Para nos movermos à
margem do ufanismo de muitos que passaram a se identificar como “acrianos” e a
difundir a idealizada noção de que o “melhor lugar é aqui” – no estado do Acre
–, pensamos ser interessante percorrer as definições da palavra “acre”, em sua forma
dicionarizada, a título de introdução deste breve ensaio. Nessa direção,
destacamos que o “Dicionário etimológico da língua portuguesa”, de Antônio
Geraldo da Cunha, descreve o verbete “acre” de duas maneiras: 1. na condição de
adjetivo de dois gêneros que, oriundo do latim acre (século XVII), é
designativo de “ácido, áspero, árduo”; 2. Na condição de substantivo masculino
que, oriundo do inglês acre (1871), é designativo de “medida agrária”. Ainda
pelas linhas descritas nesse dicionário, ácido é, ao mesmo tempo, adjetivo e
substantivo masculino que designa algo ou alguma coisa “de sabor acre, azedo”
(século XVII); áspero é adjetivo de “acidentado, irregular, desagradável,
ríspido” (século XIV); e árduo é adjetivo que designa algo “escarpado,
espinhoso, áspero”, “trabalhoso, custoso” (século XIV).[1]
O
mesmo verbete “acre” pode ser encontrado no Michaelis, dicionário eletrônico de
língua portuguesa, que assim o descreve:
Acre
1. sm (ingl. acre) Metrif. Medida agrária de superfície
variável, usada em certos países e baseada em uma unidade antiga que correspondia
à área de terreno arado por uma junta de bois em um dia.
2. adj m+f (lat. acre) 1 De ação picante e corrosiva. 2 Com
odor forte; áspero, irritante. 3 De sabor ácido, azedo. 4 Fig. Que causa aflição.
5 De som estridente. 6 Fig. De grande aspereza.[2]
Não
pretendemos fazer incursões para evidenciar que “acre” – definidor de uma
medida agrária – não tem nada a ver com “acre” – definidor de um sabor –, mas,
seguindo as definições acima descritas, podemos fazer alguns deslocamentos,
posto que na estrutura das línguas criadas pelos homens – na condição de
estruturas rígidas e abstratas – é possível transitar em meio ao léxico,
acompanhando a mutação presente nos movimentos históricos das
palavras/conceitos e suas possibilidades de interpretação e tradução. Assim,
chegamos a outros adjetivos/substantivos que nos levam a acre ou que dele são
derivados.[3]
Vejamos os que mais se destacam: picante, corrosivo, áspero, irritante, azedo,
acerbo, desabrido, irascível. Mais uma vez recorremos ao Michaelis que, de um
modo em geral, assim descreve esses termos: 1. picante é aquilo ou algo
que pica, que excita o paladar, que estimula o apetite, que é ácido,
apimentado, que é malicioso, mordaz, provocante; 2. corrosivo é aquilo
que corrói, que é erodente, que destrói, desorganiza, que é cáustico; 3. áspero
é algo ou alguma coisa com superfície desigual, incômoda ao tato, algo duro,
rígido, que não se dobra, que é acidentado, escabroso, fragoso, irregular, que
é desagradável ao paladar, acre, azedo, que é desagradável, sem harmonia,
desbotado, que é acerbo, desabrido, grosseiro, intratável, rigoroso, rude,
severo; 4. irritante é algo ou alguma coisa que irrita, que excita a
cólera, que provoca inflamação, que estimula, excita, que produz irritação, que
anula; 5. azedo é aquilo que tem sabor ácido, acre, que tem sabor desagradável,
que é fermentado, que é áspero, acerbo, que é rude; 6. acerbo, diz-se de
algo com sabor acre, sabor ruim, que é áspero, duro, rigoroso, severo, que é
cruel, pungente, terrível; 7. desabrido é aquilo que é desenfreado,
desordenado, que é áspero, violento, que é rude, grosseiro, insolente,
inconveniente; 8. Irascível que é propenso à irritação, que se irrita com facilidade.[4]
Para
contextualizar nossa análise, não temos a intenção de entrar no mérito ou em
maiores discussões sobre esses adjetivos/substantivos, posto que o foco de
nosso interesse é a historicidade do enunciado “Acre”, nome com que os
colonizadores batizaram um rio amazônico, como forma de retirar-lhe a aparente
naturalidade, especialmente, porque esse “Acre” passou a ser difundido como
referência de um lugar, uma “parte da Amazônia” e da narrativa da “nação brasileira”,
romantizando, harmonizando, homogeneizando e tornando a-histórico e abstrato
todo o conjunto de experiências de mulheres e homens de “certa Amazônia”.
