terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

ACRE

Gerson Rodrigues de Albuquerque

Para nos movermos à margem do ufanismo de muitos que passaram a se identificar como “acrianos” e a difundir a idealizada noção de que o “melhor lugar é aqui” – no estado do Acre –, pensamos ser interessante percorrer as definições da palavra “acre”, em sua forma dicionarizada, a título de introdução deste breve ensaio. Nessa direção, destacamos que o “Dicionário etimológico da língua portuguesa”, de Antônio Geraldo da Cunha, descreve o verbete “acre” de duas maneiras: 1. na condição de adjetivo de dois gêneros que, oriundo do latim acre (século XVII), é designativo de “ácido, áspero, árduo”; 2. Na condição de substantivo masculino que, oriundo do inglês acre (1871), é designativo de “medida agrária”. Ainda pelas linhas descritas nesse dicionário, ácido é, ao mesmo tempo, adjetivo e substantivo masculino que designa algo ou alguma coisa “de sabor acre, azedo” (século XVII); áspero é adjetivo de “acidentado, irregular, desagradável, ríspido” (século XIV); e árduo é adjetivo que designa algo “escarpado, espinhoso, áspero”, “trabalhoso, custoso” (século XIV).[1]
O mesmo verbete “acre” pode ser encontrado no Michaelis, dicionário eletrônico de língua portuguesa, que assim o descreve:
Acre
1. sm (ingl. acre) Metrif. Medida agrária de superfície variável, usada em certos países e baseada em uma unidade antiga que correspondia à área de terreno arado por uma junta de bois em um dia.
2. adj m+f (lat. acre) 1 De ação picante e corrosiva. 2 Com odor forte; áspero, irritante. 3 De sabor ácido, azedo. 4 Fig. Que causa aflição. 5 De som estridente. 6 Fig. De grande aspereza.[2]
Não pretendemos fazer incursões para evidenciar que “acre” – definidor de uma medida agrária – não tem nada a ver com “acre” – definidor de um sabor –, mas, seguindo as definições acima descritas, podemos fazer alguns deslocamentos, posto que na estrutura das línguas criadas pelos homens – na condição de estruturas rígidas e abstratas – é possível transitar em meio ao léxico, acompanhando a mutação presente nos movimentos históricos das palavras/conceitos e suas possibilidades de interpretação e tradução. Assim, chegamos a outros adjetivos/substantivos que nos levam a acre ou que dele são derivados.[3] Vejamos os que mais se destacam: picante, corrosivo, áspero, irritante, azedo, acerbo, desabrido, irascível. Mais uma vez recorremos ao Michaelis que, de um modo em geral, assim descreve esses termos: 1. picante é aquilo ou algo que pica, que excita o paladar, que estimula o apetite, que é ácido, apimentado, que é malicioso, mordaz, provocante; 2. corrosivo é aquilo que corrói, que é erodente, que destrói, desorganiza, que é cáustico; 3. áspero é algo ou alguma coisa com superfície desigual, incômoda ao tato, algo duro, rígido, que não se dobra, que é acidentado, escabroso, fragoso, irregular, que é desagradável ao paladar, acre, azedo, que é desagradável, sem harmonia, desbotado, que é acerbo, desabrido, grosseiro, intratável, rigoroso, rude, severo; 4. irritante é algo ou alguma coisa que irrita, que excita a cólera, que provoca inflamação, que estimula, excita, que produz irritação, que anula; 5. azedo é aquilo que tem sabor ácido, acre, que tem sabor desagradável, que é fermentado, que é áspero, acerbo, que é rude; 6. acerbo, diz-se de algo com sabor acre, sabor ruim, que é áspero, duro, rigoroso, severo, que é cruel, pungente, terrível; 7. desabrido é aquilo que é desenfreado, desordenado, que é áspero, violento, que é rude, grosseiro, insolente, inconveniente; 8. Irascível que é propenso à irritação, que se irrita com facilidade.[4]
Para contextualizar nossa análise, não temos a intenção de entrar no mérito ou em maiores discussões sobre esses adjetivos/substantivos, posto que o foco de nosso interesse é a historicidade do enunciado “Acre”, nome com que os colonizadores batizaram um rio amazônico, como forma de retirar-lhe a aparente naturalidade, especialmente, porque esse “Acre” passou a ser difundido como referência de um lugar, uma “parte da Amazônia” e da narrativa da “nação brasileira”, romantizando, harmonizando, homogeneizando e tornando a-histórico e abstrato todo o conjunto de experiências de mulheres e homens de “certa Amazônia”.
