Concerto (1995), Danilo de S'Acre |
RESUMO O presente ensaio
busca refletir - tendo como lócus territorial e epistêmico a esfera geocultural
do Acre - como certas manifestações sensoriais criativas sonoras são tratadas
pelo mercado, pelo estado e pela academia no contexto de um Estado-Nação
colonizado. A pretensão é demonstrar a ocorrência de práticas colonizadoras em
face da produção sensorial criativa local, especialmente a musical, oferecendo
como fato-modelo a ausência de preocupação historiográfica, mormente pelas
políticas públicas, em relação a dita produção, fato este que se revela como
uma das expressões concretas e simbólicas do fenômeno da colonialidade cultural.
Ausência esta fortalecida, senão também determinada, pelas ações da indústria
cultural e da academia com seus estatutos de estética norte-eurocêntricos (no
plano global), e brasilcêntricos (no plano nacional), o que faz com que a
música acreana se ponha como uma expressão cultural negada pelo Estado-Nação
brasileiro.
Há alguns anos
(exatamente no dia 23 de abril de 2013), publiquei, na minha página do
facebook, um pequeno texto-manifesto – Memória
e esquecimento da cultura artística acreana (https://www.facebook.com/joao.veras.5/posts/490411924345340)
– em que apontava e lamentava a completa
ausência dos poderes públicos locais quanto ao registro, conservação/guarda e
difusão da memória da música acreana e de seus criadores. Falava dos
compositores urbanos de Rio Branco. Este escrito foi motivado pelo fato de que
muitos estarem morrendo, alguns ainda muito jovens, e que suas obras e suas
histórias estarem sendo enterradas junto com os seus corpos. Constatação de tão
literal que me fez ali apelar para a listagem do nome de uma série deles. Ao
final, propus, sabendo das normas e instituições criadas especialmente para a
memória cultural local (conselhos de patrimônios histórico cultural, fundações
culturais...), que se criasse um meio institucional para suprir tal ausência. O
que me ocorreu na época foi propor a criação de museu da imagem e do som.
Desde a sua primeira
publicação, que se deu em 2013, venho renovando, a cada ano, a sua visualização
na minha página. Todavia, na mesma medida, ele (não falo exatamente deste
singelo artigo, mas do fato em si) vem sendo ignorado por quem poderia fazer
alguma coisa nesse sentido, o Estado. É por este escrito – em sua homenagem –
que eu escrevo o presente ensaio para, partindo dele, procurar problematizar e entender
o que tem levado a esta forma estatal interna de menosprezo cultural e, com
isso, refletir sobre as suas causas e consequências para o plano
historiográfico, mormente da música acreana e seus criadores, enquanto
patrimônio histórico e artístico cultural. Vou na sequência desenvolver ainda
que brevemente algumas notas sobre um caso em que a música é negada pelo
Estado-Nação.
Parto de alguns
pressupostos históricos desenvolvidos no bojo da teoria crítica social
denominada decolonial. Por estes, a América Latina, desde 1492, quando invadida
pelos europeus, vem sendo colonizada política, econômica e culturalmente. Esta
condição colonial, de que têm sido vítimas suas regiões e seus povos, o estágio
histórico do colonialismo, regime
jurídico-formal de subalternização das colônias frente às nações colonizadoras,
se transmudou, com o fim formal das colônias, para o da colonialidade, isto é para um padrão de poder global pelo qual
perdura aquela condição colonial – desta feita muito mais no plano mental –
que, sob o manto da ideia de modernidade, insiste em manter as nações
periféricas, seus povos, suas culturas e seus bens materiais, sob o domínio,
exploração e racialização das nações centrais, tudo na conformidade da
geopolítica imposta pelo sistema mundo
moderno colonial.
Tal regime é
reproduzido intra-nações de modo a manter e reforçar, com vistas à sua
naturalização, as relações heterárquicas internamente. O que ocorre no plano global se repete no
local pelos quais – no regime moderno colonial – as relações sociais, econômica
e culturais passam a ser referenciadas por uma central de produção e difusão de
modelos de poder, de saber e de ser fora dos quais nada existe ou se existe é
condenado ao jugo da hierarquia do padrão estabelecido.
