domingo, 11 de maio de 2025

RETRATO DE MÃE


Jorge Tufic (1930-2018)

 

I

 

Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios

 

II

 

Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.

 

III

 

Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repleta de convites
para a janta frugal e acolhedora.
Nos arredores brinca o vento: a cerca
divisória, talvez, nada separa.
Vizinhando quintais vozes fraternas
cantam, mandam recados de ternura.
Assim te vejo, mãe, rosto suado
na lida da cozinha ou pondo a mesa.
Terrinas de coalhada, o pão redondo
a recender de ti, mais que do trigo.
Calendário sem datas, chão de outrora,
como tudo passou se tudo é agora?

 

IV

 

Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.
Neste verniz antigo, neste cheiro
suavíssimo que vinha do teu corpo,
do pólen de tuas mãos, do hortelãzinho.
Em tudo, minha mãe, teu vulto amado
se desenha mais firme, e, lentamente,
vem dizer-me aos ouvidos qualquer coisa
desses anos que pesam sobre mim.
Em tudo, minha mãe, vejo este lenço
que à passagem da dor recolhe o traço
do sorriso que foste a vida inteira.
E, mesmo quando morta, entre açucenas,
ainda ressai de ti, poder divino,
a canção que adormece o teu menino.

 

V

 

Numa tarde opressiva de domingo,
o estrondo de tua queda: a irreversível
fratura que me dói quando te lembro
de olhos fixos em mim, quase a dizer-me
adeus, lágrimas ácidas rolando
sobre abismos drenados – tal o impacto
na dureza do chão, tal a dureza
do impacto na ossatura envelhecida.
Ninguém para colher-te o desamparo
desse tombo sem grito; apenas gestos
e vozes pressentidas me indicavam
zombeteiro demônio. Quem mais, Senhor,
de tão covarde, cínico e vilão,
faz da morte uma simples diversão?

 

VI

 

Nossa infância era toda iluminada
pelas fontes da tua juventude.
Armadura que tínhamos frequente
para afastar as sombras e o perigo.
Eram fartos os dias com teus peixes
mergulhados no arroz: postas de ouro
não largavam seus brilhos nem suas luas.
Na escassez, entretanto, te inquietavas.
Ainda te vejo, o porte esbelto indo
por aqueles baldios transparentes
onde a luz, de tão verde, pincelando
os ermos, quanta música expandia!
Voltavas quase noite ao doce abrigo,
e o mundo inteiro, mãe, vinha contigo.

 

VII

 

Fui pedir ao canário que me desse
um raspão do seu canto fragmentário;
fui às nuvens do céu pedir mais nuvem
para o leve pedal que emite a voz;
debrucei-me, também, sobre os regatos
em busca de tua face; a brisa, enfim,
tentara descrever-te mas não pôde.
Andei, assim, por montes e calvários.
Ajoelhei-me ante o Cristo, bebi vinho.
Nada pude captar, nenhum remorso
fora maior que o meu nessa procura.
Somente agora, mãe, na tecelagem
destes versos que fiz para louvar-te,
em tudo posso ver-te e posso amar-te.

 

VIII

 

Estavas, posta no esquife, igual a todas
as defuntas convulsas, lapidadas.
Tão branca e tão distante companheira
destes ventos na pausa da agonia.
Quisera ter morrido quando foste,
nave de ti somente, abrindo rotas
na invisória partida, nesse coro
latente em nossas almas. Parecias
dormir, então, liberta como um trono.
Ó lágrimas de Orfeu, tempo escoado,
corpo de insones ânforas, mãezinha,
que sei de ti nos guantes da saudade?
Que sabemos de ti quando te vais,
se o teu vazio é feito de punhais?

 

IX

 

Dormindo vinhas, mãe, já rente à brisa,
aos telhados de Sena, rente às asas
dos Derwiches que em sonho acorrentavas,
rente ao chão, rente à luz, à névoa rente
sobre a qual repousavas como em sonho.
Na música de um verso ou na toada
das cachoeiras, metáforas de ti
sobrevoam meus olhos consolados
pela visão dos seres que encarnaste.
A morte também veio, barulhenta,
mas galáxias cintilam nos teus passos,
vales de auroras curvas te embalsamam.
Por teres ido, fica mais sombria
a terra onde plantaste o nosso dia.

