quinta-feira, 4 de maio de 2017

IMPROVISO DO RAPAZ MORTO

Mário de Andrade (1893-1945)


Morto, suavemente ele repousa sobre as flores do caixão.

Tem momentos assim em que a gente vivendo
Esta vida de interesses e de lutas tão bravas,
Se cansa de colher desejos e preocupações.
Então para um instante, larga o murmúrio do corpo,
A cabeça perdida cessa de imaginar,
E o esquecimento suavemente vem.
Quem que então goze as rosas que o circundam?
A vista bonita que o automóvel corta?
O pensamento que o heroiza?...
O corpo é que nem véu largado sobre um móvel,
Um gesto que parou no meio do caminho,
Gesto que a gente esqueceu.
Morto, suavemente ele se esquece sobre as flores do caixão.

Não parece que dorme, nem digo que sonhe feliz, está morto.
Num momento da vida o espírito se esqueceu e parou.
De repente ele assustou com a bulha do choro em redor,
Sentiu talvez um desaponto muito grande
De ter largado a vida sendo forte e sendo moço,
Teve despeito e não se moveu mais.
E agora ele não se moverá mais.

Vai-te embora! vai-te embora, rapaz morto!
Ôh, vai-te embora que não te conheço mais!
Não volta de-noite circular no meu destino
A luz da tua presença e o teu desejo de pensar!
Não volta oferecer-me a tua esperança corajosa,
Nem me pedir para os teus sonhos a conformação da Terra!

O universo muge de dor aos clarões dos incêndios,
As inquietudes cruzam-se no ar alarmadas,
E é enorme, insuportável minha paz!
Minhas lágrimas caem sobre ti e és como um Sol quebrado!
Que liberdade em teu esquecimento!
Que independência firme na tua morte!
Ôh, vai-te embora que não te conheço mais!


ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1987. p.258-259

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