“Acre”
é uma palavra produzida pelos homens para designar ou classificar/catalogar um
sabor, uma medida de terra, um rio ou uma unidade da federação brasileira. Desta
última, uma invenção datada do início do século XX, derivou “acreano”, também
utilizado para adjetivar ou classificar/catalogar a pessoa nascida no “estado
do Acre” ou que “vive no Acre” ou que “escolheu ser acreana”. A partir desse termo,
outros – derivados seus – foram e vêm sendo inventados e reinventados: “falar
acreano”, “cultura acreana”, “música acreana”, “culinária acreana”, “mercado
acreano”, “hino acreano”, “bandeira acreana”, “governo acreano”, “identidade
acreana”, “mulher acreana”, “homem acreano”, “orgulho acreano”, “acreanidade”,
“cidades acreanas”, “política acreana”, “economia acreana”, “religião acreana”,
“desenvolvimento acreano”, apenas para citar alguns. Tais palavras/conceitos
foram produzidas ou sub-produzidas por diferentes narrativas, historicamente
datadas e articuladas a determinados interesses, intenções ou projetos de grupos
sociais e, em seguida, propagandeadas e difundidas de múltiplas e repetidas
formas para que parecessem/pareçam e sejam sentidas ou incorporadas como coisas
naturais.
Enquanto
designação de um sabor azedo, amargo ou enquanto medida agrária, acre não é um
dado da natureza, como também não é na forma da designação atribuída a um rio
e, bem mais tarde, a uma porção de terras disputada entre o Brasil, a Bolívia e
o Peru, que, pela força da persuasão diplomática registrada em acordos,
convenções e tratados internacionais passou a configurar como parte do território
e da narrativa da nação brasileira. O destaque aqui é para o Tratado de Petrópolis,
gestado pelo manuseio e a movimentação de palavras e armas.
Se,
na designação de um sabor, que ninguém deseja, ou de uma medida de terra, que
muitos desejam, acre não é algo natural, na forma de parte da narrativa da
nação também não é, posto que narrativa, produto da experiência e das relações
sociais e de poder humanas e, nesse sentido, algo que não brotou do solo, das
águas, do ar ou da floresta.