“Acre” é uma palavra produzida pelos homens para designar ou classificar/catalogar um sabor, uma medida de terra, um rio ou uma unidade da federação brasileira. Desta última, uma invenção datada do início do século XX, derivou “acreano”, também utilizado para adjetivar ou classificar/catalogar a pessoa nascida no “estado do Acre” ou que “vive no Acre” ou que “escolheu ser acreana”. A partir desse termo, outros – derivados seus – foram e vêm sendo inventados e reinventados: “falar acreano”, “cultura acreana”, “música acreana”, “culinária acreana”, “mercado acreano”, “hino acreano”, “bandeira acreana”, “governo acreano”, “identidade acreana”, “mulher acreana”, “homem acreano”, “orgulho acreano”, “acreanidade”, “cidades acreanas”, “política acreana”, “economia acreana”, “religião acreana”, “desenvolvimento acreano”, apenas para citar alguns. Tais palavras/conceitos foram produzidas ou sub-produzidas por diferentes narrativas, historicamente datadas e articuladas a determinados interesses, intenções ou projetos de grupos sociais e, em seguida, propagandeadas e difundidas de múltiplas e repetidas formas para que parecessem/pareçam e sejam sentidas ou incorporadas como coisas naturais.
Enquanto designação de um sabor azedo, amargo ou enquanto medida agrária, acre não é um dado da natureza, como também não é na forma da designação atribuída a um rio e, bem mais tarde, a uma porção de terras disputada entre o Brasil, a Bolívia e o Peru, que, pela força da persuasão diplomática registrada em acordos, convenções e tratados internacionais passou a configurar como parte do território e da narrativa da nação brasileira. O destaque aqui é para o Tratado de Petrópolis, gestado pelo manuseio e a movimentação de palavras e armas.
Se, na designação de um sabor, que ninguém deseja, ou de uma medida de terra, que muitos desejam, acre não é algo natural, na forma de parte da narrativa da nação também não é, posto que narrativa, produto da experiência e das relações sociais e de poder humanas e, nesse sentido, algo que não brotou do solo, das águas, do ar ou da floresta.
Feitas essas observações mais gerais, pensamos ser necessário ou, no dizer do poeta, “urgente e preciso” submeter o óbvio “Acre”, estado e constituidor de certas “identidades” locais/regionais ao escrutínio da interrogação, começando pela lenda que nos contam desde décadas atrás, turvando as possibilidades de vermos o mundo das margens do rio, grafado Uwa’kürü, Uákiry, Aquiry ou Acre, sob os tons de suas próprias cores, distante das patologias ufanistas e dos brasões, símbolos e insígnias da pátria e seus patriarcas. Lenda essa que Napoleão Ribeiro registrou em uma passagem de seu “O Acre e os seus heróis”, publicado no ano de 1930 (reeditado em 2008), fazendo alusão a uma carta que Gabriel de Carvalho e Mello, um dos colonizadores da Amazônia acreana, enviara à casa aviadora do Visconde de Santo Elias, da cidade de Belém do Pará. Segundo Ribeiro, a missiva teria sido escrita às pressas e “apesar de ter boa letra, tais garatujas imprimiu que a sua carta, no escritório do Pará, passando de mãos em mãos, para se verificar o nome do lugar, foi decifrado – Acre e o Aquiry passou a ser mesmo Acre”.[5]
Em seu ardor patriótico e fantástica imaginação, Ribeiro parecia imbuído do propósito de fazer com seus leitores levassem ao pé da letra o sentido etimológico da palavra lenda que, oriunda do latim medieval, quer dizer “aquilo que deve ser lido”.[6] Seu escrito foi não apenas lido e relido, mas reescrito inúmeras vezes por sócios do Instituto Histórico e Geográfico do Acre (IHGA) e por diferentes escribas da história regional. Um desses escribas, Sílvio Augusto de Bastos Meira, decidido a aprimorar tal ficção, constituiu o cenário com mais alegorias e, trinta e sete após a publicação de Ribeiro, reescreveria tal lenda, enfatizando que, em um dos barrancos do rio Aquiry,
aportou João Gabriel e ali montou o seu barracão, dando origem a um novo “seringal”. Com sua mão áspera escreveu uma carta comercial ao Visconde de Santo Elias, em Belém, solicitando mercadorias. E enviou o novo endereço: João Gabriel, rio Aquiri.