A questão central que
busco problematizar nesta fala é de caráter local em sua relação com o global
na medida em que diz respeito ao papel da instituição Estado-Nação na definição
e manutenção da histórica condição colonial traduzida pela relação hierárquica
(mercantil e acadêmica) no campo da cultura pelos considerados centros – locais
e globais – para com as suas consideradas periferias – locais e globais. Quando
se avista políticas públicas que também não se interessam pelo registro,
conservação/guarda e difusão patrimonial das histórias e artefatos artísticos
dos produtores locais – do passado e do presente – é possível ver aí uma medida
historicamente consciente – pois sistemática e estrutural – das administrações
em manter tais expressões no cercado do não-ser, no caso, da não-arte. É quando
a instituição estado não passa de reprodutor da cultura da lógica colonial –
seja ela advinda do eurocentrismo ou do brasilcentrismo.
O que aqui pretendo
desenvolver parte do fato de que a colonialidade também busca estabelecer uma
matriz nos campos da cultura e da arte da qual todos devem se espelhar/seguir
sob pena de não ser cultura, de não ser arte. Sob pena de não-ser.
Também demonstrar que
o Estado-Nação, mormente o colonizado, como um conjunto de unidades
territorial, linguística, cultural e política, tem se firmado como uma
totalidade social que busca homogeneizar sua expressão cultural de modo a
neutralizar e, até, extirpar qualquer diferença que possa colocar em risco a
unidade também cultural por ele albergado para o que se presta no contexto de
seu histórico e estrutural status moderno-colonial.
É possível pensar a
cultura-artística local, de um lado, como manifestação de saberes e processos sensoriais
criativos filiados à tradição ocidental e, de outro, fora desta tradição em
outros lugares tão culturalmente legítimos quanto. Cada possibilidade é
passível de sofrer efeitos distintos com os seus produtos, processos e agentes.
Efeitos estes determinados pelos modos como o estado, o mercado e a academia os
tratarão dentro de um contexto histórico-cultural dado, o que aqui, usando os
pressupostos da teoria decolonial, vou denominar de moderno-colonial.
Na primeira, estão as
ideias e práticas tipificadas sob as linguagens artísticas como as que consumimos
dentro da centralidade da indústria cultural, das reproduções estatais, com suas
políticas educacionais e culturais, e também das estruturas acadêmicas
produtoras/difusoras/reprodutoras/legitimadoras formais de conhecimentos, em
regra, constantes do estatuto da estética ocidentalcêntrica. Uma das suas
caraterísticas é a possibilidade da diversidade e questionamento de suas
premissas e usos, especialmente as massificantes e mercantis, apesar desta
possibilidade não colocar em risco a marcha da colonização de saberes e práticas
artísticas fundadas no cânone da arte ocidental (com a sua concepção de belo,
certo tipo dele, universal e superior, como se impõe) que tem dominado na
relação colonizadora dos países ditos centrais – mormente os de língua inglesa –
em relação ao resto – colonização esta que se reproduz em todo lugar na forma
de colonialismos internos.
Fora desta filiação
estão as manifestações diversas das ocidentais, caso daquelas próprias das
sociedades indígenas, cujos paradigmas partem de outras e diferentes formas de
lidar – outras cosmologias sensoriais – distintas, portando fora dos padrões, do
chamado senso estético ocidental.
Nos processos sensoriais
criativos locais que são filiados à matriz ocidental, vemos matizes com as
quais o eurocentrismo estético universalista vai conviver, ora incorporando, ora
subjugando, ora eliminando, o que se reproduz internamente, no espaço
geocultural do Brasil, especialmente pela via do mercado cultural, como
manifesto de brasilcentrismo estético universalista – cuja sede difusora
central se encontra nas regiões sul/sudeste do país.
Já quanto aqueles processos
diversos à matriz estética ocidental dominante, esta prefere ou ignorar, como
possibilidade de padrão próprio, ou cercar-lhe de controle discursivo como algo
a ela – como expressão de padrão pretensamente universalista – externo e
inferior dando-lhe a pecha – do que seria o seu contrário e inferior – de
primitivo, pré-civilizacional, não estético.
É justamente no
espectro do padrão moderno colonial da cultura que – pelo menos no sentido
formal como se tem comumente concebido a existência do produto artístico e de
seus criadores – a música acreana não tem o seu livro de história, tal como um
conjunto de registros historiográficos, narrativas sistemáticas que busquem dar
conta dos seus processos, suas obras e seus agentes políticos-estéticos-musicais
circunscritos ao espaço geográfico e sonoro acreano. O direito a ter história
aqui diz respeito a um direito que toda coletividade social pode ter/expressar de
identidades próprias que lhe diferencie e lhe ateste seja até mesmo no plano da
indústria do fazer e do consumo cultural como um produto, ou como processos sem
centralidades mercantis, no aspecto cultural, estes como expressão dos modos de
vida em determinado território e a partir de concepções próprias de viver e lhe
dar com processos sensoriais criativos.