Feitas
essas observações mais gerais, pensamos ser necessário ou, no dizer do poeta,
“urgente e preciso” submeter o óbvio “Acre”, estado e constituidor de certas
“identidades” locais/regionais ao escrutínio da interrogação, começando pela
lenda que nos contam desde décadas atrás, turvando as possibilidades de vermos
o mundo das margens do rio, grafado Uwa’kürü, Uákiry, Aquiry ou Acre, sob os tons
de suas próprias cores, distante das patologias ufanistas e dos brasões,
símbolos e insígnias da pátria e seus patriarcas. Lenda essa que Napoleão
Ribeiro registrou em uma passagem de seu “O Acre e os seus heróis”, publicado
no ano de 1930 (reeditado em 2008), fazendo alusão a uma carta que Gabriel de
Carvalho e Mello, um dos colonizadores da Amazônia acreana, enviara à casa
aviadora do Visconde de Santo Elias, da cidade de Belém do Pará. Segundo
Ribeiro, a missiva teria sido escrita às pressas e “apesar de ter boa letra,
tais garatujas imprimiu que a sua carta, no escritório do Pará, passando de
mãos em mãos, para se verificar o nome do lugar, foi decifrado – Acre e o
Aquiry passou a ser mesmo Acre”.[5]
Em
seu ardor patriótico e fantástica imaginação, Ribeiro parecia imbuído do
propósito de fazer com seus leitores levassem ao pé da letra o sentido
etimológico da palavra lenda que, oriunda do latim medieval, quer dizer “aquilo
que deve ser lido”.[6] Seu escrito foi não apenas
lido e relido, mas reescrito inúmeras vezes por sócios do Instituto Histórico e
Geográfico do Acre (IHGA) e por diferentes escribas da história regional. Um
desses escribas, Sílvio Augusto de Bastos Meira, decidido a aprimorar tal
ficção, constituiu o cenário com mais alegorias e, trinta e sete após a
publicação de Ribeiro, reescreveria tal lenda, enfatizando que, em um dos
barrancos do rio Aquiry,
aportou João Gabriel e ali montou o
seu barracão, dando origem a um novo “seringal”. Com sua mão áspera escreveu uma
carta comercial ao Visconde de Santo Elias, em Belém, solicitando mercadorias.
E enviou o novo endereço: João Gabriel, rio Aquiri.
No escritório do Visconde de Santo
Elias embalam-se as mercadorias pedidas por esse cliente de lugar tão remoto. Ao
ser escrito à tinta azul, nos variados caixotes, o nome do seringalista, surge
um obstáculo. O nome de João Gabriel está bem legível, ninguém entende, porém, o
do rio por ele indicado: rio Aquiri, rio Acri ou Acre? As letras manuscritas
grosseiras resistem a vários exames. Na dúvida, lança-se em grandes letras o
endereço que parece mais provável: João Gabriel, rio Acre. Era o rio Aquiri
completamente desconhecido. Jamais alguém havia ocupado as suas margens ou
explorado o seu curso. João Gabriel, o pioneiro, sem o saber, batizou o novo
território a explorar.
Naquela tarde chuvosa de 1877 surgia
no escritório comercial de Belém o nome que haveria de designar uma bela e rica
região.
[...]
E assim surgiu para a História o nome
Acre, corrupção de Aquiri, o rio que dava acesso a um Novo Mundo de riquezas
incalculáveis, perdidas outrora nas florestas povoadas de índios. Quando João
Gabriel chegou ao Aquiri em 1877, em toda a extensão do curso fluvial viviam
tribos indígenas apenas: os Catianas e Maitenecas nas cabeceiras, os Amoacas,
Araras, da família dos Nauas, os Canamaris, Catianas, Maneteris e Ipurinás,
estes últimos da família dos Aruaques, que se estendiam do Baixo Acre até o
vale do Purus.
A pouco e pouco os selvagens viram a
sua terra devassada por nordestinos e o seu rio, que antes se chamava Aquiri,
passou a ser conhecido pelo nome “Acre”.[7]
Na
produção de tal acontecimento, Meira repetia a lenda, agregando cores, sons e
uma “tarde chuvosa” à história que difundia como parte da bucólica invenção de
um “Acre épico”. Uma invenção que, repetida inúmeras vezes, se tornaria
“importante topos da narrativa regionalista da história nacional”, adotando a
identidade nordestina como uma espécie de “entidade coletiva”[8]
para milhares de diferentes homens e mulheres que invadiram a Amazônia acreana
