sábado, 1 de abril de 2017

LEILA JALUL: textos esparsos

É HORA DE RELAXAR. SÓ UM POUQUINHO!
Leila Jalul

Não saí do Acre de forma tranquila. Saí quase fugida por me sentir ameaçada.
Seguinte é o resumo: ajudei a coletar provas contra um criminoso foragido dos EUA que cometia atos abomináveis contra pessoas indefesas. Juntei vídeos, documentos comprobatórios e a peçonha foi julgada, condenada e presa. Ponto!
De dentro do presidio, juntamente com outro bandido de altíssima periculosidade, foi montado um esquema para a eliminação de minha pessoa e de pessoas da minha família. Nada que eu pudesse comprovar. Mas, tomei precauções.
Pedi proteção policial e, dada a periculosidade do bandido e da gravidade dos fatos, obtive a proteção necessária.
Instalação de câmeras e a presença de dois homens da força especial, fortemente armados, cobriam os três turnos e, para a segurança de todos, recebemos orientações dos homens da segurança.
Recebemos senhas. Ou codinomes, como queiram. Eis a lista:
1 - A moça que cuidava da alimentação era QUENTINHA;
2 – O índio apurinã que morava em casa era TOURO SENTADO;
3 - Minha irmã recebeu o lindo apelido de SANTA MARIA;
4 – O irmão vizinho era JACA;
5 – O irmão mais novo era PADIM. E ia por aí.
E assim levávamos – os moradores da casa -, uma vida de sobressalto.
Do alto da torre do MIRANTE CHICO MENDES – um olhar para o futuro, que havia recém construído em minha simples casa, somente numa noite, as câmeras capturaram a circulação de seis motociclistas suspeitos..
Numa noite, era cedo ainda, a chuvarada amazônica alagou todo o terreno. A água entrava por todos os lugares. Nada demais não fosse eu ter tomado umas gotas de GUTALAK entregues pelo mocinho da farmácia e que recebeu a senha VENTO PRESO. As cólicas eram horríveis.
No quarto de hóspedes, sem ligação direta com o corpo da casa, somente eu e o índio apurinã. Ele assistindo um FLA X FLU e eu curtindo as cólicas.
Até que, de dentro do banheiro, pedi: menino, conta alguma coisa, pelo amor de Deus!
E me disse ele: 2 x 0.
- Pra quem, cacete?
Pro Flamengo, disse-me.
Pronto, o Gutalak fez efeito!
Somente assim, passada a chuva e a agonia, CLARA CROCODILO conseguiu dormir.
Sim, escolhi essa alcunha. Não é linda?
CLARA CROCODILO!
Pintura em tecido de Leila Jalul

Dona Doida
Adélia Prado

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

***

Dizem que a vida muitas vezes parece um romance, mas ela é uma realidade e é essa realidade que conto.
Zélia Gattai

***

ESTRANHAS MANIAS ESTRANHAS
Leila Jalul

Gosto de nomear coisas e lugares com nomes diferentes. Minha cozinha, por exemplo, é o senadinho. Arrumei um canto de jardim e nomeei Zélia Gattai. Ainda lá no Acre, já se vão anos, construí uma varanda suspensa e homenageei o herói do Acre com o suntuoso nome de Mirante Chico Mendes – um olhar para o futuro. E assim, de retalho em retalho, vou tecendo caduquices sadias.
Agora, no momento, trabalho num cantinho dedicado a Adélia Prado, minha ídola.
É uma espécie de pergolado anexo ao meu quarto. Por receber muito sol e chuva quase não andava por lá. A claridade me ofuscava. Cobri com telhas de plástico pintadas de verde. Logo o vento cruel arrancou tudo e abandonei a ideia de circular nele. Esperei ter dinheiro e hoje, por uma infeliz escolha (que não foi minha), a cobertura é de vidro temperado. O soneto ficou pior que a emenda e esta pior que o soneto: além da claridade, pelas barbas do faraó, o calor passava a impressão de caldeira. Um inferno!
Criei, juntamente com o Genilton, uma cortina de chita e um forro de TNT. Pronto! Não será mais um recanto ou aconchego, como cheguei a pensar. Será, sim, a Tenda Adélia Prado. Se alguém chamar de varandinha, direi: varandinha é a mãe!
E assim, afrontando toda a lógica da vida, Zélia Gattai tem um espaço aberto e Adélia tem uma tenda, quase um roncó de candomblé. E o mais grave: Adélia tem telhado de vidro! Importante é o carinho que tenho pelas duas.
É lá que me recolherei para fazer a cabeça. Vou orná-lo com alguidás, cabaças e plantas diversas para, de vez em quando, curtir minhas manias de Dona Doida e me inspirar para contar a realidade da vida.
Postarei fotos num futuro breve.
Axé!
Pintura em tecido de Leila Jalul
RUMO AO SUL

