Luiz Felipe Jardim
A madrugada já ia alta. Logo o dia nasceria.
Clarões da luz do fogo de grandes fogueiras bruxuleavam nas finas folhas da mata densa. Os poucos
guerreiros da vila estavam ativos e atentos. Logo estariam em combate com gente
que desconheciam, mas que sabiam, de ouvir falar, serem errantes e gigantes,
impiedosos, seres descomunais e sanguinários que haviam recentemente surgido
por sobre as águas dos mares e dos rios de onde vivia a gente daquela vila e
seus parentes com seus amigos e inimigos, já havia longos anos e mesmo séculos.
A gente que estava oculta na floresta era a
invasora, vinha do norte gelado para saquear, pilhar, destruir, fazer escravos.
Aterrorizar. Já havia destruído algumas vilas e aldeias próximas e aprisionado
muitos vizinhos. Por isso, os da vila já haviam ouvido relatos apavorantes e sabiam
o bastante para estarem armados com todo o arsenal bélico com que podiam
contar. Quem sabe?... Com a ajuda generosa do sempre bom Deus e de alguns
Santos...
Mas, quando a deusa Sól em sua carruagem principiou a cruzar os céus cintilando a luz do dia, eles puderam ver... E, com o que viram, ficaram aterrorizados. Gigantes de mais de dois metros de altura, muitos arruivascados, todos seminus, quase todos pintados de preto ou cores escuras. Brandindo enormes espadas, lanças afiadas e pavorosos machados de ferro, bradavam gritos de guerra, vociferavam urros lancinantes que soavam à destruição e evocavam morte.
À frente de todos, no semicírculo que formavam na ampla clareira, estavam os mais assustadores. Eram os mais altos e fortes e os que mais alto e forte gritavam; eram os que mordiam seus escudos com ferocidade e lampejavam olhares de fogo; eram os que espumavam pelos cantos das bocas ao ranger os dentes. Eram, entre todos, os que mais pareciam... endemoniados. Além disso, tinham cabeça e dorso cobertos por peles de lobo, uivavam e ladravam como se lobos fossem e lutavam com a selvageria e a ferocidade dos lobos... Eram os homens-lobo que quase lobos estavam a ser.
Eram os Vikings e seus ferozes guerreiros, entre eles os guerreiros de Odin, os Berserkers, que, em meados dos anos 800, já invadiam a Europa continental.
Odin para os vikings, Wotan para os germanos, Woden para os anglo-saxões, em qualquer idioma seu nome tem o mesmo significado: fúria. Fúria incontrolável. Era assim, como que com fúria incontrolável, que se movimentavam os vikings naqueles anos que ficaram conhecidos como os da Era Viking.
Odin era um deus de contradições. Impetuoso, irascível; mas, sábio, ponderado. Havia trocado um dos seus poderosos olhos por generosos goles d’água da fonte da sabedoria. Por isso era o soberano da guerra e da morte, mas era, também, o deus, da magia, da sabedoria, da poesia. Sempre tinha perto de si algum de seus animais: os dois corvos, que lhe contavam tudo o que ouviam e viam; o seu cavalo de oito patas, que o transportava voando pelos céus; ou seus dois lobos, Geri e Freki (Glutão e Voraz), que o acompanhavam nas caçadas e lutas. Um deus com tanto poder, e que reinava sobre todos em Asgard, devia ter, na Terra, representantes dignos de sua ira, de sua valentia e força. E os tinha. Eram os berserkers. Um corpo de guerreiros especiais consagrados a Odin.
Assim como os vikings não eram um só povo, mas vários povos aparentados e desaparentados entre si, que se uniam e se desuniam, se amigavam e se inimizavam, mas que se movimentavam juntos, animados por interesses comuns, os berserkers também não eram uniformes, mas uma elite de soldados especiais e ferozes que, desde a infância, rigidamente treinados – inclusive em rituais mágicos e secretos, assumiam as qualidades ferozes e especiais de dois especialmente ferozes animais: ursos e lobos. Havia, portanto, duas categorias de berserkers: os guerreiros-urso, e os guerreiros-lobo. Essa casta de guerreiros magos ganhou muita importância na época das primeiras invasões vikings à Europa e agia como uma espécie de tropa de choque durante os combates. Em cada unidade de combate viking havia, pelo menos 12 berserkers.