e devassaram territórios e culturas de populações indígenas que habitavam a região,
impondo a barbárie da impiedosa exploração de sociedades e natureza como
símbolo da “civilização” que avançava sobre os “sertões”. Uma identidade,
devemos enfatizar, completamente anacrônica e a-histórica, no dizer de
Albuquerque Júnior, “pois não existia a identidade nordestina, nem o sujeito
nordestino até o final dos anos dez e os anos vinte”
do século XX.[9]
À
anacrônica identidade nordestina, enquanto um dos marcos da invenção do Acre,
se fez acompanhar da invenção da lenda em torno da origem do nome do lugar Acre,
primeiramente como um rio e depois como um território que abrangia muitos
outros rios, terras e florestas, especialmente, que fossem abundantes em
árvores de seringueiras. Não temos nenhum interesse e nem acreditamos que faça qualquer
sentido acompanhar a obsessão de muitos historiadores pelas origens disto ou
daquilo, mas consideramos curioso que os apegados às ideias fixas não tenham se
dado conta que, em 1872, portanto, 58 anos antes da publicação de “O Acre e os
seus heróis” e 95 anos antes da publicação da “A epopéia do Acre”, a
Typographia do Paiz, imprensa de M. F. V. Pires, da Província do Maranhão,
publicara o relato de Antonio Rodrigues Pereira Labre, intitulado “Rio Purús”,
no qual a grafia do rio que Napoleão Ribeiro e Bastos Meira atribuíram ao erro
de um “nordestino” chamado João Gabriel, já aparece literalmente estampada como
“rio Acre”, um dos afluentes do Purus em cujas margens, “no tempo da vasante,
mostra-se nas ribanceiras grandes quantidades de salitre”.[10]
Esse
“desconhecimento” torna-se mais intrigante quando percebemos que o “Relato do
Purús” circulou na capital do império e, após 1889, da república, com parte dos
escritos de Labre ganhando eco nos “Apontamentos para o Diccionario Geographico
do Brazil”, de Alfredo Moreira Pinto, cujo esboço para a primeira edição,
datado do ano de 1883, seria publicado pela Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, em
1894. No verbete “Aquiry”, constante dessa edição, Moreira Pinto descreve:
Um
dos tribs. da margem dír. do Purús, aff. Do Solímões. E’ o maior de todos os
tribs., que lhe augmenta consideravelmente o volume e é navegável durante o
inverno até próximo á barra do rio das Pontes. (Chandless). O tenente-coronel
Labre deu a esse rio o nome de Acre. “M. Urbano, diz o Dr. S. Coutinho, navegou
por elle 20 dias, em canoa regular, pelo verão. Nas margens encontra-se tabaco
silvestre e salitre. Acorrente é forte. Muitas tribus habitam em suas
proximidades, porém são quasi desconhecidas. Urbano esteve com alguns índios, mas
não entendeu-lhes a giria, e conta que são bonitos, bem feitos e barbados. A
vegetação nas margens é muito acanhada, e pouco além, por um e outro lado,
começam os campos. Os índios usam de machados de ferro, e deram a entender a
Urbano que iam compral-os a outras tribus que vivem muito adiante nos campos da
margem esq. Aqui as margens do Purús são altas: os terrenos não ficam tão
alagados, e assim continúa”. É de agua branca. Nasce na Bolívia. (os grifos são
nossos).[11]
O
interesse e as disputas pelo controle da economia da borracha envolveram
nações, governantes, homens de negócios, políticos e intelectuais e o debate
sobre o “batismo do rio Acre” esteve a tal ponto latente, em alguns momentos da
primeira metade do século XX, que levou historiadores e especialistas do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) a se manifestarem sobre essa
questão, inevitavelmente, sempre sob o invólucro da preocupação com a verdade
científica e certos interesses pátrios. Nessa direção, José Moreira Brandão
Castello Branco, em artigo publicado na Revista do IHGB, no ano de 1954, dedica-se
a esclarecer que,
Havendo divergência sôbre a origem
dêsse famoso rio e quanto à data do início de seu povoamento por João Gabriel
de Carvalho Melo, procurei explicar o que havia a respeito, num artigo
intitulado O nome do rio Acre [Revista Selva, 1949] e na monografia Caminhos do
Acre [Revista do IHGB, 1947].
[...]
