quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O REGATÃO ÁRABE

Jorge Kalume (1920-2010) 


Os árabes, predominantemente os libaneses e sírios, participaram de forma eficaz e positiva do desbravamento e colonização do Acre, inclusive de maneira espontânea, fizeram parte do Exército de Plácido de Castro e vários foram considerados heróis.

Chegados ali, no século 18, juntamente com os nordestinos, embora de hábitos e idiomas diferentes, logo se identificaram com os nativos, adaptando-se ao meio que os acolheu. Jovens, robustos, otimistas e corajosos, souberam vencer as dificuldades numa terra ainda imatura. Dedicaram-se às mais variadas atividades: pescadores, estivadores, barbeiros, comerciantes, seringalistas, pecuaristas e trabalhadores braçais. Contudo, a vocação fenícia influenciou a maioria, que optou pelo comércio, incialmente como mascates, transportando pesadas cargas às costas pelo interior dos seringais ou regateando pelos rios e igarapés.

Grande parte era destituída de cultura e por isso assimilava com dificuldade o nosso idioma, dir-se-ia apenas o suficiente para se comunicar. Conhecemos alguns lances até pitorescos e merecedores de registro, porque muitos, na sua ingenuidade linguística, procuravam se expressar de qualquer maneira.

Nesse rol encontrava-se o libanês Jorge Kury, percorrendo o rio Acre em sua canoa movida a varejão e faia, com o toldo de palha de forma convexa, no qual, internamente, eram colocadas pequenas prateleiras, onde expunha as bijuterias, tecidos, remédios e perfumes, tomando o ambiente, embora desconfortável, convidativo aos olhos de quem se aproximasse daquele improvisado bazar flutuante... Ao avistar uma barraca, logo ancorava e assoprando a buzina, instrumento de chifre de boi, para avisar ao morador de sua presença no porto. Geralmente, o seringueiro se encontrava distante, na sua faina diuturna, percorrendo as “estradas”, extraindo látex das seringueiras e preparando a borracha. Ao som do apito, raramente ouvido, aparecia a mulher, como sempre acompanhada dos filhos ainda menores.

Ela logo se acocorava, cuidadosamente, com o vestido de chita formando um seio entre as pernas e fumando invariavelmente cachimbo, com a fisionomia externando júbilo, pois aquela pessoa mesmo desconhecida, servia para dar-lhe alento e quebrar a rotina do cotidiano. No seu universo, ante o inusitado, o mascate dava-lhe a dimensão de um ser superior...

Entre a margem do rio e o topo do barranco, na fase estival, há uma diferença de mais de cem metros. À subida íngreme, somada à fadiga da viagem, pela distância e pelo desconforto como uma das tônicas do seu dia-a-dia, desanimava qualquer Sansão... Kury, ao avistar a mulher, mesmo diante da sua abstinência sexual, seu ânimo era apenas no pensamento, pois sabia reprimir o desejo, em respeito à moral e à ética,  reconhecendo que qualquer gesto afrontoso traria consequências negativas  ao seu comércio e à sua própria vida.

Mas o diálogo, após uma longa viagem, na qual cantarolava para afugentar a solidão, era imediatamente mantido à distância e aos gritos, com expressões simplistas, porém suficientes para ser compreendido.

– Cumade, cumpade taí?

– Tá não!...

– Bucê-tá-bôa?

– Tô, cumpade!...

– Qué cumbrá alguma côssa?

– Sei não!... O Chico num tá!...

E o mascate, na ânsia de vender, com fisionomia risonha, insistia:

– Tem tudo: chita, morim, voal, algodão, café, sal, pimenta, sabonete Bristol, sabão Zebu e Borboleta, arnica brá bancada, esbecífico Bessoa brá bicada de cobra, outro específico brá doença de menino, bílula do Dr. Matos, jalaba e bião, de vida, salsabarrilha, água inglesa brá mulher barida, mururé, cabeça de negro brá limbar o sangue, vinho fortificante Dr. Silva Araújo, cafiasbirina, berfume e brilhantina francesa da marca fô-de-amô...

Com a resposta negativa, desancorava e prosseguia sua viagem lenta, remando contra a correnteza e animado com o seu labor. Vendendo mercadorias e comprando peles silvestres, borracha, sernambi, caucho e castanhas, levando notícias como bálsamo àquelas criaturas simples, boas e distantes de tudo e de todos, ilhados nas selvas ínvias.

O “regatão” era por excelência uma figura singular e querida, que se afinava com a sua clientela. Era o mensageiro das informações, como se fora um novo anjo, trombeteando as boas novas... Muitas vezes fustigador, para dessa maneira usufruir resultados positivos, nem sempre compreendido, ante a concorrência que oferecia.

Podemos afirmar que era com; e a pertinência da sua atividade, somada à sua presença periódica naqueles confins, tinha o significado de seres vindos do céu!... 


KALUME, Jorge. Doces Recordações: crônicas. Rio Branco: s/e, 1995. p.21-23

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