No escritório do Visconde de Santo Elias embalam-se as mercadorias pedidas por esse cliente de lugar tão remoto. Ao ser escrito à tinta azul, nos variados caixotes, o nome do seringalista, surge um obstáculo. O nome de João Gabriel está bem legível, ninguém entende, porém, o do rio por ele indicado: rio Aquiri, rio Acri ou Acre? As letras manuscritas grosseiras resistem a vários exames. Na dúvida, lança-se em grandes letras o endereço que parece mais provável: João Gabriel, rio Acre. Era o rio Aquiri completamente desconhecido. Jamais alguém havia ocupado as suas margens ou explorado o seu curso. João Gabriel, o pioneiro, sem o saber, batizou o novo território a explorar.
Naquela tarde chuvosa de 1877 surgia no escritório comercial de Belém o nome que haveria de designar uma bela e rica região.
[...]
E assim surgiu para a História o nome Acre, corrupção de Aquiri, o rio que dava acesso a um Novo Mundo de riquezas incalculáveis, perdidas outrora nas florestas povoadas de índios. Quando João Gabriel chegou ao Aquiri em 1877, em toda a extensão do curso fluvial viviam tribos indígenas apenas: os Catianas e Maitenecas nas cabeceiras, os Amoacas, Araras, da família dos Nauas, os Canamaris, Catianas, Maneteris e Ipurinás, estes últimos da família dos Aruaques, que se estendiam do Baixo Acre até o vale do Purus.
A pouco e pouco os selvagens viram a sua terra devassada por nordestinos e o seu rio, que antes se chamava Aquiri, passou a ser conhecido pelo nome “Acre”.[7]
Na produção de tal acontecimento, Meira repetia a lenda, agregando cores, sons e uma “tarde chuvosa” à história que difundia como parte da bucólica invenção de um “Acre épico”. Uma invenção que, repetida inúmeras vezes, se tornaria “importante topos da narrativa regionalista da história nacional”, adotando a identidade nordestina como uma espécie de “entidade coletiva”[8] para milhares de diferentes homens e mulheres que invadiram a Amazônia acreana e devassaram territórios e culturas de populações indígenas que habitavam a região, impondo a barbárie da impiedosa exploração de sociedades e natureza como símbolo da “civilização” que avançava sobre os “sertões”. Uma identidade, devemos enfatizar, completamente anacrônica e a-histórica, no dizer de Albuquerque Júnior, “pois não existia a identidade nordestina, nem o sujeito nordestino até o final dos anos dez e os anos vinte”
do século XX.[9]
À anacrônica identidade nordestina, enquanto um dos marcos da invenção do Acre, se fez acompanhar da invenção da lenda em torno da origem do nome do lugar Acre, primeiramente como um rio e depois como um território que abrangia muitos outros rios, terras e florestas, especialmente, que fossem abundantes em árvores de seringueiras. Não temos nenhum interesse e nem acreditamos que faça qualquer sentido acompanhar a obsessão de muitos historiadores pelas origens disto ou daquilo, mas consideramos curioso que os apegados às ideias fixas não tenham se dado conta que, em 1872, portanto, 58 anos antes da publicação de “O Acre e os seus heróis” e 95 anos antes da publicação da “A epopéia do Acre”, a Typographia do Paiz, imprensa de M. F. V. Pires, da Província do Maranhão, publicara o relato de Antonio Rodrigues Pereira Labre, intitulado “Rio Purús”, no qual a grafia do rio que Napoleão Ribeiro e Bastos Meira atribuíram ao erro de um “nordestino” chamado João Gabriel, já aparece literalmente estampada como “rio Acre”, um dos afluentes do Purus em cujas margens, “no tempo da vasante, mostra-se nas ribanceiras grandes quantidades de salitre”.[10]
Esse “desconhecimento” torna-se mais intrigante quando percebemos que o “Relato do Purús” circulou na capital do império e, após 1889, da república, com parte dos escritos de Labre ganhando eco nos “Apontamentos para o Diccionario Geographico do Brazil”, de Alfredo Moreira Pinto, cujo esboço para a primeira edição, datado do ano de 1883, seria publicado pela Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, em 1894. No verbete “Aquiry”, constante dessa edição, Moreira Pinto descreve:
