Leila Jalul
Não saí do Acre de
forma tranquila. Saí quase fugida por me sentir ameaçada.
Seguinte é o resumo:
ajudei a coletar provas contra um criminoso foragido dos EUA que cometia atos
abomináveis contra pessoas indefesas. Juntei vídeos, documentos comprobatórios
e a peçonha foi julgada, condenada e presa. Ponto!
De dentro do
presidio, juntamente com outro bandido de altíssima periculosidade, foi montado
um esquema para a eliminação de minha pessoa e de pessoas da minha família.
Nada que eu pudesse comprovar. Mas, tomei precauções.
Pedi proteção
policial e, dada a periculosidade do bandido e da gravidade dos fatos, obtive a
proteção necessária.
Instalação de câmeras
e a presença de dois homens da força especial, fortemente armados, cobriam os
três turnos e, para a segurança de todos, recebemos orientações dos homens da
segurança.
Recebemos senhas. Ou
codinomes, como queiram. Eis a lista:
1 - A moça que
cuidava da alimentação era QUENTINHA;
2 – O índio apurinã
que morava em casa era TOURO SENTADO;
3 - Minha irmã
recebeu o lindo apelido de SANTA MARIA;
4 – O irmão vizinho
era JACA;
5 – O irmão mais novo
era PADIM. E ia por aí.
E assim levávamos –
os moradores da casa -, uma vida de sobressalto.
Do alto da torre do
MIRANTE CHICO MENDES – um olhar para o futuro, que havia recém construído em
minha simples casa, somente numa noite, as câmeras capturaram a circulação de
seis motociclistas suspeitos..
Numa noite, era cedo
ainda, a chuvarada amazônica alagou todo o terreno. A água entrava por todos os
lugares. Nada demais não fosse eu ter tomado umas gotas de GUTALAK entregues
pelo mocinho da farmácia e que recebeu a senha VENTO PRESO. As cólicas eram
horríveis.
No quarto de
hóspedes, sem ligação direta com o corpo da casa, somente eu e o índio apurinã.
Ele assistindo um FLA X FLU e eu curtindo as cólicas.
Até que, de dentro do
banheiro, pedi: menino, conta alguma coisa, pelo amor de Deus!
E me disse ele: 2 x
0.
- Pra quem, cacete?
Pro Flamengo,
disse-me.
Pronto, o Gutalak fez
efeito!
Somente assim,
passada a chuva e a agonia, CLARA CROCODILO conseguiu dormir.
Sim, escolhi essa
alcunha. Não é linda?
CLARA CROCODILO!
Dona Doida
Adélia Prado
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como
chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um
poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu,
molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona
tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
***
Dizem que a vida muitas vezes parece um
romance, mas ela é uma realidade e é essa realidade que conto.
Zélia Gattai
***
ESTRANHAS MANIAS ESTRANHAS
Leila Jalul
Leila Jalul
Gosto de nomear
coisas e lugares com nomes diferentes. Minha cozinha, por exemplo, é o
senadinho. Arrumei um canto de jardim e nomeei Zélia Gattai. Ainda lá no Acre,
já se vão anos, construí uma varanda suspensa e homenageei o herói do Acre com
o suntuoso nome de Mirante Chico Mendes – um olhar para o futuro. E assim, de
retalho em retalho, vou tecendo caduquices sadias.
Agora, no momento,
trabalho num cantinho dedicado a Adélia Prado, minha ídola.
É uma espécie de
pergolado anexo ao meu quarto. Por receber muito sol e chuva quase não andava
por lá. A claridade me ofuscava. Cobri com telhas de plástico pintadas de
verde. Logo o vento cruel arrancou tudo e abandonei a ideia de circular nele. Esperei
ter dinheiro e hoje, por uma infeliz escolha (que não foi minha), a cobertura é
de vidro temperado. O soneto ficou pior que a emenda e esta pior que o soneto:
além da claridade, pelas barbas do faraó, o calor passava a impressão de
caldeira. Um inferno!