Na verdade, os povos europeus da chamada Era Viking nunca conheceram os escandinavos como vikings, estes eram conhecidos como homens do norte e eram assim nomeados em diversos idiomas, como normandos (normandi) pelos francos. Os franceses também os chamavam de piratas e o clero quase sempre de pagãos. O substantivo viking, nas línguas nórdicas, se aplicava a expedição, e quem dela participava era um vikingr.
Vinham da Península Escandinava, das atuais: Noruega, Suécia e Dinamarca, lugares diferentes e distantes, mas próximos entre si pela língua, pela religião, cruzamentos étnicos e costumes de seus povos. Em suas comunidades de origem, eram muito mais livres que seus contemporâneos europeus que viviam imersos em proibições e restrições de toda sorte. A importância que davam à igualdade e à liberdade chamou a atenção de todos os povos dos lugares por onde passavam.
Versáteis, forjados, física e espiritualmente, nas rígidas condições naturais das ante-salas do círculo polar, os vikings eram assombrosamente empreendedores. Agricultores, guerreiros, marinheiros, mercadores, passavam de uma a outra dessas atividades com naturalidade e a exerciam com maestria.
Mas antes de tudo eram marinheiros. Suas experiências e criatividade os levaram já no séc. VIII, a projetar e construir o langskip, conhecido como DRAKAR, dragão, cada um consumia cerca de oitenta árvores, carvalhos de preferência, e pouco mais de um mês para sua feitura. Com as variações e adequações necessárias, o drakar conduziria os vikings por sobre as ondas das águas do mundo por mais de trezentos anos. Para isso, aperfeiçoaram a capacidade de “interpretar as formas e a direção das ondas; a direção das aves migratórias; temperatura e umidade dos ventos; as distintas e sutis tonalidades das águas”. Quando em alto mar, cantavam canções que falavam sobre os seus deuses, principalmente Thor e Odin. Contavam histórias dos antepassados, falavam das genealogias. Instruíam os mais novos, como os de 13 anos que, já adultos, podiam participar das incursões guerreiras. Outros, diziam, sabiam cantar canções ensinadas por Odin que, quando entoadas com a força correspondente, abriam terra, pedras e montanhas. O drakar era uma casa sobre as águas, um companheiro fiel que acolhia após duras jornadas.
Nos meados dos anos 800 as temperaturas
médias globais, que haviam caído muito durante os estertores do Império Romano,
e que foram causa dos deslocamentos de alguns povos ‘bárbaros’ – voltavam a subir
significativamente. As florestas setentrionais europeias, que haviam crescido
nos espaços abandonados a uma média de 300 metros ao ano, estavam agora
repletas de árvores, animais, boa água, enfim, continham o combustível
necessário, para a diversificação das atividades econômicas, para o crescimento
demográfico, para as inovações técnicas que as populações europeias iriam
desenvolver então.
Se, somente durante os últimos 100 anos produzimos mais alimentos do que toda a humanidade em 10.000 anos, por volta dos anos 1000 não era tão fácil produzir alimentos. A invenção do arado de ferro, a rotação trienal de culturas, a utilização do cavalo na agricultura (com o confortável bônus do recém-inventado estribo) trouxeram mais fartura à mesa europeia. Como consequência, a população aumentou significativamente em todo o continente muito embora a esperança de vida tenha permanecido na faixa de 35, 30 anos, com uma taxa de mortalidade entre 30/40 por mil habitantes adultos e entre 100/400 por mil crianças.