Um dos tribs. da margem dír. do Purús, aff. Do Solímões. E’ o maior de todos os tribs., que lhe augmenta consideravelmente o volume e é navegável durante o inverno até próximo á barra do rio das Pontes. (Chandless). O tenente-coronel Labre deu a esse rio o nome de Acre. “M. Urbano, diz o Dr. S. Coutinho, navegou por elle 20 dias, em canoa regular, pelo verão. Nas margens encontra-se tabaco silvestre e salitre. Acorrente é forte. Muitas tribus habitam em suas proximidades, porém são quasi desconhecidas. Urbano esteve com alguns índios, mas não entendeu-lhes a giria, e conta que são bonitos, bem feitos e barbados. A vegetação nas margens é muito acanhada, e pouco além, por um e outro lado, começam os campos. Os índios usam de machados de ferro, e deram a entender a Urbano que iam compral-os a outras tribus que vivem muito adiante nos campos da margem esq. Aqui as margens do Purús são altas: os terrenos não ficam tão alagados, e assim continúa”. É de agua branca. Nasce na Bolívia. (os grifos são nossos).[11]
O interesse e as disputas pelo controle da economia da borracha envolveram nações, governantes, homens de negócios, políticos e intelectuais e o debate sobre o “batismo do rio Acre” esteve a tal ponto latente, em alguns momentos da primeira metade do século XX, que levou historiadores e especialistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) a se manifestarem sobre essa questão, inevitavelmente, sempre sob o invólucro da preocupação com a verdade científica e certos interesses pátrios. Nessa direção, José Moreira Brandão Castello Branco, em artigo publicado na Revista do IHGB, no ano de 1954, dedica-se a esclarecer que,
Havendo divergência sôbre a origem dêsse famoso rio e quanto à data do início de seu povoamento por João Gabriel de Carvalho Melo, procurei explicar o que havia a respeito, num artigo intitulado O nome do rio Acre [Revista Selva, 1949] e na monografia Caminhos do Acre [Revista do IHGB, 1947].
[...]
Pelo exposto, ficou demonstrado que a denominação de “Acre” para o rio que serviu de epígrafe a essas linhas, já existia antes da viagem de João Gabriel, em 1878, nem foi uma conseqüência dessa jornada, como se pensava, a qual indubitàvelmente, concorreu para que, bem ou mal interpretado o conteúdo da carta comunicando o abastecimento, se o divulgasse mais ràpidamente, em vista do povoamento daquela ribeira, e do intenso comércio que se estabeleceu com as praças do Pará e Manaus. Pela própria correspondência translada acima e datada do “Rio Purús”, desde 1877, o seu autor não fala em rio Aquiri, e sòmente em Acre, e, como regularmente redigida e anônima, não é incabível que se atribua ao referido Antônio Rodrigues Pereira Labre, o explorador mais inteligente, mais expedito e mais letrado da bacia puruense, ali residente, e o maior interessado no seu progresso, como se depreende de sua constante atividade.[12]
Como quem busca colocar um ponto final sobre a questão da origem do batismo do “rio Acre” e da data do início de sua colonização, Castello Branco economiza nas palavras e remete os leitores não apenas aos seus escritos e publicações anteriores, mas a uma plêiade de outros documentos e autores com os quais “esfumaça” a lenda em torno da carta de um “bandeirante” semi analfabeto ou, nas palavras de Leandro Tocantins, do “pobre moço da serra de Uruburetama”,[13] que invadiu e se apossou de imensas áreas de terras nas cobiçadas fronteiras amazônicas das últimas décadas do século XIX. Invasão essa marcada por um tipo de lógica muito conhecida nos processos de expansão ocidental para as Áfricas, pois no seu cerne prevalecia a noção de que “nem todos os homens têm os mesmos direitos”, como escreve Achille Mbembe: para os “civilizados” predomina certo direito de “dominar os não civilizados, de conquistar e de subjugar os bárbaros, devido à sua intrínseca inferioridade moral, de anexar as suas terras, ocupá-las e explorá-las”.[14]