As expressões musicais
acreanas – enquanto também dignas de história – o que quer dizer também dignas
de existência social no tempo, têm sido institucionalmente camufladas por esta lógica
normativa da indiferença que avança para o simbólico, no plano do que se
entende por patrimônio histórico-cultural. No Acre não existem os chamados
espaços públicos de memória os quais possibilitam o acesso livre a qualquer
pessoa – a exemplo de um museu da imagem e do som – aos quais se possa recorrer
para conhecer o que se chama de “passado cultural” e também manifestações do
presente nos planos das imagens e dos sons capturados e arquivados como documentos.
Mas a falta não diz respeito somente ao passado. Também são raros, no presente,
os canais públicos e privados de difusão cultural pelos quais se possa acessar
a música e seu produtor que insistem. Como exemplo que melhor pode patentear esta
falta institucional, o Estado do Acre tem uma rede de rádio e de televisão –
que chama de pública – cujas difusões de imagens e sons – que alcança todo o
seu território – tem se limitado a retransmitir programações televisuais e
musicais do sudeste (sede da indústria cultural, do brasilcentrismo), desconhecendo
– o que significa não reconhecendo – e, assim, fazendo desconhecer a todos, posto
que não difundindo, as manifestações artísticas do passado e do presente locais.
Este mesmo estado,
que também domina toda a rede de comunicação privada – mediante a chamada verba
de mídia – nada faz para que os canais privados de difusão de cultura a quem
sustentam com verba pública (especialmente rádios, tvs e jornais escritos)
cumpram sua função cultural – ainda por serem, no caso dos rádios e tvs,
concessões públicas – ignorando, como de fato ignora, as expressões artísticas
ditas locais – como expressões indignas – desse que é um verdadeiro desprezo
estrutural no plano da cultura artística.
Por esta condição/tratamento,
e pressupondo a música acreana como uma realidade histórica pulsante – a impressão
que se tem é que ela está reservada às zonas do invisível/inaudível, nas quais
segue no tempo como uma espécie de manifestação de um passado e um presente que
não ficou (não vai ficando) como memória (coletiva e institucional) e que,
assim, vai se esvaecendo, se dissipando até o completo esquecimento social –
partindo da suposição de um presente social. No máximo, se teve alguma função
no seu momento de restrita publicização lá atrás (em seu nome eram realizados
festivais), como aqui agora no exato de quem faz, hoje tende a sumir, sumir na
poeira do tempo em seu túnel da memória sonora, de tão escuro, que nada revela,
torna audível, guarda, lembra e deixa.
Não estou tratando
aqui somente da produção musical que simplesmente reproduz os produtos da
indústria mas também e especialmente daquela que, de algum modo, parte da
realidade local e com isso, dialogando ou não com o entorno, manifesta/registra
uma expressão sensorial e criativa com elementos culturais e artísticos próprios.
Mas se estivesse disposto a tratar somente desta expressão musical que tem se limitado
à reprodução, ela também não passará – como de fato não passa – disso, e sem a
visibilidade, inclusive histórica, tão desejada.
Este fato só nos sugestiona
– e nos faz inquirir atônitos – estar se tratando de algo, como expressão
cultural, que não é digno de presente tampouco de passado. No sentido formal
(ainda normativo), a conclusão suposta é inegavelmente afirmativa. Uma das
explicações que se possa considerar factível se encontra na forma como se tem
tratado a manifestação artística que esteja fora do considerado eixo central,
no caso nacional (fiquemos neste plano geográfico), de produção e difusão da
indústria cultural e também de manufaturamento teórico com vistas à transmissão/inculcação
conceitual da arte que tem se prestado as academias. Isto é, a mesma medida
exógena que ignora a cultura local é uma só na forma de duas: a do consumo
mercadológico e a da difusão acadêmica, ambas com seus estatutos/normas
fundados na estética eurocêntrica que alimenta e é alimentada pelo mercado
cultural seja do maestream, seja do onderground, para usar epistemes da cena
moderno-colonial do campo da cultura.
