terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O DIA QUE NÃO QUERIA ACABAR

Leila Jalul
Site Lima Coelho 


Por dois dias seguidos, tanta era a excitação, que Nicomedes Alexandrino Só de Barros não pregou as pestanas. Ou sua vida mudaria, ou... Melhor nem pensar. 

Naquela sexta-feira, impreterivelmente, teria a resposta sobre se ganharia a viagem para o Canadá. Ou não. 

Jadir Faria Lima, seu concorrente, por ser mais jovem, até poderia ter mais chances. Não quis deixar, entretanto, de considerar que as empresas privadas, de um modo geral, também premiam a experiência. 

Levantou cedo, fez a barba no capricho e tomou um banho detalhado. Nenhuma impureza, nenhum fio de cabelo fora do lugar haveria de atrapalhar seu destino. O blazer cinza, sem qualquer amassado inoportuno, estava junto com as demais peças novas que iriam compor o impecável figurino. Perfumou-se, olhou-se pela derradeira vez no grande espelho, calçou o cromo alemão tinindo de novo e desceu as escadas pisando macio. Não queria ser visto e nem atrapalhado por quem quer que fosse.
Qual nada! 

Casado há vinte e três anos com Eunice Rosa Só de Barros, pai de duas meninas de dezenove e dezessete anos, respectivamente, Juliana e Jeanine, e de um menino de oito, o Juninho, com idade mental de quatro, nunca deixou que nada a eles faltasse, inclusive carinho. Eunice, a esposa, sem aparente razão havia se tornado uma pessoa estúpida e insaciavelmente consumista. Abrisse o bico sobre a possível promoção, já no outro dia, nem que a mula tossisse, um colar de pérolas estaria pendurado em seu pescoço ou um carro zerado estacionaria na garagem da casa. Os filhos, não! Não teve maiores problemas com nenhum deles, à exceção de Juninho, que mereceu cuidados especiais desde a mais tenra idade. 

E foi Juninho quem abordou o pai, bem quando este saía para a importante reunião que decidiria seu futuro na empresa. 

- Pai, o Tuco está tristinho. Leva ele para o veterinário, leva? Manda dar uma tosa e um banho, tá legal? Acho que ele precisa tomar injeção, tá bom? 

Nicomedes ainda pensou em dizer não. Mas, diante daquela ternura, embrulhou o Tuco numa toalha de mesa e se foi. A clínica ficava no caminho, afinal. Teria tempo suficiente para estar na reunião em tempo mais que hábil. 

Faltando três minutos para a hora marcada, passou novamente no banheiro, corrigiu uma mecha branca de cabelo que teimava aparecer e deu aquela bochechada com o antisséptico bucal preferido. Mais um jato de perfume e, à mesa de reunião, aguardou a abertura dos trabalhos e o veredito do diretor. 

Ganhou Jadir. Os seis meses de especialização em Toronto e a consequente e bem aquinhoada promoção seriam dele. Não há espaço para sentimentalismo em multinacionais. As empresas que aplicam o método japonês de administrar não gostam de fofocas e nem de lágrimas. Venceu Jadir por sua fluência perfeita na língua inglesa. E ponto final. Um aperto de mão entre os concorrentes selou o reconhecimento e a amizade. E foi encerrada a reunião para que todos retornassem aos afazeres normais. 

Dizer que Nicomedes ficou feliz e sem uma pontinha de inveja, fora de dúvidas, seria ajudar a engrossar a fila dos hipócritas. Um homem consciente de suas limitações de mérito, sem discussão, vale por dois. E Nicomedes sabia que seu domínio no inglês era bom. Na parte técnica, comparado ao de Jadir, era um pouco menor. Ainda assim... 

De volta às metas do dia, conferiu seu correio eletrônico. Da esposa Eunice, por baixo, uns trinta torpedos no aparelho celular e mais outro tanto de e-mails solicitavam a Nicomedes que, urgentemente, mandasse três quilos de costelas de porco para o almoço. Costelas magras, diziam as solicitações. Num único retorno, sem grandes explicações, o derrotado Nicomedes avisou que não poderia estar em casa para o almoço. Pelo fato de não ter comunicado nada do seu dia e das ambições de projeção frustradas, não deu maiores esclarecimentos àquela que dele exigia além do razoável.

Antes de encerrado o almoço, como prêmio de consolação, ganhou uma quinzena de descanso numa praia do litoral norte de São Paulo, com direito à companhia da esposa e filhos. Agradeceu de coração, voltou para a empresa e continuou a rotina do dia. 

Ao sair do trabalho, sem revoltas, sentiu-se pesado. Sabia que não haveria mais tempo e oportunidades para o que esperava fossem suas realizações pessoais. Não tinha mais idade para sonhos. E então, acabrunhado, pensou no amigo Aristeu Holanda para uma conversa de final de tarde. O amigo saberia ouvi-lo. Marcaram um drink num bar da região da Avenida Paulista, levaram um papo agradável e só então, por volta das 10 da noite, rumou para casa. 

Ainda na porta, antes mesmo de transpô-la, encontrou Juninho choroso. 

- Pai, cadê o Tuco? 

- Meu filho, o Tuco teve que ficar na clínica. O Dr. Marinho disse que ele está com verminose e só pode dispensá-lo amanhã. Vá dormir, está bem? Amanhã o Tuco voltará. 

Nicomedes arrependeu-se da mentira. Como pôde esquecer o Tuco? Eunice, a esposa, lhe virou a cara, como se fosse um criminoso sem direito a perdão. Nada foi pior quando esta lhe contou que a filha Juliana, cheia de rebeldia, havia se trancado no quarto com o namorado que conhecera há três meses e com quem se dizia casada. A mais nova, Jeanine, também trancada em seu quarto, felizmente, apenas estudava com algumas amigas para o vestibular de medicina. A casa estava em processo de forte terremoto. 

De temperamento calmo e avesso a gritos, Nicomedes pegou o jornal da manhã, do qual não lera sequer as manchetes e, quando pensou-se em paz, escutou mais uns berros da esposa. Eunice falava e falava, batendo nas mesmas teclas, numa repetição cansativa, principalmente para aquele dia. 

- Nicomedes, você não passa de um imprestável! Você não pensa na família. Quer tudo para si. Um imprestável! Cadê as costelas de porco? Cadê o Tuco do seu filho? Infeliz de quem vive com você! De nada valeu o meu esforço em lhe domesticar. Burro velho e empacado! Desgraça de vida! 

- Eunice, deixa que te conte o meu dia. Não foi meu melhor dia. Nunca vi as horas se multiplicarem tanto! Espera! 

- Espero nada! Antes de querer justificar o injustificável, vá ao quarto de Juliana e ponha aquele vagabundo pra correr. Juliana é sua filha, esqueceu? 

- Eunice, estamos no século XXI. Juliana é maior, pode ter vida sexual ativa e não devemos nos envergonhar disso. Me incomoda o fato de ser tão rebelde e respondona. No mais... Pense: não é melhor ela estar aqui conosco e na sombra da nossa casa? Sente-se aqui! Hoje... 

- Hoje, exatamente hoje,você foi o mais inútil dos homens! Esquecer o Tuco? Juninho passou o dia triste e choroso! Que merda de pai você é? Onde estão as costelas de porco? E se eu não tivesse providenciado outra comida? Ficaríamos com fome? 

- Desisto, Eunice! 

- Desista! Os fracos desistem. Sempre! 

Nicomedes, rendido, desistiu de contar seus anseios de afirmação. Desistiu de dizer que queria ser melhor e garantir o futuro de todos.. Que desejava banhar-se de estima e crescer na empresa. Que nada! Calado seria melhor. Calado queria dormir e, de tão arrebentado das emoções do dia que não mais queria acabar, pensou sumir. Ou até morrer. Nunca um dia foi tão grande! 

Já no quarto, com o ambiente mais acalmado, quis usar do poder de sedução para dissolver o clima. Aproximou-se de Eunice, puxou-a pela cintura, enlaçou-a com os braços e tentou beijá-la. Bruscamente, quase aos pontapés, foi rejeitado e expulso do ambiente. Não mais reconhecia a Eunice de bons modos com quem estava prestes a completar o vigésimo quarto ano de vida em comum. Teria sido culpa dele aquela transformação? O fato que querer o melhor para si e para a família teria despertado nela a ansiedade pelo consumo e a obsessão pelo dinheiro? Teria deixado faltar amor no relacionamento? 

Sem respostas, recusando-se a ser mais humilhado, deitou-se no sofá. De cansado, de tão magoado, já de madrugadaconseguiu dormir e sonhar. 

Sonhou um sonho agoniado. Viu-se perambulando pelas ruas de São Paulo, buscando uma casa para morar. 

Nenhum sonho é mais sintomático e revelador de desejos de mudança. Nem precisa ser sábio para compreender que uma casa é sinônimo de refúgio, abrigo, tranquilidade e segurança. 

A primeira tentativa de busca, sem pestanejos, logo deixou para trás. A casa estava arruinada. Era de madeira suja, telhado vazado e com a pintura desbotada. A segunda, grande demais, mostrava os esgotos aparentes e fétidos. A terceira, ainda em construção, chegou a ver, no sonho,soltar-se uma viga sobre os operários, deixando-os gravemente feridos. A quarta, de aspecto simples, foi a que mais lhe agradou. Sentiu-se seguro e confortável. Seria a escolhida. Ao final do sonho, sem maiores detalhes e completamente fora de contexto, viu Eleonora, uma amiga de longas datas. 

Nicomedes acordou refeito. Desde que casara com Eunice, por questões morais, nunca foi tendente a ter amantes ou encontros ocasionais. Assim quisesse, era seu pensar, separaria da esposa e procuraria outros braços para repousar. 

De volta ao batente, esquecido do sonho, cumpriu suas obrigações de empregado. Aproveitou o horário de almoço, buscou o Tuco no veterinário e comprou as tais costelas pedidas pela esposa no dia anterior. Missão cumprida! 

Na parte da tarde, sem hesitação, ligou para Eleonora e marcou encontro. 

De noite, num bar da Avenida Consolação, a conversa foi alegre. E várias vezes repetida em outras ocasiões, até quando o namoro começou. 

O passeio no litoral norte foi bem aproveitado com ela. Daí pra frente outros encontros mais frequentes. Veio o divórcio e, hoje, mais de dois anos passados, estão juntos, numa casa simples e sem cobranças de joias, carros do ano e costelas magras para o almoço. Nicomedes achou-se, enfim, reconhecido e forte para tocar uma vida a dois. Sem domesticações, gritos, chicotes e explorações. 

Apenas um toque de saudade lhe atormenta o coração. Não há um dia, um único dia, por mais breve que este seja, que o filho Juninho e o cachorro Tuco lhe saiam da cabeça. Os encontros autorizados, no entanto, são plenos de alegria e paz.

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