sábado, 15 de fevereiro de 2020

CARTA SOBRE COSTUMES E CRENÇAS DOS INDIOS DO PURÚS, DIRIGIDA A D. S. FERREIRA PENNA

Manoel Urbano em 1889. Foto: Fotos de Fatos
Por MANOEL URBANO DA ENCARNAÇÃO

Os selvagens fazem muitas festas, porém, ha uma no anno que são obrigados a fazer e onde contam as historias antigas conforme as tribus.

Festa de annos

Depois de todo preparado, tratam de convidar as outras tribus, e reunidos todos começam a tocar os instrumentos. N’isto fazem um silencio e um dos chefes diz que vae contar as historias antigas.

Diluvio

Ha muito tempo houve signaes no sol que ficava escuro e ao mesmo tempo encarnado. Acontecia o mesmo com a lua. De noite ouviam-se muitos tropeis e batidos pelos paus, grandes estrondos ser ora debaixo da terra, ora no céu. Os animaes espantados corriam d’uma parte para outra, os que eram ferozes ficavam mansos se alguem se aproximava. Depois ouviram-se grandes estrondos que partiam de todos os lados, parecia que a terra estava se desfazendo, viram uma escuridão do céu à terra que trazia vento e grande chuva. Com este movimento já morria muita gente de susto, a agua cresceu com uma velocidade espantosa matando muita gente, só escapou Safará, Uaçu, suas mulheres e algumas pessôas; os paus altos ficaram com os ramos de fóra; sustentavam-se com folhas e que estas ficaram doces. Depois que baixaram as águas trataram de fazer jangadas com medo de novo acontecimento, mas vendo que não havia mais nada deixaram as jangadas à tribu Paumary que até hoje ainda as usa. Dando por terminada a historia começa o chefe a seguinte:
Conta que em outro tempo o dia ficou feito noite e durante este tempo ouviram muito barulho. Mas não sabiam qual o motivo: uns diziam que o sol se tinha acabado, outros que tinha ido illuminar outros povos. Foi escurecendo das dez horas para às onze horas do dia, porém pouco durou; às quatro horas da tarde pouco mais ou menos parecia que ía amanhecendo tornando a escurecer novamente. O dia seguinte esteve no seu natural. Entra outro e conta a historia do urary ou hervadura:
Os antigos reparavam no gavião real quando ia procurar a preza: primeiramente aranhava a arvore da hervadura, elles então vendo isto também esfregavam lá a ponta das flechas na occasião de irem para as caçadas. Reparavam que as caças que flexavam ficavam repentinamente enfraquecias; reconhecendo, que faziam grande vantagem tratavam de engrossar mais, raspando e cosinhando a casca da hervadura. Vendo que matavam com mais rapidez, engrossavam ainda mais e d’esta forma descobriram o meio de preparar. Findas as historias é que dançam tanto os homens como as mulheres e gastam com esses festejos tres dias. As historias que contam por essa occasião são muitas.

Casamentos

Os casamentos tem muitas cerimonias, porém, só fallo das ultimas. Amarram uma maqueira muito comprida e fazem sentar o noivo e a noiva de costas um para o outro. Vem uma velha aconselhar a noiva ensinando como é a vida de cazada; o mesmo faz com o noivo um velho. Depois duas velhas examinam se a noiva sabe fazer balaio, panella, toupé, abano, tacy e outras obras pertencentes a mulher; outros dois velhos examinam se o noivo sabe fazer arcos, flexas, sarabatanas, panacú, curahy, etc. Acabado isto fazem sentar a noiva direito e puxam-lhe os dedos das mãos e dos pés, põem um panellão d’agua junto d’ella e vem uma porção de mulheres com o seu raminho na mão dançando ao redor, mettendo o ramo n’agua e sacudindo na noiva;  a esse tempo já os outros estão dançando, em seguida enxugam bem o corpo da rapariga, enfeitam-n’a de pennachos e levam para a casa da festa. Lá chegados elles põem os braços d’ella por cima dos hombros do noivo e outros fazem grande alarido em signal de alegria. Quando acabam d’estes festejos o pae e a mãe não têm mais poder nas filhas. As que não tem a felicidade de se casar dão o nome de maiçáque quer dizer solteira.

Baptismo

Tambem o baptismo é festejado. Depois de tudo preparado juntam as crianças que têm de ser baptisadas pelo maioral de sua religião, ao qual dão o nome de Mendy, Joimatê ou Carimandê, e furam-lhe os beiços; os padrinhos levam uma lambada com os braços suspensos em paga do baptismo. Em seguida tratam-se por Uçairy que significa compadre. Além d’estas ainda ha outras ceremonias.
Há tambem pelo inverno, e em certo dia marcado, outro festejo. Fazem uma reunião, os homens tocam os tourés grandes. O som é rouco, e n’esta reunião guardam um grande silencio ouvindo-se apenas o som dos tourés. O sustento d’elles, n’esse dia, é peixe.
Pegam na cana dos braços dos homens mais notaveis, já fallecidos, que houve entre elles, e salta um dos chefes no meio do são fazendo todos os gestos d’essa pessôa quando viva, dizendo:
“Este foi quem venceu tal guerra!”
“Este foi quem nos ensinou a fazer tal couza!”
E tudo quanto fazia quando vivo. Acabado isto entra outro dizendo da mesma forma o que fazia o fallecido. Este festejo só é feito aos homens mais notaveis que houve entre elles. Depois de acabada a festa, guardam os ossos dentro d’um panellão dependurado.

Enterro

Quando morre qualquer um d’elles ha grande choradeira entre grandes e pequenos. O choro é cantando. Depois fazem uma sepultura redonda e enterram o defuncto sentado acompanhado de enorme choradeira. Uma vez enterrado ainda choram sobre a sepultura e passados dois dias levam algum sustento para o finado.
Ainda ha outras ceremonias e historias que deixo de mencionar, devido a grande occupação que tenho.

Rio Purús – Canutáma, 24 de Agosto de 1882.

MANOEL URBANO DA ENCARNAÇÃO.


Referência
ENCARNAÇÃO, Manoel Urbano da. Carta sobre costumes e crenças dos Indios do Purús, dirigida a D. S. Ferreira Penna por Manoel Urbano da Encarnação. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia (Museu Goeldi), Belém, 3(1/4): 94-97, 1902.

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