Pelo exposto, ficou demonstrado que a
denominação de “Acre” para o rio que serviu de epígrafe a essas linhas, já
existia antes da viagem de João Gabriel, em 1878, nem foi uma conseqüência dessa
jornada, como se pensava, a qual indubitàvelmente, concorreu para que, bem ou
mal interpretado o conteúdo da carta comunicando o abastecimento, se o
divulgasse mais ràpidamente, em vista do povoamento daquela ribeira, e do
intenso comércio que se estabeleceu com as praças do Pará e Manaus. Pela
própria correspondência translada acima e datada do “Rio Purús”, desde 1877, o
seu autor não fala em rio Aquiri, e sòmente em Acre, e, como regularmente
redigida e anônima, não é incabível que se atribua ao referido Antônio
Rodrigues Pereira Labre, o explorador mais inteligente, mais expedito e mais
letrado da bacia puruense, ali residente, e o maior interessado no seu
progresso, como se depreende de sua constante atividade.[12]
Como
quem busca colocar um ponto final sobre a questão da origem do batismo do “rio
Acre” e da data do início de sua colonização, Castello Branco economiza nas palavras
e remete os leitores não apenas aos seus escritos e publicações anteriores, mas
a uma plêiade de outros documentos e autores com os quais “esfumaça” a lenda em
torno da carta de um “bandeirante” semi analfabeto ou, nas palavras de Leandro
Tocantins, do “pobre moço da serra de Uruburetama”,[13]
que invadiu e se apossou de imensas áreas de terras nas cobiçadas fronteiras amazônicas
das últimas décadas do século XIX. Invasão essa marcada por um tipo de lógica
muito conhecida nos processos de expansão ocidental para as Áfricas, pois no
seu cerne prevalecia a noção de que “nem todos os homens têm os mesmos direitos”,
como escreve Achille Mbembe: para os “civilizados” predomina certo direito de
“dominar os não civilizados, de conquistar e de subjugar os bárbaros, devido à sua
intrínseca inferioridade moral, de anexar as suas terras, ocupá-las e
explorá-las”.[14]
Com
“raízes embraquecidas”, a formação histórica do Acre, de Leandro Tocantins, em
suas duas primeiras edições, também reproduziu a lenda da “carta de batismo” do
rio “Acre”. No prefácio à “edição especial”, datada do ano de 1973, passados
mais de cem anos da publicação do “Rio Purús”, de Labre, o paraense-acreano
Tocantins mantinha inalterada a versão inicial de seu livro, “sempre servido da
verdade do documento”.[15]
No entanto, nos anos seguintes descobriria que sua “verdade dos fatos” estava
com a data de validade vencida e, em 1979, no prefácio à terceira edição (publicação
resultado da parceria entre o Instituto Nacional do Livro, o governo do estado
do Acre e a Editora Civilização Brasileira), apresentaria a seguinte nota
explicativa sobre “a origem do nome Acre”:
Nas edições anteriores de Formação
Histórica do Acre, em nota preliminar sob o título A ORIGEM DO NOME, transmitia-se
a versão corrente, em vários documentos de que ACRE teria surgido quase por
adivinhação de quem procurava ler, na Casa Aviadora do Visconde de Santo Elias
(Belém do Pará), carta que o cearense de Uruburetama, João Gabriel de Carvalho
e Mello (o primeiro a estabelecer-se na região do rio Acre), escrevera, solicitando
mantimentos para assegurar a posse da terra e uma grande produção de borracha.