“Um baño al año no hace daño – Pero es mucho mas saña una ducha por semana”. Esse ditado parece um dialogo entre uma ‘viking’ e uma ‘francesa’. A grande maioria dos europeus realmente não tomava lá muitos banhos. Geralmente o seu primeiro banho do ano acontecia em maio, quando as temperaturas aumentavam com a primavera. A maioria dos casamentos era realizado no mês de junho, quando o tempo estava um pouco mais quentinho. Ainda assim, procurava-se perfumar as igrejas com incensos e com flores (inclusive a própria noiva) para melhorar o... astral dos noivos.
Os nórdicos tinham costumes diferentes. De um modo geral tomavam um banho por semana, geralmente no sábado, mas a primeira regra de cortesia para com um convidado era oferecer-lhe um banho. Depois o levava para um lugar de honra e ouvia atentamente suas histórias e...
...
O povo daquela vila não tinha a menor
capacidade para resistir ao assédio viking e foi totalmente massacrado. Os
guerreiros nórdicos abateram-se sobre ele como raios de Thor e fulminaram-lhe a
existência. Os escandinavos estavam somente de passagem, iriam saquear Paris.
Daquela vila queriam pouca coisa: algumas vacas, ovelhas, e mais algum ou outro
alimento para reforçar a despensa. Ali não havia metal e não estavam
interessados em fazer escravos naquele momento. Por isso mataram a todos que
encontraram, indistintamente, para que as vozes e as palavras daquele dia assustassem
a todos os que delas viessem saber. Mataram, saquearam, pilharam e se foram...
Floresta adentro... Rio Sena acima.
Naquele dia algo insólito aconteceu: um berserker tombou. Já havia sido ferido na batalha, mas, como todo guerreiro-lobo, nada sentira. Havia lutado com afinco, partira um oponente do crâneo ao umbigo com um só golpe de espada. Matara crianças a machadadas enquanto gargalhava para suas mães, depois matara as mães gargalhando e uivando em direção ao templo cristão. Havia cantado canções mágicas que paralisam armas de adversários. Também havia uivado a canção ‘sob os escudos’ que imuniza e dá força aos companheiros. Havia pronunciado palavras que se transformam em lava de vulcão no peito dos oponentes. Havia mesmo sentido a honrosa presença de Odin, já que sua espada, por alguns instantes, ganhara vida e abatera dois inimigos sem que ele sentisse o seu peso. Havia lutado como um berserker, enfim, como o feroz homem-lobo que sabia ser.
Mas a batalha havia sido muito breve. A pobre
gente da vila logo estava trucidada. Os guerreiros vencedores selecionavam os
despojos, regozijavam entre si, incendiavam as casas e voltavam para os seus
barcos enquanto um solitário berserker voltava para a floresta. A batalha havia
sido muito breve para sua fúria, para seu ‘berserkergang’, o estado alterado de
estrema ferocidade que os caracteriza em combate. Nessas horas o berserker deve
arremessar sua fúria, o acúmulo de força sólida, sobre árvores, pedras ou
animais, longe de seus companheiros para evitar feri-los. E foi assim que aquele
fez. Golpeou árvores e pedras durante horas, até quase o anoitecer.
Quando o estado de furor cessava, o berserker podia entrar num estado de torpor, de esgotamento que o fazia extremamente vulnerável. Era o único momento em que podia ser facilmente vencido. E foi nesse momento que uma lança o feriu mortalmente. Veio por suas costas, atingiu-lhe o coração. No mesmo instante soube que morreria, e estava enormemente alegre por isso. De súbito soltou um uivo lancinante e partiu para cima dos três guerreiros que o feriram. Sua espada novamente ganhara vida e abateu os celtas com a fúria de Wotan.
Depois, o homem-lobo tombou sobre uma grande pedra na floresta densa.
