Segue-se a todo
tipo de tragédia o pleito por justiça dos que sofreram suas consequências.
Muitas vezes as pessoas prejudicadas, até mesmo com a morte de alguém próximo e
querido, clamam por justiça publicamente, e silenciam sobre seu intenso
sofrimento íntimo.
E que justiça
pedem? A da área pública, do direito, que as leis se cumpram e que haja
punição. Isso raramente acontece.
Por que então,
essa unanimidade em exigir justiça?
Justiça implica em
reparação do dano, o que provavelmente consola. Justiça implica em perda de um
bem do acusado (dinheiro, com multa; prisão, com perda da liberdade), que a
culpa seja reconhecida publicamente, e que o equilíbrio anterior ao delito seja
recuperado, ou seja, que cesse pelo menos no terreno moral e legal o ato
prejudicial.
***
Vejamos três filósofos da antiguidade clássica e como entendiam a
justiça:
Sócrates foi injustiçado, e a injustiça veio de um tribunal constituído
por membros que representavam as dez tribos de Atenas e condenou Sócrates à
morte. Como pode um sábio ser condenado sem que tivesse cometido crime
algum? Sócrates incomodava com suas ideias e seu modo de vida, desapegado
de bens materiais, dedicado apenas à educação e à formação da juventude. Os
jovens o admiravam, o seguiam, ouviam-no e o respeitavam. Qual era seu método?
Questionar tudo e todos, inclusive os poderosos. Para Platão a justiça
existe apenas se cada classe social ocupar sua devida função, o seu dever,
o que melhor se ajustar à natureza de cada um. Todos cumprindo suas
obrigações o Estado é justo e feliz. Onde houver injustiça, no indivíduo ou no
Estado, haverá tumulto, falta de controle, desarmonia. A justiça garante a
cada um o que lhe é devido, ela assegura o exercício da atividade para a qual
se é mais apto e que lhe cabe no Estado. É injusto o Estado em que uma
classe pretender se sobressair às outras, ou pretender ser mais feliz que as
outras. As leis foram feitas para estabelecer o bem de todos. O
bom governante segue as leis.
Para Aristóteles,
as sociedades nasceram da reunião de várias aldeias, organizadas para a
conservação da vida e para a busca do bem estar. Esse modo de organizar é
próprio à espécie humana, sendo “o homem naturalmente feito para a sociedade
política”, diz Aristóteles em A Política. Uns precisam dos outros,
o homem civilizado, vivendo em sociedade, criou leis e justiça.
***
Quando é que o conceito de justiça sai do âmbito político, em que ela serve a todos, é a virtude do bom governo e do bom governante? Quando é que ela fica circunscrita ao âmbito das leis e do direito? A grande mudança se deu com as sociedades modernas que precisam e devem preservar a vida.
A concepção moderna de justiça muito deve a Rousseau, a sociedade nasce quando o equilíbrio do estado de natureza é rompido com o surgimento da posse: isso é meu, diz o mais forte. O restabelecimento do equilíbrio, ou seja, a justiça, irá depender de leis para todos os cidadãos, surge o direito civil em consonância com a vontade geral, pela qual as formas de associação defendem as pessoas e seus bens.
É esse sentimento de cidadania que se tem hoje, nos percebemos como pessoas jurídicas, contribuidores por meio de impostos, com direito a voz e voto, esses são os esteios do que se entende por justiça. É mais do que sociedade equilibrada, mais do que se exige de um bom governante, é a restauração de uma perda que poderia ser evitada se leis fossem cumpridas, se regras constituídas para defesa da vida fossem seguidas. Essa violação do direito à vida, à tão propalada segurança (ver postagem anterior) que causa tanta indignação e que deixa as pessoas à descoberto, como que à deriva.
PS: esta postagem é uma homenagem às recentes vítimas da inércia e incompetência do poder público, e da ganância de alguns.
* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.
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