 

X

 

Que restara de ti, dos teus pertences?
Um vestido de linho desbotado,
um sapato comum, chinelo torto,
e nada mais, ó nuvem, se restara.
Tudo posto num saco humilde e roto.
Eu quis, então, medir esse legado,
mas limites não vi para a tristeza.
Davas a sensação de que o tesouro
se enterrara contigo. E era tão leve
quanto um sopro lilás, cantiga doce,
mansidão perdulária, água de fonte.
Como dizer-te verdadeiramente
numa sílaba só? Que eternidade
pode igualar-se à voz desta saudade?

 

XI

 

Extravaso em rugidos carcerários
minha raiva de ser todo impotente,
barro de horas fantásticas, mas barro
solancado de escamas, quilhas, peito,
maremoto pulsar, refugo e tábua,
sobras, talvez, calungas e malárias
de um canto mais diuturno, menos frágil,
mais perene ou barroco, mais você
na inventação das ilhas, regelado
marujo, testemunha das nascentes,
dos dilúvios, da Cóchida e Gomorra;
em ti, Jorge de Lima, eu busco a vaca
resoluta dos pântanos enormes,
e louvo a minha mãe, enquanto dormes.

 

XII

 

Ampulheta de ignotas ressonâncias,
me contas do teu mar, do teu navio;
mar e portos lavados pelo brilho
dos teus olhos cativos ao marulho
de outros mares guardados bem no fundo
das arcas de teu pai: este luarense
das tascas litorâneas e do vinho.
Que são lucandas, mãe? Que são topázios?
E a Tour d’ Eifel, que nuvens ela toca
ao se erguer entre os pássaros do orgulho?
E, te ouvindo contar destas viagens,
teu filho adormecia, tatuado,
ora pelo rigor de tua costura,
ora pelos encantos da aventura.

 

XIII

 

Volta comigo o trágico cenário,
e algo de inumerável me angustia.
Um cântico, talvez, de olhos miúdos,
cardume de fantasmas, trastes velhos.
Soma de nossos dias, ponte amarga
entre os bichos e a terra; pedras soltas,
navegantes do caos: roupas no tanque
onde o limo se avilta e se devora.
E o teu sangue, mãezinha? Que algazarra
no espaço vesperal de um plenilúnio
feito de nossas urzes cotidianas!
Deve ser esta a voz que me chamava,
o rosto que me quer. E a luz que fica
neste pátio me açoita e crucifica.

 

XIV

 

Nem maior nem menor do que ninguém,
me banho deste sol, bebo esta água
e sorvo a taça azul dessa manhã
num canto de quintal feito por ti.
Entre gato e cachorro as folhas verdes
de um jovem pé de frutas: me debruço
lendo as coisas e os seres pequeninos,
umas de tempo findo, outros em luta.
Em luta por um talo ou por um nada,
e na luta maior e mais profunda
dos monturos calados chão adentro.
Vou pedindo licença e vou entrando
nos buracos, nas fendas, neste cheiro
que um dia será rosa em meu canteiro

 

XV

 

Foi lendo-te, Chalita, que no breve
mapa do nosso Líbano deparo
a infância de minha mãe: ouro e neve,
o monte, a vida, o sol e o clima raro.
Chat-il-baher, Batrun. Que tinta escreve
o som, a voz, a luz e este disparo
de asas que me escravizam? Tanto deve
ter sido ela feliz e o tempo claro.
Mas o fado, Chalita, esse outro mapa
que em suas mãos eu lia, é tão diverso
daquele em que se nasce e nos escapa.
Brisa mediterrânea, fêmea austera,
seu martírio, depois, lento e perverso,
ainda assim nos trazia a primavera.

 

TUFIC, Jorge in: SAMUEL, Rogel. Fios de luz, aromas vivos: leitura de "Retrato de Mãe" de Jorge Tufic. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2012. p. 7-14

segunda-feira, 5 de maio de 2025

O RIO COMANDA A VIDA

 

Leandro Tocantins

 

... e o meio põe no homem a sua marca

ALEXIS CARREL,

O homem, esse desconhecido

 

NÃO HÁ NO MUNDO uma região onde melhor se ajuste a imagem dos "caminhos em marcha e que levam aonde queremos ir", do que a Amazónia. As suas baías, os seus golfos, rios, paranás, lagos, furos e igarapés, consagram esta frase de Pascal, sob o aspecto da geografia dinâmica e o das manifestações de vida do homem, cujo destino está entregue aos caminhos que andam.

