A nossa mudança de
Miritiba, onde meu pai era tudo e não nos faltava nada, para Parnaíba, onde
éramos nada e nos faltava tudo, começou a influir, muito cedo, na formação do
meu caráter. Eu reconhecia intimamente a inferioridade da minha condição. No
meio de primos que possuíam pai, e cujo pai os podia cercar do necessário e do
supérfluo, doía-me o tratamento que me davam, quando era encontrado sozinho, e
que se modificava um pouco na presença de minha mãe. Eu era um menino feio,
retraído, desconfiado. Nada, em mim, atraía a simpatia alheia. E como não havia
um espírito estranho e inteligente que procurasse estabelecer o contato do meu
coração com o mundo, ia se formando na minh’alma um surdo sentimento de
revolta, uma queixa amarga e silenciosa, contra as desigualdades estabelecidas
pelo Destino.
Foi
a noção dessa inferioridade clamorosa que me levou à prática do primeiro ato
reprovável, em que o castigo severo contribuiu, apenas, para fixar no meu
espírito a extensão daquela injustiça.
Eu
fui um menino que não possuía, parece, jamais, um brinquedo delicado. É
provável que meu pai, nas suas viagens ao Maranhão, me levasse alguma lembrança
desse gênero. Mas eu o perdi aos seis anos, e, depois de órfão, minha mãe não
podia dispender qualquer quantia, mesmo insignificante, com uma gaita, um
boneco ou um pandeiro. No meu aniversário, ou no da minha irmã, seu brinde
consistia em servir o nosso almoço fora da mesa, improvisando um “banquete”
sobre um caixão de querosene, coberto com uma toalha de rosto. Nesse dia,
comíamos em pires, elevados à condição de pratos da nossa festa. Certa vez
houve, mesmo, um pouco de “vinho”, preparado com água, vinagre e açúcar, e que
enchia um pequeno vidro, dos de Xarope de
Cambará. Minhas distrações de infância, desde que chegamos a Parnaíba,
limitavam-se a frutos de jatobá, em que eu punha pernas e chifres para a
formação de boiadas; à fabricação de arapucas para apanhar as rolas
mariscadeiras do quintal; e à de papagaios de papel, que eram o maior encanto
das minhas tardes vadias. Às vezes, quando encontrava um lápis ao alcance da
mão, transformava-me em desenhista e, deitado no chão, pintava em cada tijolo
do alpendre uma paisagem, ordinariamente uma casa com algumas árvores à frente
ou ao lado, e uma estrada tortuosa que lhe terminava à porta. Houve, também,
uma época, dos oito aos dez anos, em que os meus cuidados se voltaram para os
carretéis de linha. Cheguei a possuir cerca de duzentos, brancos uns, pretos
outros. Constituíam dois exércitos comandados pelos generais, que eram os
carretéis maiores. Punha-os em forma, alinhava-os militarmente para a batalha,
e, com um limão, derrubava-os a tiro de artilharia, ora de um lado, ora de
outro. Entre esses carretéis alguns havia que eram verdadeiros heróis: entravam
em seis ou sete combates seguidamente, e não caíam. O limão respeitava-os como
as granadas a Bonaparte. Se há um Cornélio Nepote no mundo dos carretéis
vazios, alguns dos meus devem ter o seu nome na história dos grandes capitães.
Terminadas, porém, as lutas a que os submetia, eu enfiava os meus dois
exércitos em um barbante e pendurava-os nuns pregos do alpendre. Fazia, em
suma, com os meus soldados, o que fazem com os seus os políticos, depois de
servidos... Todos os meus brinquedos eram, como se vê, brinquedos de menino
pobre. Nenhum vinha da loja.
É
de imaginar, pois, o alvoroço íntimo que me assaltou quando, um dia, tive sob
os olhos uma caixa de brinquedos. Eu devia ter oito anos e estava, com minha
mãe, em visita, na casa de um dos meus tios, quando, uma tarde, mandaram pedir
no estabelecimento comercial de Pires Almeida & Cia., que ficava próximo,
alguns brinquedos, para escolher. Haviam chegado do Maranhão algumas dúzias
deles, e todas as crianças afortunadas tinham tido notícia do acontecimento. A
criada voltou com a encomenda e foi deslumbrado que vi abrir-se a caixa
maravilhosa. Eram pequenos brinquedos de lata, pintados de azul, de amarelo, de
verde ou de vermelho: carruagens, bondes, locomotivas, navios — um sortimento
capaz de revolucionar Liliput. Custava 400 réis cada um.
Olhos
ávidos, coração batendo forte, eu vi passarem dois brinquedos daqueles para as
mãos venturosas da minha prima e do meu primo pequenos. Ninguém se lembrou de
mim. Ninguém se apercebeu da minha tristeza, ao ver-me esquecido. Ninguém viu
que ali estava um menino órfão, mais infeliz que as outras crianças, e que, por
isso mesmo, precisava, mais que as outras, de uma esmola de alegria. Escolhidos
os dois brinquedos, fechou-se a caixa, que a rapariga deixou sobre uma cadeira
da sala de jantar, enquanto ia no interior da casa.
Quando
ela saiu para ir à loja com a sua carga preciosa, eu a acompanhei. Não sei se
eram os outros brinquedos que me atraíam ou se era o remorso, a consciência de
culpa, que me arrastava. Ia como um autômato. Ia como quem marcha solto, mas
sem poder fugir, para o lugar em que se levanta o patíbulo. Chegados á loja, o
comerciante derramou a caixa de brinquedos sobre o balcão.
—
Ficaram com dois, — informou a criada, entregando os oitocentos réis.
—
Dois, não; três... — declarou o dono da loja.
Recontou
os brinquedos e insistiu:
—
Falta um... Diga lá que falta um...
Voltamos.
O coração batia-me como se quisesse vir à boca tomar fôlego. Eu devia estar
lívido, transfigurado. A rapariga deu o recado à minha tia. E todos os olhos se
voltaram, de pronto, para o menino órfão.
Não
me recordo, hoje, que foi o que aconteceu. Entreguei o brinquedo, um pequenino
carro pintado de vermelho, que havia escondido atrás de uma porta. Apanhei, com
certeza, a minha surra. Fui apontado, sem dúvida, às crianças felizes e que
tinham pai, como um menino mau, e de costumes tristes. E o brinquedo foi
restituído ao comerciante, com a declaração de que havia caído sobre um tapete,
no momento de abrir a caixa.
Foi
esse, na minha vida de criança, o único brinquedo bonito, e de loja, que possuí.
Posse criminosa e precária. Alegria misturada de sofrimento, e que durou um
instante. Contentamento íntimo que terminou em humilhação ostentosa. Festa de
alma que se tornou agonia.
E
que tem sido para mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo
roubado, que eu escondo, que dissimulo assustadoramente no coração, e que, no
entanto, descobrem, e me tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele?
CAMPOS, Humberto
de. Memórias: primeira parte 1886-1900. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Editores,
1954. p. 163-169
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