Profª. Inês Lacerda Araújo
Mente e cérebro diferem
radicalmente, cada qual pertence a um nicho do ser, haveria uma
diferença ontológica entre o mental e o cerebral?
Vejamos quando se diz que um fenômeno é mental.
Pensar, desejar, falar, sonhar, perceber, imaginar, parece que há um
acordo quanto a serem resultado de uma atividade mental, irredutível ao
físico, ao neuronal, ao cerebral.
E o que é considerado cerebral?
Um déficit de inteligência, um lapso de linguagem, depressão,
transtorno de personalidade, impulso suicida, esquizofrenia, são alguns
dos fenômenos listados como cerebrais, suscetíveis de modificação com a
interferência de medicamentos. Estes incidiriam sobre certa região e
modificariam a química cerebral. Claro, com divergências nesse terreno.
Alguns vão mais longe: o mental pode ser reduzido aos circuitos neuronais, às sinapses. O mental seria, então, físico?!
Esses impasses e
paradoxos só existem para filósofos, psicólogos, psiquiatras para os
quais há diferença de natureza, ontológica, seriam duas realidades
distintas, uma imaterial, a outra material.
O que impressiona os
defensores da mente é haver o mental distinto do físico, o pensamento
distinto do corpo, a consciência distinta do desvario, a capacidade de
deliberar distinta dos impulsos cegos, voltar-se para si (introspecção)
distinto de comportar-se e reagir ao meio.
A tese oposta se
demonstra pelo óbvio: todo o nosso comportamento e as mais variadas
atividades dependem do comando cerebral. Isso pode inclusive
ser detectado por aparelhos. Eles mostram que tal ou tal emoção afeta
tal região, falar afeta outra, sonhar outra, e assim por diante.
Mas, se considerarmos
que para falar e perceber, para pensar e imaginar, para compreender e
agir, enfim, para o diversificado tipo de vida dos seres humanos, foi
necessário tanto que o cérebro se desenvolvesse e se adaptasse para comandar nossas atividades, como essas atividades constituiram pessoas
vivendo em sociedades e dependentes de regras e instituições, que são
culturais. Na medida em que a criança entra no circuito social da
linguagem, portanto, das significações e signos, dos ruídos que passam a
formar signos com sentido, é impossível separar o físico/cerebral da
vida humana inteligente.
É por meio de signos, da linguagem
humana articulada que nos tornamos pessoas, formas de vida que empregam
vários jogos de linguagem sempre mergulhados em regras que validam ou
invalidam nossas atividades.
Respondemos ao meio, o
enfrentamos e o modificamos desde há muito tempo. Assim, separar em duas
regiões ontológicas o mental e o cerebral se deve a particularidades da
cultura humana. Por exemplo, perguntar a um amigo se sua tristeza é
"curável", seria classificá-la como cerebral e apostar no prozac. O mais
incrível, é que isso é cultural, há poucos anos se medicaliza emoções e sentimentos "excessivos".
Enquanto que, procurar
compreender as reações e sentimentos desse amigo, é algo que se faz
desde que relações humanas, entre elas a amizade, passaram a constituir
nossa humanidade, o ser que somos. Há milênios.
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* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e doutora em Estudos Linguísticos. É professora aposentada da UFPR e PUCPR.
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