Incontinente, agarrou com força o colar com o martelo de Thor que trazia no pescoço e que ganhara de sua mãe quando lhe nasceu o primeiro dente. Era Gunnar Ericson (Guerreiro Filho de Eric), depois chamado de Gunnar o Andarilho, por ser tão grande e musculoso que nenhum cavalo era capaz de conduzi-lo. Tinha 32 anos, nascera em uma das ilhas da Noruega.
Numa noite do inverno dos seus quatro anos recitou o seu primeiro poema, era tão meigo e atraente que todos queriam ouvi-lo, e a todos ele atendia. Aos sete anos matou o seu primeiro adversário, um homem que ousou ofender sua mãe quando seu pai caçava baleias em alto mar. Aos oito anos bebera sangue de lobo pela primeira vez e aos nove comeu-lhe as carnes. Fez-se um berserker. Era excelente companheiro e notável cantor, tanto de sagas como de canções mágicas. Conhecia com precisão as histórias e as genealogias dos clãs com os quais se relacionava. Todos queriam estar no barco em que estaria, pois era certeza de ótima companhia. Sua espada de noventa centímetros, fora presente de Odin ao mestre do guerreiro-mago que lhe iniciou e só sua lâmina de dois gumes valia mais de vinte vacas de leite, ademais tinha empunhadura de ouro e prata ricamente decorada com pássaros e serpentes acrescentadas pelos três guerreiros que a possuíram. Odin tinha por ela grande apreço, já que eventualmente a manejava em combates, como naqueles últimos em que Gunnar participou.
A vida de cada pessoa é um fio no tear das Nornas, as deusas que tecem o destino dos humanos. O tamanho de cada corda é a duração da vida da pessoa a que corresponde. O tamanho da corda de Gunnar era aquele: ia da noite do seu nascimento, até àquele momento.
Ofegante sobre a pedra, Gunnar o Andarilho viu o Arco-Íris aviventar-se nos céus. Sobre a ponte colorida e brilhante viu as Valkírias que vinham escolher os guerreiros mortos que levariam para o salão de Odin, o Valhala. Sentiu mãos suaves e firmes que o tocavam. Tão suaves e ternas como só as suaves mãos divinas sabem e podem ser. Sobre o cavalo branco de uma Valkíria subiu aos céus e atravessou o Arco-Íris. Chegou ao Valhala, o Salão de Odin. Não era mais um berserker, agora era um Einheirar, um guerreiro morto em combate que lutaria ao lado de Odin no dia do Ragnarok, o dia da Grande Batalha, A Batalha Final.
Recebidos pelos filhos de Odin, os guerreiros
eram conduzidos até o trono do deus Pai que os saudava tecendo elogios ao seu
valor. Mas, quando um dos seus guerreiros prediletos chegava a Asgard, Odin se
levantava de seu trono e ia recebê-lo na grande porta do Valhala para dar-lhe
as boas vindas. Gunnar o Andarilho teve essa honra, foi recebido pessoalmente
por Odin... Woden... Wotan... A Fúria incontrolável...
...
Na floresta, logo após a morte do berserker,
quando a lua cheia já apontava no horizonte, uma sacerdotisa celta sobrevivente,
movida pela magia dos seus deuses – vizinhos dos deuses e dos céus vikings – se
acercou do corpo do guerreiro caído sobre a grande pedra. Ao tocá-lo um raio
abateu-se sobre os dois. Ambos desapareceram. Nunca mais foram vistos. Mas sabe-se
como sempre viveram desde então. Mesmo que ninguém os veja, todos sabem que são
um casal de lobos e que seu eterno ofício é o de reunir ossos, ossos de lobos enterrados
nas florestas ou espalhados sobre o chão. Quando os ossos reunidos completam o
esqueleto de um lobo, estes ganham carne, pele e alento. E correm para o mundo para
serem lobos, o que sempre foram e sempre serão... Lobos como em Asgard são
Freki o Voraz, e Geri o Glutão... Os lobos de Wotan.
* Luiz Felipe Jardim leciona História e tem especialização em Demografia.
** Leia aqui outros textos de Luiz Felipe Jardim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário