tinta, azul, vermelha ou preta...

Um poema é um laboratório labiríntico

Caminho me perco me procuro e indago:

Para atravessar o sentimento caio em armadilhas e

feitiço...

Nada restará no final do poema

 

Tiro e acrescento, parece em vão

Ainda não consegui o encanto:

Tirei tudo do poema e não encontrei o coração, ele

pulsa engasga regurgita

E eu bobo desfalecido desapareço

Às escuras na infância infinda. p. 51

 

70

 

Silenciosos os ossos

Dormem juntos

E sonham um invólucro

Mais

Eficiente p. 76

 

106

 

Pelo abraço

O mesmo momento

Tão tarde novamente

Nunca terá o dia

Mormaço dormente

Tudo amanhã simplesmente

Pelo abraço

O mesmo instante p. 111

 

107

 

Em silêncio o sonho transparece

Acréscimo um pesadelo

Escrito em dissoluções...

Finjo acordar no pulsar d’instante

Suporto a dor no sono

Em silêncio explícito

Um sono distante p. 113

 

S’Acre, Danilo de. Estilhaços. Rio Branco: Nepan, 2020.

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