Antes de deitar tomou um copo de chocolate quente e uma torrada fina. Somente.
Sabia que a viagem seria longa e cansativa... Pouco importava! Calçou os meiões de lã, conferiu a mala e partiu rumo ao desconhecido do sul. Não saberia dizer o destino.
O ônibus sacolejava e os precipícios eram de arrepiar o mais macho dos machos. Ela, confiante na habilidade do condutor, até sorria. E, silenciosamente, desdenhava dos gritinhos histéricos que ecoavam em cada curva perigosa. Machos frouxos!
Dá-se a primeira parada ao fim do que parecia uma eternidade. Ela desce e reconhece a casa dos amigos que há tempos não via. E decidiu ficar. Logo, quase instantaneamente surgem as crianças. De imediato se instala a festa de beijos, abraços e sorrisos. Lembranças rolaram soltas. Que juventude é coisa pra lembrar, deitar e deixar livre.
O frio era intenso. Buscou mais roupa e nada encontrou. Esqueceu a mala no cargueiro. Não quis incomodar os amigos e, num átimo de sabedoria foi ao boteco vizinho, pediu uma dose de conhaque que desceu queimando. Tinha cãimbras. Tinha fome e de nada reclamou. Sabia esperar.
Pouco mais tarde, juntaram-se todos, acenderam a pequena fogueira e, entre risadas, relembraram os tempos de banho no rio, de castigos com relhos e de alegrias velozes como os coriscos.
Pediram comida ao dono do boteco. Uma rodada de pães com filetes de jacas duras. Outra rodada de conhaque. Outra de pães com jaca dura. Ao todo foram quatro pedidos. Fartos, completos, foram ao destino do sono. Colchão mole e cobertas de penas de ganso fedendo a guardado. Ainda assim ela acordou gelada. Tinha os pés endurecidos ao ponto de não saber que eram seus.
Mas estava feliz. As crianças pularam sobre ela ao mesmo tempo e então pôde sentir o calor dos beijos verdadeiros. Sorriu até perder o fôlego. Também estava menina.
Despertou com dor de estômago. O pão com jaca dura nunca foi do seu cardápio. Ainda assim provou de instantes de felicidade, tomou banho de rio, lembrou o relho e viveu coriscos de alegria.
Pintura em tecido de Leila Jalul
CLARICE e eu


“Agora preciso de tua mão,
não para que eu não tenha medo,
mas para que tu não tenhas medo.
Sei que acreditar em tudo isso será,
no começo, a tua grande solidão.
Mas chegará o instante em que me darás a mão,
não mais por solidão, mas como eu agora:
Por amor.”
Clarice Lispector

*******

Já faz um tempo
que te abri as portas
te dei minha casa
meu corpo limpo
minha cama amiga
minha mesa farta
já faz um tempo
que estiveste louco
e me cobraste a companhia
que necessitavas
já faz um tempo
que tua mão me esbofeteou o rosto
por que te pedi a mão
e me negaste.
Leila Jalul

Obs. Encerrei o poema com esse trecho da música Mesmo distante – Ira.

“se você se lembra
então feche os olhos e sinta
onde quer que esteja
o tempo vai voltar

e as nuvens serão velhas paisagens
e eu estarei apertando a sua mão
eu estarei ao seu lado”

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