No início de uma tarde o “Rio Tapajós” atinge sem novidade, a confluência do rio Purus com o rio Acre onde, segundo a tripulação, distinguia-se o barracão do conhecido cearense “Barão da Boca do Acre”, que marcava suas mercadorias com três eles – L.L.L. – que significavam seu nome: Lixandre Liveira Lima. Evidentemente os bolivianos não intuíram-se da esdrúxula curiosidade.
Prossegue o vapor rio acima, impelido pela hélice, já de onde os bolivianos começariam a vislumbrar, não obstante o anoitecer, a imensa planura de terra firme coberta de floresta, “habitat” natural e abundante da “Hevea Brasiliensis”, de látex farto e de boa qualidade, constituindo a grande riqueza da região.
A noite, sob um céu alegremente estrelado, o “Rio Tapajós” chega à Vila do Antimarí, sede da Superintendência do Estado do Amazonas.
No navio as horas passavam preenchidas por certa celeuma que contrastava com a quietude entorpecida da vila. Paralelamente ao aprovisionamento da expedição boliviana, não foram esquecidos instrumentos musicais, como Charango (um tipo de bandolim), a Zaponha, a Quena e a Tarka (espécie de flauta), a Huancara e a Caixa (percussão). Mesmo sem a participação feminina, alguns sempre ensejavam passos da Cueca ou Lhamero, ao som da melodia da Takirári, uma das mais populares canções bolivianas. Tudo isso regado à famosa Paceña, que já existia desde 1877 e à queimante Mocochinchi, uma cachaça que fazia cuspir fogo.
Dom José Paravicini resolve então balançar a vila, precisamente na véspera da virada do ano de 1898, quando alguns, na calada da noite, ainda jogavam conversa fora, regada a umas lapadas de Cocal para uns, Quinado ou Gin com Vermouth ou a cerveja amazonense XPTO, para outros.
Tudo ia bem, mas eis que estronda de repente, um pavoroso e aterrorizante estampido, de fazer tremer nas árvores as mais encravadas arborícolas (preguiça), elucidando de súbito como seria o Apocalipse. Houve até quem se lançasse do assento, tal a intensidade da grave detonação do apito do gaiola.
Passado o susto, embora não ainda refeitos do terrível sobressalto, os moradores da Vila Antimarí certificaram-se que aquela viagem do “Rio Tapajós” não se tratava de finalidade comercial, mas de objetivo de estabelecer Posto Aduaneiro nos rios Acre, Purús e Iaco, inclusive tomar posse de um patrimônio, tudo isso com o descuidado consentimento do Governo brasileiro.
Atordoadas, confusas, entontecidas com o alvoroço do inesperado acontecimento, as pessoas acorreram, instintivamente, ao barranco, a fim de ver e entender a causa de tão estranho escarcéu.
Misturado com os demais habitantes, também atônito e surpreso, o advogado José de Carvalho, ao saber das primeiras informações de que o vapor transportava uma expedição boliviana, com a finalidade de instalar postos aduaneiros, estranhou não haver recebido comunicação das autoridades brasileiras de Manaus.
As palavras pronunciadas em idioma desconhecido agravavam a perplexidade. Quem fora despertado, não compreendia o pesadelo. Quem tomara uns tragos a mais, cismou que talvez bebera sem moderação.
A verdade é que a compreensão dos fatos foi a única ausente, na noite de 30 de dezembro de 1898, na Vila do Antimarí. Ainda mais pelo fato de o “Rio Tapajós” levar pouco tempo atracado, adicionado a falta de esclarecimentos acerca da numerosa comitiva estrangeira que transportara.
Como não havia nenhuma embarcação ancorada no porto, Dom Paravicini, ansioso para por em prática seu propósito, mandou desatracar a embarcação e ordenou que o “Rio Tapajós” prosseguisse rio Acre acima. Acabara de tomar ciência de que umas duas dezenas de navios haviam subido naquela direção e todos, evidentemente, deveriam retornar superlotados de borracha, o que proporcionaria uma excelente arrecadação para o recém fisco boliviano.
Enquanto não fora estabelecido a base para a instalação do Posto alfandegário, o devido expediente neste sentido seria efetivado no próprio navio.
Puerto Alonso (atual Porto Acre) no início do século XX. Desenho do artista Hélio Cardoni Site Kaxiana |
Em 3 de janeiro de 1899 D. José Paravicini funda, literalmente, a localidade denominada “Puerto Alonso”, em homenagem ao Presidente da Bolívia, Don Severo Fernandes Alonso, hasteando pela vez primeira o pavilhão boliviano.
O espírito de audácia do conquistador boliviano refletiu-se de imediato, numa região de espessa floresta, praticamente impenetrável em muitos pontos, rica em árvores colossais, onde destacavam-se as nativas seringueiras, castanheiras, cumarus, louros e muitas e muitas outras, símbolos de economia que ajudaria a fixação do homem à terra.
Tão logo aprovou a localização para sua base, D. Paravicini dividiu sua expedição em grupos destinados aos afazeres – de desmatamento, de construção e de burocracia. A prioridade para a efetivação dos trabalhos continuaria sendo a arrecadação de impostos. Para tal, o “Rio Tapajós” seria utilizado como posto alfandegário ambulante.
Enquanto as devidas providências eram tomadas em terra, inclusive com a participação de alguns habitantes da redondeza, o vapor deslocara-se rio acima e logo ao completar uma curva, é avistado, encalhado num baixio, o vapor “Franklin”, no qual achavam-se duas autoridades amazonenses – O Juiz de Direito da Comarca e o Superintendentes da Vila Antimarí, Coronel Francisco Monteiro de Souza Júnior.
As autoridades brasileiras estranharam o pavilhão boliviano tremulando no mastro de um navio brasileiro. Maior impacto tiveram quando do “Rio Tapajós”, ao aproximar-se, apresentaram-se um grupo de estrangeiros, ocasião em que D. Paravicini, em aparente autoritarismo, dera conhecimento a todos, do propósito que o levara àquele lugar, informando-os, sobretudo do encerramento das atividades atribuídas aos brasileiros naquela região, passando todos os encargos para a responsabilidade da Bolívia.
Sempre tocado pelo sentimento de patriotismo, D. Paravicini julgava estar na Bolívia, motivo pelo qual experimentava a alegria de navegar e pisar em território pátrio, após inúmeras contrariedades vividas na empreitada a que propusera-se.
Em aditamento ao objetivo da ocupação, a autoridade boliviana cientificara ao Comandante do “Franklin”, Tenente-honorário Joaquim Sarmanho, acerca da instalação do posto alfandegário, entregando-o a notificação para o devido pagamento, tão logo descesse o rio, com destino a Manaus.
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* José Augusto de Castro e Costa é cronista e poeta acreano. Mora em Brasília e escreve o Blog FELICIDACRE.
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