Estou a tratar,
inevitavelmente, de uma realidade que é a do colonialidade cultural interna (reprodutora
da global), com o que quero afirmar estarmos diante de uma explicação histórica
pela qual isto se deve à imposição, de longa data colonizadora, da visão de
arte instrumental em que reduz qualquer processo sensorial criativo, primeiro, como um produto de mercado,
por isto de caráter massivo; segundo,
como algo gestado concebido e modelado a partir do território externo a ser reproduzido
pelo de dentro; terceiro, de caráter
normativo e universal o que o faz regra geral a ser seguido por todos dentro do
estatuto do padrão de arte ocidental; quarto,
produzido e difundido a partir de um Centro territorial e epistêmico (de
naturezas local ou global); quinto, cuja
finalidade é ser difundido (o que significa vendido) para suas Periferias, estes lugares condenados ao consumo e
reprodução; e sexto, onde (das
Periferias), por esse entendimento, é improvável uma produção (senão
reprodução) de arte digna à altura de valor e circulação mercadológicas e
acadêmicas, portanto impossibilitado como parte da gênese do padrão colonial
universal que se impõe.
Com tal visão, o que
tem sido merecedor de um espaço de memória – portanto de história enquanto
instituição formal – é o conjunto daquela produção artística de status
industrial, para consumo das massas e das academias, qualidade esta – seguindo
esta concepção – não encontrada comumente naquelas criações locais, mormente as
que não aceitam a condição reduzida de cópias. E haja enciclopédia, compêndio,
dicionário, seleção, livro didático, bibliotecas, programações televisivas e
radiofônicas, currículos escolares e acadêmicos – sob o selo de arte brasileira
– em que as manifestações locais não se encontram consideradas, catalogadas.
De fato, passa
desapercebido – posto que de tão naturalizado pela insistente, intencional e
estrutural fábrica de ignorância cultural – que no verbete da cultura dita central
brasileira (em que estão os considerados nomes de valor da literatura, da
música, do teatro, da fotografia, do cinema, das artes plásticas, da dança...)
o resto não seja considerado, não exista. Na verdade, este resto, como tal, ou
é tido como não-arte (alternativa A) ou a quem a que está reservado o lugar subalterno,
menor, inferior, fora do padrão de matriz da cultura nacional brasilcêntrica (alternativa
B).
Fácil, assim,
aceitarmos, quando muito, a ideia de cultura local – mas não merecedora do
status de brasileira, de nacional (na verdade, um selo que a diferencia desta
no sentido menor, nos carimbos da hierarquia colonial), o que atesta a força da
hierarquização interna dos cânones ocidentais (vale dizer, especialmente,
norte-eurocêntricos) da arte. Acreana está de bom tamanho, isto é na proporção
de seu valor e existência (se é que tem algum valor e existe!). A brasileira é
aquela nomeada pelo centro cultural – é exógena – que chega e se apresenta
pelos produtos “importados”: pelos livros, pelos produtos audiovisuais, pelos
rádios e tvs... A local é aquela que não sai por isso nunca chega. É a que se
“auto gueta”, se coloca, se reduz, no seu lugar – no latifúndio da colonialidade
cultural interna e também global – de “arte da terra”, de “arte local”, de
“arte regional”. É aquela que não consegue alcançar a qualidade do cânone, do maestrean, e, quando tenta
(audaciosamente), produz sempre algo de “mal gosto” ou de cópia mal feita, fora
inclusive do status de onderground, quando
se presta à comparação.
Pela alternativa A,
tem-se a negação, inclusive de sua historicidade em si, e por si próprio para o
consumo interno no seu lócus original de criação e difusão. Pela alternativa B,
tem-se a subordinação, outra modalidade de negação. Sua folclorização, isto é, sua
redução ao nicho – que também acaba afinal de alguma forma – mas sempre na
condição inferior – servindo como um produto de mercado (como lenda, mito...) –
das manifestações tradicionais, por isto dignas de comiseração e “tutela” do
estado em razão de sua classificação como cultura menor, subdesenvolvida posto
que aquém ou fora do padrão de qualidade da mátria nacional, subalterna em
relação não só àquela considerada de massa (posto que não vende) como também a acadêmica
(posto que fora da tradição da estética européia e sua vanguarda) e, com esta e
por esta qualidade, credora de apoio cultural estatal, seu socorro
indispensável, socorro este que também, de fato, quase sempre não chega.
Noutro sentido, mesmo
dentro da esfera da imposição colonial – com a sua indiferença e
subalternização – e em razão dela, se poderia considerar, frente às aludidas alternativas,
alguma coisa de positivo, sob o ponto de vista cultural, na medida em que é
justamente pela diferença que a expressão local se afirma como algo diverso,
portanto próprio. Caráter positivo este que, segundo entendo, vai depender,
fundamentalmente, de uma consciência cultural profundamente esclarecida e
liberta – ou que, de alguma forma, que a problematize – frente à condição
colonial imposta historicamente.
