domingo, 29 de abril de 2012

FILHAS DE UM TEMPO QUE SE QUER LONGE

Leila Jalul


Kátia Regina Lamar da Matta, ou simplesmente Catita, como gostava de ser chamada, era um raro exemplar de beleza mignon. Uma boneca de porcelana, mais parecia. Como parecia não saber que era linda e doce. E que cantava como um sabiá.

No colégio, de tradição rígida como a do Pedro II, por mais que aumentasse a sola dos sapatos e ficasse empertigada, era sempre a última da fila. Perto de Izilda, sua melhor amiga, com seus 1,87 cm, então, desaparecia. A turma pedia para que tomasse cuidado... Que poderia ser pisada pela aliá grosseira, desajeitada e descuidada.

Gozaram e curtiram a juventude alegres, sem complexos que atrapalhassem as florações dos seus momentos joviais. Cumpriram, cheias de garbo, a jornada de disciplina do conceituado colégio. Levaram a sério a fase da vida que admitia deslizes, sem cometê-los.

Por serem filhas de militares, absorveram as represálias da época com naturalidade e conformação. Sem sofrimentos, pois que desconheciam a realidade além dos muros das casernas dos verde-oliva do Exército, dos asas douradas da Aeronáutica e dos cisnes brancos da Marinha.

Na vila militar da cidade serrana seus destinos pareciam selados. Com militares ou descendentes destes casariam. Chegariam ao altar passando por baixo das espadas dos cadetes, devidamente uniformizados com fardas de gala e sorrisos Colgate.

Por puro determinismo, assim deveria ser.

E assim aconteceu.

A primeira a casar foi Izilda Tavares Montenegro - a Grande. Estava linda. Uma noiva sem defeitos. Com seus 1.87 cm mais parecia estar ao lado do baixinho Ricardo Mansueto como se um gigante de braços dados com sua bengala de cabo de marfim.

Brigadeiros, Generais e Almirantes, com suas esposas e devidamente trajados, faziam a festa parecer uma solenidade de entrega de espadas. Não deixava de ser, afinal. O rito perfeito era a tônica. Sem erros ou lambanças. Festa com horário marcado para começar e terminar. Festa para alto comando nenhum colocar defeito.

O enlace de Catita com Rogério Palmares, também filho de militar, foi um tanto diferente. O período de ouro dos fardados estava no apagar das luzes. Em sendo assim, até por economia de pompas, foi bem discreto. Não só por isso...

Rogério, no seio familiar e na vila militar - para desgosto dos pais e do país - era tido e reconhecido um rebelde. Esteve envolvido com baderneiros comunistas e andou se amigando com a clandestinidade. Nada que manchasse sua festa de casamento, apesar dos olhares enviesados da casta.

A noiva estava linda. Uma bonequinha vestida com pura seda e grinalda de renda branca.

Nada de baile no clube militar. Padrinhos, pais e o pequeno grupo de convidados, no acanhado recinto da sacristia, ergueram um brinde aos noivos. E só!

Dali mesmo, no carro popular do agora marido, seguiram para a lua-de-mel em Búzios. Depois da lua-de-mel, instalaram-se no apartamento de quarto e sala, em Niterói, onde Rogério trabalhava como gerente de uma concessionária de carros.

Nada perto do confortável modelo que Catita tinha junto aos pais. Procurava não dar tratos à bola. Era nova, afinal, e não duvidava do amor que sentia pelo esposo.

Isso não quer dizer, porém, que não sentisse arrependimentos de ter saído de casa tão cedo para enfrentar as batalhas da vida.

Seu primeiro emprego foi numa casa noturna de primeira classe, cujo contrato exigia duas horas de apresentação no palco, na base do piano e voz, interpretando compositores da MPB, inclusive os odiados pelos seus pais e por seus amigos de farda.

Casa cheia. Sempre! A voz de Catita agradava gregos, troianos e vascaínos.

Numa noite, pouco antes de iniciar sua jornada, recebe uma ligação da mãe dando conta de que Izilda estava hospitalizada e pedia sua presença, com urgência, se possível.

No dia seguinte, sem pensar em nada, subiu a serra. No trajeto, por não ter sido esclarecida, fez mil e uma conjecturas sobre o que teria acontecido com a amiga. Estaria grávida? Perdera o bebê? Algo mais sério? Doença incurável?

Entrou no apartamento do hospital sorrindo para a amiga acamada. Izilda apresentava a palidez da morte. Tinha curativos nos pulsos e logo então foi possível entender do que se tratava.