Com “raízes embraquecidas”, a formação histórica do Acre, de Leandro Tocantins, em suas duas primeiras edições, também reproduziu a lenda da “carta de batismo” do rio “Acre”. No prefácio à “edição especial”, datada do ano de 1973, passados mais de cem anos da publicação do “Rio Purús”, de Labre, o paraense-acreano Tocantins mantinha inalterada a versão inicial de seu livro, “sempre servido da verdade do documento”.[15] No entanto, nos anos seguintes descobriria que sua “verdade dos fatos” estava com a data de validade vencida e, em 1979, no prefácio à terceira edição (publicação resultado da parceria entre o Instituto Nacional do Livro, o governo do estado do Acre e a Editora Civilização Brasileira), apresentaria a seguinte nota explicativa sobre “a origem do nome Acre”:
Nas edições anteriores de Formação Histórica do Acre, em nota preliminar sob o título A ORIGEM DO NOME, transmitia-se a versão corrente, em vários documentos de que ACRE teria surgido quase por adivinhação de quem procurava ler, na Casa Aviadora do Visconde de Santo Elias (Belém do Pará), carta que o cearense de Uruburetama, João Gabriel de Carvalho e Mello (o primeiro a estabelecer-se na região do rio Acre), escrevera, solicitando mantimentos para assegurar a posse da terra e uma grande produção de borracha. João Gabriel era homem de poucas letras. Daí o nome AQUIRY (pronúncia proparoxítona, na língua dos índios Apurinas), muito mal escrito, ser traduzido para ACRE, popularizando a corruptela. Acontece, porém, que o autor deste livro recebeu (carta de Campinas, em 11-9-1975) do Professor Luiz Antônio Pompeu de Camargo, Coordenador Associado do Campus Avançado de Cruzeiro do Sul, Acre, e do jurista de Rio Branco, Dr. Lourival Marques de Oliveira (correspondência de 1977), duas notícias semelhantes: O Diário Oficial do Império, de 31 de maio de 1913, ao transcrever notícias das Folhas do Amazonas, já citava o rio Acre. Cinco anos antes, portanto, do estabelecimento de João Gabriel nesse rio, em março de 1878, o Professor Pompeu de Camargo que residia 2 anos e 4 meses em Cruzeiro do Sul, desempenhando a função de Diretor do Campus Avançado (Projeto Rondon – Universidade de Campinas), também remeteu ao autor Xerox de uma página de O Juruá, órgão da imprensa de Cruzeiro do Sul (n° 153, de 31-1-1970), onde se comprova o nome ACRE, já citado em 1872 pelo grande sertanista e desbravador do Purus Cel. Antônio Pereira Labre. Em homenagem à imprensa acreana, menciona-se aqui, O Juruá, como veiculador da notícia que coloca definitivamente na História a versão exata dos fatos. Assinale-se que, antes, em O Juruá, de 1°-5-1966, o Professor João Mariano já se pronunciara, à luz de documento, a favor da primazia do Cel. Pereira Labre em mencionar o nome ACRE, aportuguesando, assim, o topônimo indígena AQUIRY.[16]
Leandro Tocantins sinaliza com um gesto de grandeza e humildade ao reconhecer que sua “verdade anterior” foi suplantada por “outra verdade”. Porém, trata-se de um gesto limitado a algumas linhas escritas em uma nota de rodapé na qual sequer reconhece que a “nova verdade” era centenária e antecedia mesmo à sua obra acerca da “triunfal” formação histórica do Acre. Para não deixar dúvidas quanto ao seu positivismo exacerbado, ao invés de adotar as narrativas que lhe foram enviadas como evidências de ruptura com um saber e um conhecimento histórico que tinha como algo inalterável, as insere em seu texto como uma “versão exata” e definitiva “dos fatos”.