Não se pode perder de
vista o fato de que é precisamente na relação entre a expressão local e o que
se apresenta a ela externo que se produz – ante tamanha força da imposição do
martelar canto da sereia – uma auto aceitação de inferior e não diferente –
diante do padrão imposto. É quando o que seria diversidade e diálogo perde
força para a colonialidade cultural interna, cuja função é hierarquizar as
diferenças e, nessa medida, excluí-la (pela alternativa A) ou subalternizá-la (pela
alternativa B). É assim que, com o tempo, dita expressão da colonialidade passa
a germinar/desenvolver “na mentalidade dos locais” a pedagogia da auto exclusão
e da auto baixa estima cultural. O que os faz aceitar como um dado natural – e
cultural inevitável - as condições impostas historicamente de reprodutor e
consumidor, tipo inatos ou resultante do destino traçado pelos deuses
(colonizadores/do mercado).
É quando a máquina
colonial passa a produzir seus efeitos e se reproduzir nas/pelas mentes dos
próprios colonizados. É quando tudo isso se oferece como pressuposto da relação
(se é que se pode assim denominar), naturalizando o que é historicamente
construído para nos impor à condição de meros reprodutores e consumidores,
jamais criadores. É quando o produtor local cai no canto da sedução e passa a
sonhar em ser o postiço do modelo que se lhe apresenta como o ideal, posto que
melhor, superior, desenvolvido.
Em um lugar mais
abaixo dessa hierarquização de sentidos (se é que se pode descer ainda mais)
vamos encontrar as concepções e manifestações sonoras dos indígenas, cuja
dimensão de invisibilidade/inaudivisibilidade – pelos canais de difusão da
indústria cultural – é infinitamente maior (definitivamente não faz parte de
qualquer programação radiofônica ou televisiva, mesmo estatal de um Estado,
como o Acre, que se diz seu protetor-mor), quando não postos – reduzidos – a
uma classificação de caráter exótico encontrado nas prateleiras dos mercados globais
(não locais!) com apelo comercial de selo supostamente étnico, neste caso, o
que o torna invisível como cultura e visível como produto exótico para o
consumo, isto é, incompreendido e por isto também não considerado – como
expressão (e toda significação que lhe é inerente) de uma cultura própria e,
com isso, reduzida a mais um subproduto de mercado de discos (para consumo dos
entendidos) e também da museologia, como algo sempre do passado da modernidade,
algo de primitivo, selvagem, exótico e assim longe da qualidade técnica – seja
do maestrean, seja do underground, clássicos/eruditos e
populares – que o padrão eurocêntrico atesta e impõe.
Não se trata
simplesmente de ter orgulho cultural de ser como é – o que significa não ser
como o outro busca impor – mas de se manter consciente da tensão permanente do
contato seja com o que for, não exatamente que o diferencie, mas com o que o
inferiorize, buscando daí – como esfera dialógica – extrair tudo menos
deixar-se eliminar como potência e ação culturais, como, definitivamente,
outros tipos de saberes e de processos sensoriais criativos dignos. Falo de um
projeto estético decolonial aí incluído.
Tenho este caso como a
expressão de um fato moderno-colonial que não está solitário na esfera do
território nacional. É um fenômeno que se repete em cada locus geocultural que
não seja o do centro e que mesmo no centro se espraia hierarquizando tudo que
nele se produz e que não se encaixa na estética colonizadora. É o manifesto expresso
de um Estado-Nação fazendo mover a máquina do colonialismo cultural interno que
– negando as diferenças – impõe o seu (que é do sistema-mundo moderno-colonial)
estatuto da totalidade, da centralidade, da verticalidade e da universalidade
culturais a transformar diferença em hierarquias coloniais.
Não perder de vista esta
forma de colonialidade cultural – como fato histórico que se mantém e se atualiza
nos processos de modelamento dos criadores culturais locais – é determinante
para que possamos tomar atitudes decoloniais.
BIBLIGRAFIA
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*João José Veras de Souza é músico, poeta e
compositor acreano. Mestre em Direito e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Autor
da obra Seringalidade – o Estado da
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**Artigo publicado originalmente na Revista Claves (Vol. 2019, 2019) da Universidade Federal da Paraíba.
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