João Gabriel era homem de poucas letras. Daí o nome AQUIRY (pronúncia proparoxítona,
na língua dos índios Apurinas), muito mal escrito, ser traduzido para ACRE,
popularizando a corruptela. Acontece, porém, que o autor deste livro recebeu (carta
de Campinas, em 11-9-1975) do Professor Luiz Antônio Pompeu de Camargo,
Coordenador Associado do Campus Avançado de Cruzeiro do Sul, Acre, e do jurista
de Rio Branco, Dr. Lourival Marques de Oliveira (correspondência de 1977), duas
notícias semelhantes: O Diário Oficial do Império, de 31 de maio de 1913, ao transcrever
notícias das Folhas do Amazonas, já citava o rio Acre. Cinco anos antes,
portanto, do estabelecimento de João Gabriel nesse rio, em março de 1878, o
Professor Pompeu de Camargo que residia 2 anos e 4 meses em Cruzeiro do Sul,
desempenhando a função de Diretor do Campus Avançado (Projeto Rondon –
Universidade de Campinas), também remeteu ao autor Xerox de uma página de O
Juruá, órgão da imprensa de Cruzeiro do Sul (n° 153, de 31-1-1970), onde se
comprova o nome ACRE, já citado em 1872 pelo grande sertanista e desbravador do
Purus Cel. Antônio Pereira Labre. Em homenagem à imprensa acreana, menciona-se
aqui, O Juruá, como veiculador da notícia que coloca definitivamente na
História a versão exata dos fatos. Assinale-se que, antes, em O Juruá, de
1°-5-1966, o Professor João Mariano já se pronunciara, à luz de documento, a
favor da primazia do Cel. Pereira Labre em mencionar o nome ACRE, aportuguesando,
assim, o topônimo indígena AQUIRY.[16]
Leandro
Tocantins sinaliza com um gesto de grandeza e humildade ao reconhecer que sua
“verdade anterior” foi suplantada por “outra verdade”. Porém, trata-se de um
gesto limitado a algumas linhas escritas em uma nota de rodapé na qual sequer
reconhece que a “nova verdade” era centenária e antecedia mesmo à sua obra
acerca da “triunfal” formação histórica do Acre. Para não deixar dúvidas quanto
ao seu positivismo exacerbado, ao invés de adotar as narrativas que lhe foram
enviadas como evidências de ruptura com um saber e um conhecimento histórico
que tinha como algo inalterável, as insere em seu texto como uma “versão exata”
e definitiva “dos fatos”.
Essa
abordagem de Tocantins e de todos aqueles que o acompanham na esteira desse
tipo de interpretação e controle da “verdade histórica” é, na feliz acepção de
Albuquerque Júnior, algo demasiadamente tirânico, posto que, “a partir dos
sinais deixados pelo passado” procuram construir e impor uma “verdade
definitiva” e não uma interpretação, uma possibilidade de interpretação
histórica. A imposição de uma “verdade dos fatos históricos”, uma “verdade
isenta e imparcial” é o que proclama o autor de Formação histórica do Acre, em
uma perspectiva que é autoritária porque se alimenta da “história das
certezas”, solapando “qualquer perspectiva democrática que nasce do respeito às
diferenças e não a uma hierarquia de identidades instituídas”.[17]
Qual
é a diferença que faz saber se foi João Gabriel ou Labre o primeiro
“desbravador” a denominar de “rio Acre” o “mundo natural” que os Apurinã
chamavam de Uwa’kürü, Uákiry ou Aquiry? Qual é a diferença que isso faz, especialmente,
quando sabemos que Uwa’kürü, Uákiry ou Aquiry, assim como Acre, são grafias dos
próprios “desbravadores” ou dos escribas desses devassadores de rios, florestas
e gentes? Qual é a diferença que faz se sabemos que Labre, João Gabriel e
tantos outros “amansadores de deserto” eram movidos pelos mesmos interesses
econômicos, definidores de seus amores a pátrias e patrões? Quantas incursões
pelos rios da região foram feitas – deixando ou não relatos escritos – ou
quantas incursões e devassas culturais foram necessárias até que se chegasse a
essa grafia “Acre”, com aventureiros e exploradores de diversas nacionalidades
se cruzando com os diferentes grupos étnicos da região, conversando e
procurando se entender em suas línguas e códigos? Quantas experiências nos rios
e florestas com homens, mulheres, palavras, produtos e mercadorias transitando
e produzindo diferentes rotas foram necessárias para o ato de batismo do rio
“Acre”?