Criei, juntamente com
o Genilton, uma cortina de chita e um forro de TNT. Pronto! Não será mais um
recanto ou aconchego, como cheguei a pensar. Será, sim, a Tenda Adélia Prado.
Se alguém chamar de varandinha, direi: varandinha é a mãe!
E assim, afrontando
toda a lógica da vida, Zélia Gattai tem um espaço aberto e Adélia tem uma
tenda, quase um roncó de candomblé. E o mais grave: Adélia tem telhado de
vidro! Importante é o carinho que tenho pelas duas.
É lá que me
recolherei para fazer a cabeça. Vou orná-lo com alguidás, cabaças e plantas
diversas para, de vez em quando, curtir minhas manias de Dona Doida e me
inspirar para contar a realidade da vida.
Postarei fotos num
futuro breve.
Axé!
RUMO AO SUL
Antes de deitar tomou
um copo de chocolate quente e uma torrada fina. Somente.
Sabia que a viagem
seria longa e cansativa... Pouco importava! Calçou os meiões de lã, conferiu a
mala e partiu rumo ao desconhecido do sul. Não saberia dizer o destino.
O ônibus sacolejava e
os precipícios eram de arrepiar o mais macho dos machos. Ela, confiante na
habilidade do condutor, até sorria. E, silenciosamente, desdenhava dos
gritinhos histéricos que ecoavam em cada curva perigosa. Machos frouxos!
Dá-se a primeira
parada ao fim do que parecia uma eternidade. Ela desce e reconhece a casa dos
amigos que há tempos não via. E decidiu ficar. Logo, quase instantaneamente
surgem as crianças. De imediato se instala a festa de beijos, abraços e
sorrisos. Lembranças rolaram soltas. Que juventude é coisa pra lembrar, deitar
e deixar livre.
O frio era intenso.
Buscou mais roupa e nada encontrou. Esqueceu a mala no cargueiro. Não quis
incomodar os amigos e, num átimo de sabedoria foi ao boteco vizinho, pediu uma
dose de conhaque que desceu queimando. Tinha cãimbras. Tinha fome e de nada
reclamou. Sabia esperar.
Pouco mais tarde,
juntaram-se todos, acenderam a pequena fogueira e, entre risadas, relembraram
os tempos de banho no rio, de castigos com relhos e de alegrias velozes como os
coriscos.
Pediram comida ao
dono do boteco. Uma rodada de pães com filetes de jacas duras. Outra rodada de
conhaque. Outra de pães com jaca dura. Ao todo foram quatro pedidos. Fartos,
completos, foram ao destino do sono. Colchão mole e cobertas de penas de ganso
fedendo a guardado. Ainda assim ela acordou gelada. Tinha os pés endurecidos ao
ponto de não saber que eram seus.
Mas estava feliz. As
crianças pularam sobre ela ao mesmo tempo e então pôde sentir o calor dos
beijos verdadeiros. Sorriu até perder o fôlego. Também estava menina.
Despertou com dor de
estômago. O pão com jaca dura nunca foi do seu cardápio. Ainda assim provou de
instantes de felicidade, tomou banho de rio, lembrou o relho e viveu coriscos
de alegria.
CLARICE e eu
“Agora preciso de tua mão,
não para que eu não tenha medo,
mas para que tu não tenhas medo.
Sei que acreditar em tudo isso será,
no começo, a tua grande solidão.
Mas chegará o instante em que me darás a mão,
não mais por solidão, mas como eu agora:
Por amor.”
Clarice Lispector
*******
Já faz um tempo
que te abri as portas
te dei minha casa
meu corpo limpo
minha cama amiga
minha mesa farta
já faz um tempo
que estiveste louco
e me cobraste a companhia
que necessitavas
já faz um tempo
que tua mão me esbofeteou o rosto
por que te pedi a mão
e me negaste.
Leila Jalul
Obs. Encerrei o poema com esse trecho da
música Mesmo distante – Ira.
“se você se lembra
então feche os olhos e sinta
onde quer que esteja
o tempo vai voltar
e as nuvens serão velhas paisagens
e eu estarei apertando a sua mão
eu estarei ao seu lado”
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