Na planície, filha das águas, corre pelas águas, como o sangue nas veias, o impulso da civilização, o protoplasma sedimentário que vitaliza o solo, a força geradora que tece com mil aluviões a terra alteada dia a dia do nível baixo dos igapós, das várzeas, em firmes e colinas, que volve ilhas em penínsulas, que também traga, na sua função de desagregar aqui para construir acolá, a terra frouxa solapada pela corrente.

Os cursos fluviais que retalham o vale, à semelhança de filamentos numa folha descomunal, guardam, em seu dorso, além do líquido brotado nos frígidos picos andinos, fluindo das fontes nas serranias, descendo das estâncias do planalto, o caráter eminentemente social do sistema hidrográfico do Amazonas, a vocação de governo sobre a existência humana, ampla e imperiosa.

A carta geográfica apresenta no espaço amazônico os tortuosos riscos azuis dos afluentes, confluentes e defluentes do Rio-Mar, infundindo, a quem lhes relanceie a vista, compenetrado da índole social dos rios, a grande verdade da natureza, cuja contemplação, repetindo Goethe, deve a parte sempre ser considerada como um todo, porque nada é interior, nada é exterior, e o que está dentro está fora, para se chegar a entender de modo mais claro certos segredos aparentemente invioláveis.

Talvez, por falta dessa acuidade é que o viajante, ao ver a Amazônia pela primeira vez, tenha uma decepção, vendo-a "inferior à imagem subjetiva há longo tempo prefigurada", segundo confessa a pena mais brilhante e emotiva que se molhou nas águas do Amazonas. Mas, é o próprio Euclides da Cunha quem retifica as primeiras manifestações de espírito desavisado em seu discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras. Depois de ler uma pequena monografia científica, na qual a luz do Equador parece ter refletido os raios da verdade da terra e da água em sua inteligência, o viajante de ontem, surdo aos clamores da natureza, volveu-se, de comoção em comoção, no impressionista e expressionista que sentiu o drama da vida, que pressentiu os segredos da terra, antes vista nos "horizontes vazios e indefinidos como o dos mares", e como um "bracejo angustioso". E no seu ímpeto verbal viu "a gestação de um mundo, um arranco do triunfo".

O primado social dos rios, trazendo a marca da geografia singular, revela-se nos múltiplos aspectos da vida amazônica, alguns dos quais foram retratados em capítulos precedentes. Diante disso, entrevê-se uns laivos de determinismo, quase a confirmar os exageros da doutrina defendida por Taine, Buckle e Huntington. Porque o homem, diante do cenário grande demais para a sua pequenez, sente-se impotente, inapto para transformar as energias atuantes no meio em proveito próprio, e lhe avassala o espírito a angústia das distâncias tirânicas que os rios ainda mais aumentam no sinuoso deflúvio. E se torna rendido, senão à terra mas fatalmente ao rio, poderoso gerador de fenômenos sociais.

Eis o Nilo, o mais extenso dos cursos fluviais, contido desde a era imemorial dos Faraós pelos sistemas de irrigação, oferecendo, submisso, o milagre de sua fertilidade, agora definitivamente subjugado nas represas construídas pela técnica moderna, a lembrar as palavras de Heródoto de que o Egito é uma dádiva sua.

Mas, quem poderá controlar as formidáveis e dispersas energias do Amazonas? O volume colossal das águas, o arremesso violento da corrente, a inconsistência do solo invalidam qualquer diligência de refreá-lo em benefício social, e ele continua selvagem, primitivo, entregue aos devaneios de sua geografia, aos caprichos de sua hidrografia. A obra seria uma luta entre gigantes e pigmeus, e é possível que o rio acabasse por vencer.

Os caminhos que andam trazem a fortuna ou a desgraça. Quando nas cheias a navegação alcança os sítios mais longínquos, certas vezes as alegrias do feliz acontecimento são toldadas pelas inundações funestas, arrasando culturas agrícolas, tragando barrancos, removendo a pobreza franciscana das barracas, levando o desespero aos lares, e constituindo uma séria ameaça à economia.

Nos seis meses de seca o verão derrama sobre o vale o fulgor do sol em céu azul, descoberto, e o drama nos altos rios é a falta d'água no álveo empobrecido, a água contra a qual se blasfemara no desespero das alagações. Ficam retidos os gaiolas mais imprudentes que se aventuraram a subir o caminho fluvial no fim da estação invernosa, com o casco nu, em falsa postura na calha vazia, amparado pelas escoras de madeiros silvestres, mantidos em equilíde cabos de aço retesos das florestas. Os batelões, arrastando-se nos baixios, roçando nos paus perigosos, realizam milagres para levar aos vilórios, aos seringais, os mantimentos, as coisas essenciais da vida.

O seringueiro aproveita a quadra e corta a árvore do leite, o madeireiro abate os enormes lenhos e decepa-os em toros, jogando-os no leito desnudo dos igarapés. Quando chegam as chuvas, o primeiro fica na barraca, inativo, porque não poderá vencer nas estradas alagadas o duplo embate com a selva e a água, mas no segundo renascem esperanças de sua madeira vir do âmago da mata, boiando no repiquete, do igarapé ao rio, e daí ao mar, no porão dos navios.

A safra toda se escoa pelo caminho andante numa pressa de aproveitar aqueles breves dias de repiquetes, seguindo o mesmo ritmo de fuga das águas barrentas, à procura da foz libertadora.

As comunidades, as barracas, os barracões se desenvolvem à beira dos rios, junto aos barrancos, equilibrados nos esteios, prontos para locomoverem-se à ré se as terras caídas ameaçarem as palafitas, mas sempre junto da água, na atração máxima do caudal que é a vereda das energias vitais.

Nas paragens do baixo Amazonas, onde a largura e a profundidade dos cursos fluviais poupam menos dissabores ao homem, a trilha líquida continua a exercer sua implacável hegemonia nos transportes e também nas desolações das grandes enchentes, que demandam nas fazendas pastoris a construção das marombas, imensos palanques erguidos em pleno campo, nos quais as reses ficam cercadas pela água, recebendo o pastoreio diário dos vaqueiros, que lhes trazem de montaria a canarana alimentar.

O homem e o rio são os dois mais ativos agentes da geografia humana da Amazônia. O rio enchendo a vida do homem de motivações psicológicas, o rio imprimindo à sociedade rumos e tendências, criando tipos característicos na vida regional.

A noção do jus soli parece que se priva de seu conteúdo sentimental em detrimento do rio. Quando alguém se refere à terra natal só costuma dizer: eu nasci no Juruá, eu nasci no Purus. Se fala da borracha, esta perde a sua qualidade de produto silvestre para ser do rio: borracha do Abunã, borracha do Xingu. Quando há ocasião de assinalar uma área produtiva, o rio é que absorve os elogios: o Yaco é bom de leite, o Antimari é grande produtor de borracha. As ocorrências da vida de cada um estão ligadas ao rio e não à terra: fui muito feliz no Tarauacá, fiquei noivo no Envira e casei no Muru.

O rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase mística, o que pode comportar a transposição da máxima de Heródoto para os condados amazônicos, onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma espécie de fiador dos destinos humanos.

Veias do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do pobre e do rico, determinantes das temperaturas e dos fenômenos atmosféricos, amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois sem eles o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguram a presença humana, embelezam a paisagem, fazem girar a civilização – comandam a vida no anfiteatro amazônico. 

 

TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida: uma interpretação da Amazônia. 7ª ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Manaus: SUFRAMA, 1983. p. 231-234

quinta-feira, 17 de abril de 2025

POEMAS DE ALCY ARAÚJO (1924-1989)

 CHORANDO MAR

 

 Estava estacionado

 na tarde sem mar.

 

 Viste o meu silêncio

 meus olhos

 minha dor

 mas não percebeste

 que eu era marinheiro.

 

 Não era a ti

 que eu esperava

 de relógio em público.

 Era o meu cais

 de reencontros itinerantes.

 

 Sou feito de ondas

 de algas de salsugem

 de barcos voltando

 para a renovação de partidas.

 

 Sou adeus.

 

 Não percebeste

 que eu chorava mar

 na tarde despida de esperanças. p. 19

 

 

 POETA VENDO O RIO

 

 Pela janela

 olho o rio.

 Rio largo barrento

 indo para o mar.

 Rio de todo dia

 em minha paisagem exterior.

 Só que hoje

 a ilha defronte quase não aparece.

 

 Não é verde.

 Tem cor azulada.

 Talvez cinzenta

 para os meus olhos míopes.

 Eis a única diferença

 no meu cotidiano.

 

 Mais tarde

 chegará a noite.

 A paisagem ficará

 mais escura.

 Não tenho outro

 quadro Amada.

 

 Daí este cansaço.

 

 Na tarde agora

 a moça da folhinha sorri

 pra mim ao lado do organograma.

 Um espelho reflete meus gestos inúteis.

 

Debruço meu esgotamento

 e espero o nascimento

 do verso proletário.

 

 Só então compreendo

 as razões vazias

 do meu retorno repetido. p. 37-38

 

 

 CANTO FIM

 

 Há milênios

 estavas em minha autogeografia

 demarcando fronteiras geométricas

 impedindo a passagem do azul.

 

 Todavia

 quando chegaste

 eras saudade

 e amores grisalhos

 falavam de ausências.

 

 No cais inconsútil

 eu não chorava.

 Apenas aguardava

 esperanças suicidas

 que o mar devolve

 a cada esquecimento.

 

 Não estava só.

 Eu era multidão

 de equívocos numerados

 e tu não percebeste

 um anjo órfão

 portando bússolas afogadas

 estendendo os braços

 para o mar.

 

 Na ânsia

 de salvar o sonho

 ainda acenei

 com o meu amar morrendo

 mas a noite

 apagou o gesto de sofrer. p. 40

 

 

 ONDE O MEU DOIDO?

 

 Onde o meu louco

 que nunca mais?

 Há tanto tempo ausente

 como quem desencontrou

 o caminho do retorno.

 

 Onde o doido

 que habita em mim

 e perdeu tanto?

 Mãe e madrasta

 amigo e amada

 pai e irmão

 escola e calçada

 papagaio e pião.

 

 Já não faz mais seresta

 não briga nas festas

 não reza canções

 não canta poemas

 não tem namorada

 não joga porrinha

 não perdeu a razão.

 

 Onde o meu louco

 que não se importa

 que não porta nada?

 

 Não porta aviões

 não porta malas

não porta bandeira

 não porta bagagem

 não porta cartas

 não porta estandarte

 não porta cigarros

 não porta chaves

 não porta retratos

 não porta seios

 não porta luvas

 não porta joias

 não porta saudades.

 

 Um doido sem bicicleta

 sem cais bonito

 sem anjo

 sem mar

 sem cavaquinho

 sem passarinho

 sozinho

 órfão

 cargueado de infâncias

 inchado de lucidez

 e de louro luar

 nas ruas do seu mundo.

 

 Onde o meu louco?

 Há quanto tempo

 que nunca mais. p. 57-58

 

 

 INSÔNIA

 

 Não tenho nenhuma lâmpada

 e há muito a aurora é saudade.

 Ainda nem adormeci a alcova

 e o meu tédio chove silêncios.

 

 Mais: só tenho este cigarro

 para ninar meu sono

 enquanto o relógio cria imensos monstros

 de insônia

 e da janela acordada

 adentram lembranças esquecidas.

 

 Visto o meu disfarce de Deus

 me oculto atrás do armário

 me escondo do mar interior

 e a noite não passa nunca.

 

 Nenhuma lâmpada

 para acender o poema. p. 63

 

 

 O PEQUENO JARDIM DO POETA POBRE

 

 Meu jardim é um jardim de poeta pobre.

 É um jardim pobre.

 

 Tem apenas uma roseira solitária

 e um pouco de verde onde

 descanso a vista ousada e míope.

 

 As rosas

 às vezes

 me comovem e acendem lágrimas

 em meus olhos. Mormente

 quando recordo momentos vividos

 da infância perdida ou nunca existente.

 

 Também a juventude sofrida

 marcada pela vida

 abriu feridas

 criou impedimentos

 que jamais também foram transpostos.

 

 As rosas

 quase sempre trazem recordações

 fazendo doer sofrimentos passados

 e a roseira é um espelho da minha solidão.

 Talvez por isso fico horas e horas

 olhando o jardim

 até que o verde enxugue minhas dores.

 

 Certas ocasiões converso

 com o meu jardim modesto e feio

 mas incrivelmente meu

 como minhas têm sido

 as mágoas que plantei.

 

 Quando há luar

 as sombras do meu jardim

 tornam-se mais sombras

 ficam mais nítidas

 e desenham pelo chão

 arabescos – mensagem indecifrável

 das minhas desesperanças coletivas.

 

 Quando é dia

 o meu jardim de poeta pobre

 fica nu.

 Nuinho de carinho.

 Não merece um olhar de quem passa.

 Não acorda nenhuma atenção.

 Mas eu sei que ele tem vida

 está ali à espera de mim

 para receber meu silêncio.

 

 Somos tristes. Temos sentimentos comuns.

 Guardamos segredos só nossos.

 Muitas vezes ficamos imóveis

 olhando a rua

 os carros os casais os homens solitários

 povoando de buzinas e de passos

 de palavras e de ruídos o espaço adjacente.

 

 Certa manhã minha ternura estava débil.

 Então a roseira me ofertou uma rosa vermelha.

 Acolhida com emoção de amante

 depositei-a nas mãos

 daquela que haveria de vir.

 

 Meu jardim também serve

 para penitências.

 Debruço sobre ele os meus singularíssimos pecados

 e transponho perdoado

 o verde e a roseira.

 

 Encontro sempre Deus no meu jardim à noite

 principalmente se há luar.

 Talvez para nutrir a lição de humildade

 que ele e eu oferecemos

 inutilmente aos homens.

 Talvez para acender melhor

 o claro amor

 que exibimos aos olhos indiferentes

 dos que passam sem perceber o pequeno jardim

 vivendo no mundo.

 

 E que eu sou terno

 bom

 e sei rezar um verso. p. 65-67

 

 

 PARTICIPAÇÃO

 

 Estou convosco.

 Participo dos vossos anseios coletivos.

 Vim unir meu grito de protesto

 ao suor dos que suaram

 nos campos e nas fábricas.

 

 Aqui estou

 para juntar minha boca

 às vossas bocas no clamor pelo pão

 sancionar com este rumor que vai crescendo

 a petição de liberdade.

 

 Estou convosco.

 Para unir meu sangue ao sangue

 dos que tombaram

 na luta contra a fome e a injustiça

 foram vilipendiados em sua glória

 de mártires

 de heróis.

 

 Vim de longe

 percorrendo desesperos.

 Das docas agitadas de Hamburgo

 das plantações de banana da Guatemala

 dos seringais quentes do Haiti.

 

 Vim do cais angustiado de Belém

 dos poços de petróleo do Kuwait

 das minas de salitre do Chile.

 

 Passei fome nos arrozais da China

 nos canaviais de Cuba

 entre as vacas sagradas da Índia

 ouvindo música de jazz no Harlem.

 

 Afundei nas geladas estepes russas.

 Morri ontem no Canal da Mancha

 e hoje no de Suez.

 Tombei nas margens do Reno

 e nas areias do Saara

 lutando pela vossa liberdade

 pelo vosso direito de dizer

 e de amar.

 

 Estou convosco.

 Voluntariamente aumento o efetivo

 dos que não se conformam

 em viver de joelhos

 morrendo sufocando lágrimas

 nas frentes de batalha

 nas prisões

 para dar à criança recém-parida

 o riso negado aos vossos pais

 o pão que falta em vossas mesas.

 

 Meu filho

 e o filho do meu filho

 saberão que o meu poema não se omitiu

 quando vossas vozes fenderam o silêncio

 e ecoaram inutilmente nos ouvidos de Deus. p. 83-85

 

 

ARAÚJO, Alcy. Poemas do homem do cais. 2ª ed. Brasília: Senado Federal, 2024.

________________

Alcy Araújo nasceu no distrito de Peixe Boi-PA, no dia 7 de janeiro de 1924. Residiu em Belém, e diversas outras cidades da Amazônia, até se estabelecer na década de 1950 no Amapá, onde faleceu no dia 22 de abril de 1989. Foi jornalista e poeta. Publicou Autogeografia (1965), Poemas do homem do cais (1983), Jardim Clonal (1997), Ave Ternura (2021).