Essa abordagem de Tocantins e de todos aqueles que o acompanham na esteira desse tipo de interpretação e controle da “verdade histórica” é, na feliz acepção de Albuquerque Júnior, algo demasiadamente tirânico, posto que, “a partir dos sinais deixados pelo passado” procuram construir e impor uma “verdade definitiva” e não uma interpretação, uma possibilidade de interpretação histórica. A imposição de uma “verdade dos fatos históricos”, uma “verdade isenta e imparcial” é o que proclama o autor de Formação histórica do Acre, em uma perspectiva que é autoritária porque se alimenta da “história das certezas”, solapando “qualquer perspectiva democrática que nasce do respeito às diferenças e não a uma hierarquia de identidades instituídas”.[17]
Qual é a diferença que faz saber se foi João Gabriel ou Labre o primeiro “desbravador” a denominar de “rio Acre” o “mundo natural” que os Apurinã chamavam de Uwa’kürü, Uákiry ou Aquiry? Qual é a diferença que isso faz, especialmente, quando sabemos que Uwa’kürü, Uákiry ou Aquiry, assim como Acre, são grafias dos próprios “desbravadores” ou dos escribas desses devassadores de rios, florestas e gentes? Qual é a diferença que faz se sabemos que Labre, João Gabriel e tantos outros “amansadores de deserto” eram movidos pelos mesmos interesses econômicos, definidores de seus amores a pátrias e patrões? Quantas incursões pelos rios da região foram feitas – deixando ou não relatos escritos – ou quantas incursões e devassas culturais foram necessárias até que se chegasse a essa grafia “Acre”, com aventureiros e exploradores de diversas nacionalidades se cruzando com os diferentes grupos étnicos da região, conversando e procurando se entender em suas línguas e códigos? Quantas experiências nos rios e florestas com homens, mulheres, palavras, produtos e mercadorias transitando e produzindo diferentes rotas foram necessárias para o ato de batismo do rio “Acre”?
Não cremos que essas problemáticas possam ser respondidas com a obsessiva procura pelas origens, tradições, identidades, continuidades, verdades dos fatos, fundamentalmente, porque no âmago da “história dos vencedores”, na Amazônia acreana, o que fica latente é o seringalismo, que, de acordo com João Veras Souza, implicou na “racialização dos sujeitos indígenas e seringueiros, de modo a considerá-los, especialmente para efeito de suas explorações e domínios, como, respectivamente, não humanos e sub-humanos”, algo que funcionou “como elemento legitimador da dominação e da exploração moderno colonial na região”.[18]
A origem do nome “rio Acre” foi transformada em ponto de partida para “Acre”, “acreanidade” e “acreano” ou, como agora “manda” a norma da língua portuguesa, “acriano”. Uma origem que historiadores e outros escribas da “saga épica” – responsável pelo esticamento e expansão das fronteiras e narrativa da nação para essa parte do globo – acreditam ter brotado do erro de um cearense iletrado ou da intrepidez de um maranhense letrado. Uma crença que foi transformada em “versão exata dos fatos”, em um exercício prático de eliminar ou tornar invisível outras possibilidades de diálogo com as experiências de milhares de mulheres e homens que foram jogados nas margens do espaço/tempo da história.
A crença na “versão exata dos fatos”, exaltada por Leandro Tocantins em obra reeditada pelo Senado Federal como parte das celebrações dos “500 anos de Brasil”, atualiza esse “rito de batismo” enquanto amálgama de distintos processos históricos: “Acre” (dos “nordestinos” ocupando seus “sertões vazios e solitários”), “Acre” (estado independente), “Acre” (dos brasileiros do “Acre”), “Acre” (da “Revolução Acreana”), “Acre” (do Tratado de Petrópolis); “Acre” (Território Federal), “Acre” (do Movimento Autonomista), “Acre” (dos acreanos), “Acre” (estado autônomo da federação brasileira), “Acre” (dos “Povos da Floresta”), “Acre” (da florestania”), “Acre” (da sustentabilidade), “Acre” (do “melhor lugar” para se viver), “Acre” (do orgulho de ser acriano), entre outras invenções desse porte que apareceram/aparecem ou desaparecem/reaparecem no interior do campo de forças e das relações de poder que as institucionalizam em ordenamentos discursivos secularmente datados: “não se pode falar qualquer coisa em qualquer época”.[19]
Esses distintos “Acre(s)” não existem e jamais existiram enquanto “realidade concreta”, mas tão somente enquanto enunciados que nada revelam, isto é, que não têm como encontrar seus supostos referentes em espaço/tempo algum. Trata-se de um conjunto de práticas discursivas, lançando mão das reflexões de Foucault, e as práticas discursivas não são um amontoado de palavras e seus referentes, pois as palavras não são a mera representação da realidade. As práticas discursivas têm suas próprias regras e essas regras desfazem “os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas”. Essas regras, insiste Foucault, “definem não a existência muda de uma realidade, não o uso canônico de um vocabulário, mas o regime dos objetos”. Mais que isso, para esse pensador francês o desafio ou tarefa que se apresenta é a
que consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos, mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever.[20]
Na clareira aberta por tais reflexões, não nos interessa analisar certas “realidades acreanas” – ou o conjunto de escritos e imagens que supostamente representariam essas realidades – como se elas estivessem ali, desde sempre, passíveis de representação. Ao contrário, pensamos que é necessário superar a alienação que nos acomoda a um lugar que não existe, a um Acre narrado como um dado objetivo, um dado natural, com uma cultura, uma identidade, uma história, um tipo de gente, uma vegetação, uma fauna, uma fronteira, um pretensioso modelo de desenvolvimento sustentável para si e para o mundo. Acreditar em toda essa parafernália discursiva nos torna seres alienados, sem saber quem somos, onde estamos, de onde viemos ou para onde queremos ir.
