Sou acreano do Xapuri, hoje o nono município do
Acre em termos de população. Perdi meu pai quando tinha dois anos, ficando
minha mãe, então com 28 anos, com quatro filhos pequenos para criar, sendo eu o
caçula. Meu pai, Domingos Antonio Jatene, era libanês, e veio para o Brasil no
final do século XIX, ainda jovem, com 16 anos. Primeiro ele morou em Belém,
onde atuou como mascate, a exemplo de seus conterrâneos. Foi atraído pelo Acre
devido à economia da borracha e da castanha, que fez daquela região um pólo de
desenvolvimento. Costumo brincar com meus amigos paulistas dizendo que o Acre,
no começo do século XX, era para Belém o que o norte do Paraná foi para São
Paulo na década de 1950.
Assim que chegou ao Acre, junto com um sócio,
meu pai abriu uma loja e vivia de “aviar seringais”. Ou seja, ele vendia
alimentos, roupas e produtos em geral para os seringueiros e recebia o
pagamento em borracha, uma atividade bastante lucrativa. Lembro que, quando
menino, as peles de borracha ficavam acumuladas na beira do rio, em grande
quantidade. Num belo dia, quando as chuvas permitiam a navegação, elas eram
lançadas na correnteza unidas com cordas, formando uma espécie de rosário
comprido, ancoradas em duas balsas na parte superior e inferior. Tenho até hoje
essa imagem muito forte em mim, do espetáculo que eram as várias fileiras de
pele de borracha, com duas plataformas na frente e atrás, flutuando e descendo
o rio até chegar ao destino.
Ocorre que, no início do século XX, os ingleses
levaram sementes de borracha para plantar na Malásia, porém lá eles iniciaram o
extrativismo de forma mais racional, aliás do mesmo jeito como se faz hoje aqui
em São Paulo, obedecendo a distâncias de oito por quatro metros, enquanto na
região Norte do Brasil, na década de 1920, continuava-se a trabalhar em um
sistema antiquado, com árvores distantes de 100 a 200 metros, ou mais, umas das
outras. O seringueiro, então, tinha que percorrer grandes percursos para poder
extrair a borracha. As árvores eram identificadas na selva, e ele necessitava
fazer uma verdadeira picada, e trilhar um longo caminho na mata para sangrar as
árvores. Depois que fazia os cortes, ele retornava ao início para ir recolhendo
a seiva (aquela espécie de leite que essas árvores derramam) para defumar a
borracha ainda na mesma noite. Era um trabalho exaustivo e pouco producente.
Já na Malásia, assim como em Cingapura, com o
sistema 8x4, a concentração era tão racional que, com duas horas de serviço
apenas, o indivíduo colhia muito mais do que um seringueiro brasileiro num dia
inteiro de trabalho. Lá eles otimizaram a produção e, ainda por cima, começaram
a fazer pesquisas para melhoria dos clones visando obter uma árvore mais
produtiva. A evolução comercial e extrativista deles fez aumentar tanto a
oferta de borracha no mercado que, no final da década de 1920, seu preço
internacional caiu drasticamente. Fenômeno, aliás, semelhante ao ocorrido com o
café e outros produtos brasileiros, que acabaram gerando crises nesses setores.
Até hoje o Brasil vem tentando recuperar o antigo status.
Meu pai morreu bem em meio a essa crise, em
1931, com apenas 43 anos. Em uma de suas visitas aos seringais ele contraiu,
provavelmente, um tipo grave de hepatite, voltando intensamente ictérico, e
faleceu dois dias depois do retorno. Porém, como ainda não existia tratamento
nem remédios adequados, ele deve ter morrido por atrofia de fígado ou algo
semelhante. De repente, tudo mudou. Como a sociedade que tinha com o amigo, na
loja, era informal, sem qualquer documento que comprovasse o vínculo, o sócio
ficou com tudo e a minha mãe sem nada, e ainda com quatro filhos pequenos para
criar.
Meus pais se conheceram aqui no Brasil. A minha
mãe veio ao Brasil quando pequena, duas vezes. Na primeira vez, tinha apenas 1
ano, e morou em Guaxupé, no sudoeste de Minas Gerais, junto com meus avós. Meu
avô trabalhava como mascate na região, e circulava pelas fazendas vendendo toda
sorte de produtos. Um dia, voltando de uma dessas viagens, vovô sofreu uma
emboscada, foi morto e roubaram-lhe tudo o que tinha arrecadado em vários dias.
Sem condições de permanecer no Brasil, minha avó, então viúva aos 19 anos,
voltou para o Líbano, chamada pelo meu bisavô, com a minha mãe ainda pequenina.
Seis anos depois, quando minha mãe já havia completado 7 anos, elas retornaram
ao Brasil, mas desta vez com meu bisavô, os três fixando-se em Belém.
