Platão (428-348 a.C.)
A morte de Sócrates (1787), de Jacques-Louis
David.
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Alguém, talvez, pergunte: “Não te pejas, ó
Sócrates, de te haveres dedicado a uma ocupação que te põe agora em risco de
morrer?” Eu lhe daria esta resposta justa: “Estás enganado, homem, se pensas
que um varão de algum préstimo deve pesar as possibilidades de vida e morte em
vez de considerar apenas este aspecto de seus atos: se o que faz é justo ou
injusto, de homem de brio ou de covarde. No teu entender, não teriam méritos os
semideuses que pereceram em Tróia; entre eles o filho de Tétis, que desdenhava
tanto o perigo em confronto com o passar por vergonha. Querendo ele matar a
Heitor, sua mãe, uma deusa, lhe disse parece que mais ou menos estas palavras:
“Filho, se matares a Heitor para vingar a morte de teu amigo Pátroclo, tu
próprio morrerás; pois, dizia ela, o teu destino te espera logo depois de
Heitor.” Ele, apesar de ouvir a advertência, fez pouco caso do perigo da morte
e, porque temia muito mais viver com desonra, respondeu: “Morra eu assim que
castigue o culpado, mas não fique por aqui, alvo de risos junto das curvas
naus, como um fardo da terra.” Cuidas que ele se preocupou com o perigo da
morte?” A verdade, Atenienses, é esta: quando a gente toma uma posição, seja
por a considerar a melhor, seja porque tal foi a ordem do comandante, aí, na
minha opinião, deve permanecer diante dos perigos, sem pesar o risco de morte
ou qualquer outro, salvo o da desonra.
Grave falta, Atenienses, teria cometido eu,
que, em Potideia, em Anfípolis e Délio, permaneci, como qualquer outro, no
posto designado pelos chefes por vós eleitos para me comandar e ali enfrentei a
morte, se, quando um deus, como eu acreditava e admitia, me mandava levar vida
de filósofo, submetendo a provas a mim mesmo e aos outros, desertasse o meu
posto por temor da morte ou de outro mal qualquer. Seria grave e então deveras
com justiça me haveriam trazido ao tribunal pelo crime de não crer nos deuses,
pois teria desobedecido ao oráculo por temor da morte e supondo ser sábio sem
que o fosse.
Com efeito, senhores, temer a morte é o mesmo
que supor-se sábio quem não o é, porque é supor que sabe o que não sabe.
Ninguém sabe o que é a morte, nem se, porventura, será para o homem o maior dos
bens; todos a temem, como se soubessem ser ela o maior dos males. A ignorância
mais condenável não é essa de supor saber o que não sabe? É talvez nesse ponto,
senhores, que difiro do comum dos homens; se nalguma coisa me posso dizer mais
sábio que alguém, é nisto de, não sabendo o bastante sobre o Hades, não pensar
que o saiba. Sei, porém, que é mau e vergonhoso praticar o mal, desobedecer a
um melhor do que eu, seja deus, seja homem; por isso, na alternativa com males
que conheço como tais, jamais fugirei de medo do que não sei se será um bem.
Portanto, mesmo que agora me dispensásseis,
desatendendo ao parecer de Ânito, segundo o qual, antes do mais, ou eu não
devia ter vindo aqui, ou, já que vim, é impossível deixar de condenar-me à
morte, asseverando ele que, se eu lograr absolvição, logo todos os vossos
filhos, pondo em prática os ensinamentos de Sócrates, estarão inteiramente
corrompidos; mesmo que, apesar disso, me dissésseis: “Sócrates, por ora não
atenderemos a Ânito e te deixamos ir, mas com a condição de abandonares essa
investigação e a filosofia; se fores apanhado de novo nessa prática, morrerás”;
mesmo, repito, que me dispensásseis com essa condição, eu vos responderia: “Atenienses,
eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vós;
enquanto eu tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos
dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em toda ocasião àquele de vós que
eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um ateniense, da cidade
mais importante e mais respeitada por sua cultura e poderio, não te pejas de
cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te
importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua
alma?’ ” E se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora
deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e confundir e, se me parecer que
afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar
menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a quem eu
encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos,
porque me estais mais próximo no sangue. Tais são as ordens que o deus me deu,
ficai certos. E eu acredito que jamais aconteceu à cidade maior bem que minha
obediência ao deus.
Outra coisa não faço senão andar por aí
persuadindo-vos, moços e velhos, a cuidar tão aferradamente do corpo e das
riquezas, como melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens
particulares e públicos. Se com esses discursos corrompo a mocidade, seriam
nocivos esses preceitos; se alguém afirmar que digo outras coisas e não essas,
mente. Por tudo isso, Atenienses, diria eu, quer atendais a Ânito, quer não,
quer me dispenseis, quer não, não hei de fazer outra coisa, ainda que tenha de
morrer muitas vezes.
PLATÃO. Defesa de Sócrates. São Paulo: Abril Cultural, 1972 (Col. Os
Pensadores) p.20-21
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