SAGA
DA FAMÍLIA ALENCAR ARARIPE
Doces
Lembranças
Regina
Amélia D’Alencar Lino
Quando
criança, ouvia algumas vezes, no seio de
minha família, a história que meu avô Ovídio - a quem eu chamava carinhosamente
de Vovoinho -, aos nove anos de idade, após
levar uma surra de seu pai, fugira
de casa. Depois de algum tempo, minha tia Rita confirmou que a fuga ocorreu na verdade,
quando ele estava com aproximadamente 12 anos.
Durante
minha infância e adolescência, constantemente, pensava em meu avô como alguém
corajoso e decidido. Depois que cresci, inúmeras vezes, perguntei-me por quais
motivos uma criança criada em um ambiente intelectualmente promissor, com
família tradicionalmente constituída e com segurança econômica, abandonaria a
casa de seus pais para lançar-se ao mundo e viver como gente grande, em tão
difícil aventura. Talvez a resposta
estivesse na força de sua personalidade,
no tempero de seu DNA refletido em grande parte da família, mais acentuado nas
mulheres, o que não chega a ofuscar o
temperamento dos homens.
Consta,
nas histórias contadas, que em um navio que fazia a rota entre Fortaleza e o
estado do Amazonas , meu vovoinho embarcara como empregado, desempenhando todo tipo de serviço, desde a limpeza do
porão, convés, banheiros e tudo mais que fosse necessário, que estivesse ao seu
alcance.
Quem
o protegia naquele lugar? Era a pergunta que me intrigava e, às vezes, por ser
ainda tão menina, sentia vontade de chorar ao pensar que o avô que eu tanto
amava e que tanto nos protegia, pelo destino, pelas circunstâncias, interrompera precocemente sua infância - a fase
melhor da vida de uma criança - para trabalhar.
A
sua descendência é originária dos
primeiros Alencar vindos de Portugal para a Bahia por volta de 1650-1680, entre
eles Leonel, Alexandre e João Francisco.
Leonel
Alencar Rego, patriarca da família Alencar era o bisavô de Barbara de Alencar,
heroína republicana, primeira mulher
presa política do Brasil, por participar da Revolução Pernambucana (1817) e da
Confederação do Equador (1824).
Bárbara
de Alencar nasceu no sertão de Pernambuco, em 11 de fevereiro de 1760, em sua
adolescência mudou-se com a família para a vila do Crato, no Ceará. Ali, casou-se, em 1782, com o capitão português José Gonçalves dos
Santos, comerciante de tecidos, e naquela região do Cariri viveu a maior parte
de sua vida.
Bárbara
teve três filhos homens e uma filha: Tristão Gonçalves Pereira de Alencar,
Carlos José dos Santos, que tornou-se padre, José Martiniano de Alencar e
Joaquina Maria.
José Martiniano era
o pai do escritor José de Alencar e Tristão,
um de seus irmãos, era bisavô de meu avô materno, Ovídio de
Alencar Araripe.
Informações
colhidas do livro “Barbara e a Saga da
Heroína” esclarecem que o vocábulo Araripe
fora acrescentado ao sobrenome
Alencar, por iniciativa de Tristão Gonçalves de Alencar, segundo filho de
Bárbara, de quem herdou o espírito político e o temperamento nacionalista
revolucionário. Consta, ainda, que Tristão, assim procedera, por conta da forte admiração que mantinha
pela Chapada do Araripe, considerada penhor de fertilidade do Cariri.
Em
assim sendo, ressalta-se que todo Alencar, descendente do ramo de Tristão, é Araripe, donde se concluí que todo Araripe
é Alencar, embora nem todo Alencar seja Araripe.
Em
1824, Tristão de Alencar Araripe tornou-se Presidente da Província do Ceará e,
por ter participado das lutas pela Confederação do Equador, foi sacrificado,
juntamente com um irmão, o padre Carlos José dos Santos Pereira de Alencar por
ser solidário ao movimento, assim como outros familiares. A mãe de ambos,
Bárbara, escapou do martírio, ao conseguir fugir para Exu, em Pernambuco e, daí, protegida por seu irmão capitão Luis
Pereira de Alencar, retirou-se para Alecrim, no Piauí, onde faleceu aos 72
anos, na Fazenda Touro.
Portanto,
Bárbara de Alencar, a heroína, e José de
Alencar, o escritor, são, para nosso orgulho,
parentes próximos de meu avô Ovídio e não tão longe está o parentesco
com minha mãe Ovília de Alencar Lino
- Nini, casada com José Ruy da Silveira Lino,e
consequentemente de mim e de meus irmãos - Beth,
Ovídio e Ruy.
Oriundos da miscigenação de portugueses,
cearenses e pernambucanos, além do vinculo indígena/caboclo amazônico, acrescido pela influência racial africana advinda do Maranhão para o seio
de minha avó materna, foi no princípio
da década de 1940, que meus avôs chegaram
ao Acre.
Ao
tornar-se adulto, meu avô continuava a trabalhar pelos rios amazônicos -
Amazonas, Madeira, Negro, Solimões e Purus -, e, num dia de elevado calor,
quando o navio ancorou às margens do rio Madeira, no município amazonense de Borba,
ele conhecera, em uma pensão
simples, auxiliando a madrinha a servir refeições,
aquela que viria a ser a minha vovóinha
Amélia Lins, mais tarde Araripe.
Juntos,
ainda no estado do Amazonas, deram início a sua prole, formada pelos filhos Tarsila – (chamada de Pequenina),
Edson (Edinho), Amédio, Ovília (Nini, minha mãe), Domitila (Donita), Alencarina
(Lenca), Maria Rita, ficando para nascer em Rio Branco, Maria Amélia (Bebelia),
além das filhas falecidas quando crianças Edna (ao vir à luz) e Amelinha (aos oito meses de idade).
A
razão da mudança da família para o Acre prendeu-se ao fato das notícias que circulavam a respeito da prosperidade econômica, que o
então território federal oferecia. Dessa forma, em viagem em um navio gaiola
regional, que durara aproximadamente
quarenta e cinco dias, com muitas crianças e outros parentes, minha avó Amélia
desembarcou em Rio Branco, para junto
com meu avô, levar a efeito uma nova
vida que se apresentava, em todos os sentidos, desta vez distantes de suas
raízes.
A
viagem, ao que se sabe, transcorreu com algumas particularidades, como não
podia deixar de ser, entre alegrias, preocupações, que requeriam cuidados a
todo instante para que as crianças não caíssem n’água, ou não sofressem quaisquer outros tipos de
acidentes, além dos cuidados com as enfermidades a que eram acometidas,
decorrentes das intempéries e ataques de insetos.
Meu
avô, ao chegar ao ACRE, começou a
trabalhar como comerciante de gêneros alimentícios e estivas em geral.
Lembro-me, que em sua loja, a Casa
Araripe, vendia-se quase de tudo: açúcar, biscoito, cordas, arroz, feijão,
sabão em barra, latas de banha de porco, de manteiga Real, outros enlatados
como Viandada, sardinha Coqueiro, azeite, além das pélas de borracha, que eram
estocadas no espaçoso quintal da casa, as quais
exalavam um odor forte e
característico, compensado porém, pelo aroma de um pé de jasmim e por um
frondoso e carregado pé de serigüela, cujo sabor dos frutos trago, para sempre,
guardados na goela.
Pelo
comércio e pela residência dos meus avós
passavam os mais diletos amigos: o Parente Amigo, avô do Terri e Romerito
Aquino, o Rolinha, seu Waldomiro Moura, o Antão, o Quininho, que morava no
quartel da Polícia Militar, mas as refeições eram ofertadas por minha avó,
Chico Padeiro, seu Anastácio, seu Firmo, proprietário do navio João Gonçalves, que fazia a rota
Belém, Manaus e Rio Branco, e só dava o ar da graça quando o rio Acre enchia. O apito de sua
chegada, anunciava alegria, novidade, grande movimentação e um fervilhar de
negócios .
Além
da atividade comercial, meus avós adquiriram por compra uma grande extensão de
terra e ali edificaram a Fazenda Araripe,
modelo de propriedade, em que se dedicavam à criação de animais, cultivo de
muitas frutas, legumes e verduras para consumo próprio, destacando-se à venda
do leite das vacas.
Da Fazenda Araripe trago as melhores
recordações. As crianças eram o centro das atenções. A organização e o cuidado
com a fazenda eram exemplares. O zelo de minha avó Amélia com tudo que se
relacionava a propriedade era, já naquela época, de causar admiração.
Além,
das comidas saborosíssimas, como o carneiro preparado para o almoço aos
domingos, a banana comprida frita na merenda, a tapioca e o pão de milho no
café da manhã, além do copo de leite mungido, que éramos "obrigados"
a beber em companhia de meu avô, por
volta das seis horas da manhã nas férias
e fins de semana; a galinha caipira no almoço; os banhos de açude; a
convivência com os filhos e parentes dos
trabalhadores da fazenda; as noites em que brincávamos de manja sob o mais prateado luar; as fogueiras juninas que pulávamos
para nos tornarmos comadres; o espanto com a cobra Sucuri, que moeu e engoliu
um bezerro e deixou, à amostra, os chifres do novilho; a casa da Liquinha, a farofa de ovo da casa
da comadre Maria e do compadre Abdias, feita pela Sabá; a pescaria no açude do
seu Canuto; a alegria da casa da Missinoca e do Zé Pereira; a amizade da Jusa,
a caduquice com Franscisquinho, a presteza de seu Jaime; o Raimundo, o Dan, que
subia no pau de sebo; as lendas da Mula sem Cabeça, do Curupira, do Saci
Pererê; as longas cavalgadas em família. Tudo que posso chamar de felicidade e de fazer inveja aos personagens de Monteiro
Lobato.
Os
melhores dias eram todos, além daqueles em que nos reuníamos com os primos Lena
e Manoel, os amigos, tias Lenca, Rita, Bebelia, Maria José e agregados, para
conversar, cozinhar, brincar de barra, esconderijo, adivinhação e pique-pega
subindo nas mangueiras.
Minha
tia Rita cortava um cipó longo e forte e nos empurrava de um lado para outro do
igarapé São Francisco. Era uma farra, quando
éramos Jane e Tarzan; tia Bebelia tocava violão, ensinava-me a fazer
biscoitos para ofertarmos ao Papai Noel nas noites de Natal. Quando eu acordava
no dia 25 de dezembro contava a todos os detalhes do meu “encontro” com o bom
velhinho. Tia Lenca e Dr. Adib, médico ginecologista e obstetra, que
à época estavam noivos, prometiam levar-me junto para a lua de mel e eu sonhava
em lamber as paredes da lua.
No
Acre nossa família cresceu, agregada a
tantas outras, que também podem nesse espaço contar suas trajetórias, pois a
verdadeira e singular história do Acre foi construída pelo entrelaçamento dessa
bela e corajosa epopéia.
Certo
dia, quando morava em São Luis (MA), inspirada no tanka - modelo poético
japonês – manifestei meu amor à minha terra:
Doce
Acre,
As estrelas do teu céu brilhante, E as alegrias que me deste
Guardo-as em meu peito
Acalmando saudades.
* Regina Amélia D’Alencar Lino é socióloga e
escritora acreana, natural de Rio Branco. Foi também vereadora e deputada federal,
e vice-prefeita de Rio Branco – AC.
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