A identidade acreana, assim como a identidade nacional e a regional nada mais são que construções mentais, retornamos a Albuquerque Júnior, para quem esses tipos de identidades
são conceitos sintéticos e abstratos que procuram dar conta de uma generalização intelectual, de uma enorme variedade de experiências efetivas. Falar e ver a nação ou a região [ou o estado, a cidade, a floresta, o rio] não é, a rigor, espelhar estas realidades, mas criá-las. São espaços que se institucionalizam, que ganham foro de verdade. Essas cristalizações de pretensas realidades objetivas nos fazem falta, porque aprendemos a viver por imagens. Nossos territórios existenciais são imagéticos. Eles nos chegam e são subjetivados por meio da educação, dos contatos sociais, dos hábitos, ou seja, da cultura, que nos faz pensar o real como totalizações abstratas.[21]
À guisa de conclusão, ressaltamos que “Acre” é algo que não encontra referente em espaço/tempo algum, em coisa alguma, em região, floresta rio ou cidade alguma: é somente um enunciado. É algo que foi naturalizado pelas estratégias e acervos de imagens e palavras que o inventaram e reinventaram, decantando-o e repetindo-o inúmeras vezes, objetificando suas características, cores e identidades como partes indissociáveis dessa invenção. Uma invenção ancorada na estética amazonialista que é essa estética do vazio – desértico, distante, dependente, solitário, isolado, insalubre, vítima – que governa nossas subjetividades. Uma estética que precisa ser problematizada em outras escritas sobre os mundos que habitamos. Escritas essas que, nas palavras de Albuquerque Júnior, privilegiem
tudo o que remete ao sabor acre, a escrita de uma história que sabe a acre, ou seja, uma história ácida, não necessariamente azeda, [...], capaz de cortar todas as certezas e verdades, de ferir os bem pensantes e os bons pensamentos. [...] É preciso, para isso, que os historiadores estabeleçam uma outra relação com a linguagem, rompam com a visão de que a linguagem é um espelho ou um mero instrumento de expressão, é preciso que deixem de acreditar ainda que as palavras dizem as coisas, realisticamente. Uma historiografia que nos faça manter uma relação problemática com as memórias, com as lembranças, tornando nossa relação com o passado distanciada e crítica, longe de saudosismos e nostalgias, mesmo as populistas. Uma historiografia capaz de nos afastar da adesão aos códigos que regem nossa cultura, capaz de problematizar os conceitos que nos definem e que nos servem para dizer e inventar o mundo à nossa imagem e semelhança. É preciso a construção de um discurso historiográfico áspero, seco, que não seja fácil de ser tragado, que incomode a quem lê e também a quem produz. [...] É preciso escrever um texto historiográfico que fira, que provoque dor ao trazer para a cena os eventos e personagens que foram feridos, magoados, que doloridos viveram vidas de resto e de rastro. Uma história que trate dos homens e mulheres que viveram vidas ásperas e rústicas. [...] Uma escrita historiográfica que perturbe nosso pensamento e nossos sentimentos, que nos faça pensar e sentir diferentes, uma história que nos desencaminhe mais do que nos oriente. [...] A história acre embora amarga não é aquela que busca fazer chorar, mas aquela que busca contorcer, distorcer e torcer os sentidos e os significados hegemônicos para a vida e para morte...[22]
Precisamos produzir escritas de sabor/saber acre, escritas capazes de destruir esse “Acre” que nunca existiu, esse “Acre” objetivado por certa narrativa, esse “Acre” ensinado e atualizado pelo conjunto de instituições que, dia e noite, trabalham a serviço da ordem. Precisamos produzir outras escritas, capazes de alterar a vida que vivemos, capazes de nos ajudar a redefinir nossos “territórios existenciais”, nossas escolhas, nossas experiências em um mundo que subjuga a vida a um mero conjunto de palavras, mercadorias e imagens sem significado, destinadas ao consumo e ao descarte imediato. Precisamos produzir essas outras escritas, social e eticamente comprometidas com as lutas para mudar a aparente “ordem natural” da história de violências e injustiças contra as humanidades e naturezas dos espaços/tempos que habitamos.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. – 4. ed. – São Paulo: Cortez Editora, 2009.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. Por uma história acre: saberes e sabores da escrita historiográfica. In: ALBUQUERQUE, G. R.; ANTONACCI, M. A. Desde as Amazônias I – colóquios. Rio Branco (AC): Nepan Editora, 2014, pp. 111-133.
