sábado, 25 de agosto de 2018

OS IRMÃOS

Leila Jalul

Eles andavam em grupo e, quando perguntados, se diziam irmãos. Eles se diziam irmãos, mas, bastava uma olhadela e se via que não eram de sangue. De sina, sim. Quatro deles, com idades entre oito e doze anos, tinham feições amazônicas. O menorzinho, por volta dos sete, era galego, quase um albino.
Sei que transitavam no centro comercial da cidade, praticando mendicância e brincando. Eram crianças, afinal. Entre o meio dia e duas horas, invariavelmente, faziam ponto ao lado do Inácio’s Restaurante, no aguardo da saída dos que lá faziam refeições e, até educadamente, faziam a abordagem e pediam trocados para que pudessem comer.
A Ruy Barbosa, obrigatoriamente, era meu percurso para o trabalho. Muitas vezes, confesso, ou não os olhava, ou dava algum trocado, ou levava algum tipo de biscoito e frutas. Normalmente bananas.
Numa tarde, vi uma aglomeração diferente. O galeguinho estava caído e os outros olhavam. Dois rapazes e uma senhora estavam junto e falavam alto. Parei para ver o que se passava. Mais perto, ouvi a mulher mandando que os rapazes chamassem a polícia. Não, disse-lhe, isso não é caso de polícia. Esta criança está ardendo em febre. Vou leva-lo ao Pronto Socorro. Deixe comigo!
Peguei o táxi do Predial, meu malvado favorito, coloquei a molecada dentro e rumei em busca de ajuda. O rosto do galego estava vermelho. Mal falava. Já os outros, alegres com o passeio de carro, apenas sorriam e tiravam onda com a cara do lourinho. Eram crianças, afinal.
Bem, o problema era garganta inflamada. O médico deu-lhe dipirona, receitou um anti-inflamatório e dispensou-nos. Aí começou o problema propriamente dito. Quem disse que eles queriam me dizer onde moravam? Apenas disseram que lá pelas bandas do Morro do Marrosa.
Ao chegarmos na entrada do morro, parecendo assustado, o moleque mais velho disse-me: aqui tá bom. Agora nós vamos ‘de a pé’. Nada disso, meu chapa! Só entrego o galego para a mãe. Vamos abrir o bico!
Chegando na casa, duas moças novas apareceram. Eram as mães. De dentro da tapera, que não se podia chamar de casa, uma caixa de som rasgava um brega. Uma delas, segundo o Predial, era velha conhecida da polícia por agenciar crianças para pedir esmolas na rua. Dentre outros, este era o seu meio de vida. Soube que era paranaense. Talvez mais uma que sonhou com o Eldorado do Novo Acre.
Parecendo embriagada, deu um sopapo no branquela e tangeu-o para dentro. Vi, então, que era hora de puxar o carro.
Agora sim, pensei, é caso de polícia. Denunciei.
Naquela noite o sono demorou. Muito me questionei. Quantas vezes, apressada, passei por aquelas criaturas e ignorei-as? Ou dei-lhes aquela esmolinha básica para estar em paz com minha consciência? Quantas delas existiriam pelo mundo afora, umas ardendo em febre e outras queimando de fome?
Desde então, ao fazer meu percurso para o trabalho, não mais as vi. Ou mudaram de vida, ou estavam circulando noutro ponto da cidade. Sei lá o destino que tomaram. Não sei. O rosto deles, a alegria que estampavam, no entanto, são vivas em mim.

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