O frasco de soro pendente indicava a hora de ser por outro substituído. Esperou que assim acontecesse e só então, ao lado da amiga, segurando uma de suas mãos, esperou que dela partisse a revelação. Estava disposta a não puxar assunto.

Ficou assim por duas longas horas, até que Izilda, com voz baixa, entrecortada por suspiros e sinais de cansaço, decidiu contar sobre o que a levou ao insano gesto e que pode ser assim resumido:

Nos primeiros meses de casada com Ricardo Mansueto pôde ver a verdadeira personalidade do rapaz. Em todos os cômodos da casa, nos locais mais escondidos, foram instalados gravadores e câmeras de alta tecnologia. Que só veio a descobrir essa mania araponga quando, num dia de tempestade, acolheu em casa um oficial amigo da família e seu pequeno filho de seis anos que saíra da escola e estavam ao sabor do vendaval.

A reação de Ricardo foi violenta. Desde aí, sem razão de ser, Izilda passou por sessões de inquisição. Onde esteve, com quem falou, o que falou e por que falou.

O telefone da casa, também veio a descobrir, estava no grampo. Uma conversa de desabafo com a mãe foi sabida por Ricardo Mansueto, vírgula por vírgula, o que o aborreceu o suficiente para quase espancá-la.

À medida que Izilda falava, Catita se espantava com o sofrimento porque passava a amiga. Ainda assim, tudo o que ouviu era pouco para que justificasse o extremado ato.

Deixou-a à vontade para, se quisesse, contasse o que de tão grave havia acontecido. E veio o relato.

Ricardo Mansueto, por seu complexo de inferioridade, ciúme desmedido e cabeça má formada pelos mentores da gloriosa de 31 de março, armou uma cilada para a esposa. Contratou um Zé qualquer de sua laia para que a cortejasse, com insistência. E assim, numa curta viagem que fez com os pais, o tal Zé qualquer se fez presente.

Flores, elogios e paparicos, tudo gravado com um equipamento de bolso cedido ao espião pelo próprio esposo.

Estranhei muito a presença e a insistência do rapaz - disse Izilda à Catita.

– Estranhei muito, mas gostei. Há tempos um homem não me dizia tão belas palavras. E mamãe, sem pensar nas consequências, convidou o distinto para jantar. Foi quando esta foto foi tirada. Veja.

Catita pegou a fotografia amassada e não viu nada demais, além de três pessoas jantando. Somente a mãe de Izilda estava sorridente. O Zé contratado, com olhar amoroso e Izilda séria, de cabeça baixa, como se incomodada com a situação.

As gravações e a foto, quando entregues a Ricardo Mansueto, causaram-lhe furor. Por três dias e três noites submeteu Izilda à intermináveis sessões de tortura psicológica – a pior das torturas – para que revelasse quem era aquele homem, se tinha dormido com ele, se já dormira com outros. E foram estas inquirições que levaram Izilda ao extremo desespero.

Disposta a encurtar os caminhos da conversa, Catita foi rápida e quis logo saber se a amiga voltaria a conviver com Ricardo Mansueto.

- Sim, papai esteve aqui ontem. Pediu-me que entendesse o Ricardo e desse-lhe uma chance de provar seu amor por mim. Disse-me, ainda, que Ricardo agiu por amor. E além do mais, Izilda, Ricardo está prestes a ser promovido e, qualquer passo em falso, poderá atrapalhar a conquista da nova patente. Estou disposta a tentar...

Catita, por mais vontade de dizer à amiga que Ricardo não mudaria, por ter personalidade distorcida, por seu mau caráter, nada disse. Pegou sua bolsa e desceu a serra. Precisava estar descansada para cantar na casa noturna, ao som do piano, interpretando peças clássicas da época. Peças que traduziam a insatisfação com o infernal período de dominação dos fardados.

Finda a noite, Rogério Palmares, o rapazola que esteve aliado a baderneiros comunistas, amigado com a clandestinidade e foi mal visto pelos pais e pelo país não entendeu o ardor com que foi amado até quase o amanhecer.

O amanhã de ontem, para ele, foi realmente outro dia...



* Publicado originalmente no site Lima Coelho.

Um comentário:

Anônimo disse...

Leila,Izilda me lembra o filhinho de uma
amiga que, com quase quatro anos e medroso que era, sempre que se sentia em perigo dizia: "socorro, socorro, ninguém me ajude"!!!
Teu ótimo texto também me lembra minha sobrinha Marina, que chegada da França aos seis anos, e aprendendo o português, me disse: "... ah entendi, o hoje é o amanhã de ontem..." abraços
Luiz Felipe Jardim