Belém, a capital do Pará, era o primeiro porto
do Brasil na rota dos navios que vinham do Oriente Médio, e por esse motivo
muitos libaneses, fugindo do domínio turco, ficavam por lá, estimulados pelos
amigos que já estavam estabelecidos na cidade. Meu bisavô logo conseguiu uma
banca no mercado para vender roupa que minha avó costurava. Poucos anos depois
ele teve câncer e morreu. Então minha avó e minha mãe assumiram esse ponto no
mercado, e moravam na comunidade libanesa que existia naquela região. Meu pai,
uma vez por ano, ia até Belém para abastecer sua loja. Em uma dessas viagens à
capital ele conheceu a minha mãe, eles se enamoraram e, dois anos depois, na
terceira viagem, eles se casaram, e, levando a minha avó para o Acre, lá
começaram a família.
Quando meu pai morreu, Anice, minha mãe, ainda
muito jovem e sem recursos além do respeito da comunidade, decidiu que o
objetivo da sua vida, a partir daquele momento, seria educar os quatro filhos.
Sem medo do trabalho e apoiada no prestígio que o falecido Sr. Domingos desfrutava
na cidade, ela conseguiu, com a ajuda de algumas pessoas, uma pequena quantia
que lhe permitiu montar uma pequena loja onde vendia secos, molhados e algumas
roupas que ela mesma confeccionava. Lembro de que ela passava o dia inteiro
costurando, sentada naquela máquina. Era impressionante a sua capacidade de
trabalho. Quando eu acordava, minha mãe já estava naquela máquina e, quando eu
ia dormir, ela ainda estava trabalhando.
Ela viveu bem com meu pai durante os 10 anos em
que foram casados, e talvez por isso mesmo nunca tenha tido o desejo de se
casar novamente. Mesmo muito bonita, altiva e elegante, dona Anice usou luto
fechado até quando me formei na faculdade. É como se só então minha mãe tenha
se permitido aliviar o luto, começando a usar algumas cores no seu vestiário
além do preto. A impressão que se tinha é que ela não queria se esquecer da
missão de educar os filhos, mesmo com todas as dificuldades por que passou. É
bonito constatar que mamãe sempre passava para nós uma lembrança muito boa do
meu pai, que pode até nem ter sido tudo aquilo que ela falava. Por isso eu
sempre digo que, mais do que a presença, o que vale para os filhos é a imagem,
e a imagem do pai para os filhos quem constrói é a mãe. Por isso considero uma
tragédia ver mães denegrirem a figura paterna. A minha, ao contrário, teve a
sabedoria de transmitir uma imagem do meu pai que tenho na mais alta conta, de
integridade e correção.
Dona de grande sabedoria, minha mãe, contudo,
não era uma mulher instruída. Fez apenas o curso primário, mas estudou árabe no
período que viveu em Belém. Eu me lembro que se reuniam lá em casa vários
libaneses e ela lia para o grupo um famoso romance árabe chamado Antar, de autor
anônimo, escrito antes do século XII. Trata-se de uma longa história de um
guerreiro negro com alma de poeta que se apaixona por uma branca, e que
descreve o universo dos conquistadores e das lutas tribais. Ela falava razoavelmente
bem o português porque veio ainda menina para o Brasil, tendo assimilado
facilmente a nova língua.
Em 1939, eu ainda não havia completado 10 anos,
e todos lá em casa já tínhamos terminado o quarto ano primário. Como em Xapuri
só havia curso primário, mamãe passou a sonhar em voltar a morar em Belém, o
centro de toda aquela região. Afinal, ela já havia morado ali, conhecia bem a
cidade, e lá os filhos poderiam avançar nos estudos. O que fez nosso destino mudar
foi um tio dela, que vivia em Ituiutaba, no Triângulo Mineiro. Um dia ele
mandou uma carta dizendo: “Desista de Belém. Venha para Uberlândia, assim você
fica perto de mim. Além do mais, aqui tem todas as escolas que você quer para
seus filhos. Estando aqui perto eu ajudo, e os meninos vão poder estudar.”
Apoiada nessa promessa, ela partiu, carregando os quatro filhos, minha avó e
uma filha de criação.
Foi uma viagem cansativa e penosa. Deixamos
Xapuri no dia 7 de fevereiro de 1939 e só chegamos em Uberlândia no dia 7 de
abril; dois meses de viagem, portanto. Para sair da nossa cidade, tivemos que
esperar o período das cheias, quando as "chatas" podiam navegar. Elas
são embarcações que têm uma roda atrás e, por isso, capazes de se locomover
mesmo onde a profundidade é pequena. A nossa chata desceu então o rio Acre até
a confluência com o rio Purus. Levamos cerca de 12 dias para atravessar esse
trecho. Lá, tivemos que ficar dentro da chata por mais de uma semana, esperando
pelo navio que passaria por Manaus e nos levaria até Belém. Lembro bem desse
período no navio, principalmente da parada em Santarém, onde recebemos muitas
pessoas que vendiam de tudo aos passageiros dos navios, como roupas, artigos de
toucador, comida e um sem-número de frutas da região. Esse trecho da viagem foi
muito pitoresco, agradável mesmo.
JATENE, Adib. Cartas a um jovem médico: uma escolha
pela vida. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 33-40