ARAÚJO, A. P. Mito ou lenda? In: InfoEscola – navegando e aprendendo. Disponível em https://goo.gl/XHynF. Acesso em 19 de maio de 2016.
CARNEIRO, E. A. O discurso fundador do Acre(ano): história e linguística. Rio Branco (AC): EAC Editor, 2016.
CASTELO BRANCO, J. M. B. O rio Acre. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB. v.225, out./dez/1954. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1955, pp. 294-298.
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FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves – 6. ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
LABRE, A. R. P. Rio Purús – notícia, 1872. In: ROCHA, H. Coronel Labre. São Carlos (SP): Editora Scienza, 2016.
MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.
MEIRA, S. A. B. A epopéia do Acre: batalha do ouro-negro. Rio de Janeiro: Record, 1967.
MICHAELIS, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Disponível em https://goo.gl/H45bSX. Acesso em 17 de maio de 2016.
MOREIRA PINTO, A. Apontamentos para o Diccionario Geographico do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1894.
RIBEIRO, N. O Acre e os seus heróis: contribuição para a História do Brasil, Brasília: Senado Federal 2008 [1930].
SOUZA, J. J. V. Seringalidade: a colonialidade no Acre e os condenados da floresta. Florianópolis (SC): UFSC, 2016. (Tese de Doutorado em Ciências Humanas).
TOCANTINS, L. Formação Histórica do Acre. – 4. ed., v.1 – Brasília: Senado Federal, 2001.

GERSON RODRIGUES DE ALBUQUERQUE
Doutor em História Social (PUC-SP, 2001)
Professor da Universidade Federal do Acre
Centro de Educação, Letras e Artes



[1] Cunha, Dicionário etimológico da língua portuguesa, 2007.
[2] Michaelis, Dicionário brasileiro da língua portuguesa.
[3] Embora partindo de uma abordagem diferente da nossa, um importante e indispensável estudo sobre os signos “Acre(s)” pode ser encontrado em Carneiro, O discurso fundador do Acre(ano), 2016.
[4] Michaelis, Dicionário brasileiro da língua portuguesa.
[5] Ribeiro, O Acre e os seus heróis, 2008, p. 38.
[6] Araújo, Mito ou lenda? 2016.
[7] Meira, A epopéia do Acre, 1967, pp. 12-14.
[8] Albuquerque Jr., Por uma história acre, 2014, p. 126.
[9] Idem.
[10] Labre, Rio Purus, 1972. Cf. Rocha, Coronel Labre, 2016, p. 147.
[11] Moreira Pinto, Apontamentos para o Diccionario Geographico do Brazil, 1894, p. 124.
[12] Castello Branco, O rio Acre, 1954, pp. 294 e 298.
[13] Tocantins, Formação histórica do Acre, 2001, p. 179.
[14] Mbembe, Crítica da razão negra, 2014, pp. 110-111.
[15] Tocantins, Prefácio à segunda edição de Formação histórica do Acre [1973], 2001, p. 13.
[16] Tocantins, Prefácio à terceira edição de Formação histórica do Acre [1979], 2001, p. 15.
[17] Albuquerque Jr., A invenção do Nordeste e outras artes, 2009, p. 350.
[18] Cf. Souza, Seringalidade, 2016. Ver também o verbete “Seringalismo”, parte constante deste
fascículo.
[19] Foucault, A arqueologia do saber, 2000, p. 51.
[20] Foucault, A arqueologia do saber, 2000, p. 56.
[21] Albuquerque Jr., A invenção do Nordeste e outras artes, 2009, p. 38.
[22] Albuquerque Jr., Por uma história acre, 2014, pp. 128-130.

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