Não
cremos que essas problemáticas possam ser respondidas com a obsessiva procura
pelas origens, tradições, identidades, continuidades, verdades dos fatos, fundamentalmente,
porque no âmago da “história dos vencedores”, na Amazônia acreana, o que fica
latente é o seringalismo, que, de acordo com João Veras Souza, implicou na
“racialização dos sujeitos indígenas e seringueiros, de modo a considerá-los,
especialmente para efeito de suas explorações e domínios, como, respectivamente,
não humanos e sub-humanos”, algo que funcionou “como elemento legitimador da dominação
e da exploração moderno colonial na região”.[18]
A
origem do nome “rio Acre” foi transformada em ponto de partida para “Acre”,
“acreanidade” e “acreano” ou, como agora “manda” a norma da língua portuguesa,
“acriano”. Uma origem que historiadores e outros escribas da “saga épica” –
responsável pelo esticamento e expansão das fronteiras e narrativa da nação
para essa parte do globo – acreditam ter brotado do erro de um cearense
iletrado ou da intrepidez de um maranhense letrado. Uma crença que foi
transformada em “versão exata dos fatos”, em um exercício prático de eliminar ou
tornar invisível outras possibilidades de diálogo com as experiências de
milhares de mulheres e homens que foram jogados nas margens do espaço/tempo da
história.
A
crença na “versão exata dos fatos”, exaltada por Leandro Tocantins em obra
reeditada pelo Senado Federal como parte das celebrações dos “500 anos de
Brasil”, atualiza esse “rito de batismo” enquanto amálgama de distintos
processos históricos: “Acre” (dos “nordestinos” ocupando seus “sertões vazios e
solitários”), “Acre” (estado independente), “Acre” (dos brasileiros do “Acre”),
“Acre” (da “Revolução Acreana”), “Acre” (do Tratado de Petrópolis); “Acre”
(Território Federal), “Acre” (do Movimento Autonomista), “Acre” (dos acreanos),
“Acre” (estado autônomo da federação brasileira), “Acre” (dos “Povos da
Floresta”), “Acre” (da florestania”), “Acre” (da sustentabilidade), “Acre” (do
“melhor lugar” para se viver), “Acre” (do orgulho de ser acriano), entre outras
invenções desse porte que apareceram/aparecem ou desaparecem/reaparecem no
interior do campo de forças e das relações de poder que as institucionalizam em
ordenamentos discursivos secularmente datados: “não se pode falar qualquer
coisa em qualquer época”.[19]
Esses
distintos “Acre(s)” não existem e jamais existiram enquanto “realidade
concreta”, mas tão somente enquanto enunciados que nada revelam, isto é, que
não têm como encontrar seus supostos referentes em espaço/tempo algum. Trata-se
de um conjunto de práticas discursivas, lançando mão das reflexões de Foucault,
e as práticas discursivas não são um amontoado de palavras e seus referentes,
pois as palavras não são a mera representação da realidade. As práticas
discursivas têm suas próprias regras e essas regras desfazem “os laços aparentemente
tão fortes entre as palavras e as coisas”. Essas regras, insiste Foucault,
“definem não a existência muda de uma realidade, não o uso canônico de um
vocabulário, mas o regime dos objetos”. Mais que isso, para esse pensador
francês o desafio ou tarefa que se apresenta é a
que consiste em não mais tratar os
discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a
conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente
os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos, mas o
que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais
que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é
preciso fazer aparecer e que é preciso descrever.[20]
Na
clareira aberta por tais reflexões, não nos interessa analisar certas “realidades
acreanas” – ou o conjunto de escritos e imagens que supostamente representariam
essas realidades – como se elas estivessem ali, desde sempre, passíveis de
representação. Ao contrário, pensamos que é necessário superar a alienação que
nos acomoda a um lugar que não existe, a um Acre narrado como um dado objetivo,
um dado natural, com uma cultura, uma identidade, uma história, um tipo de
gente, uma vegetação, uma fauna, uma fronteira, um pretensioso modelo de
desenvolvimento sustentável para si e para o mundo. Acreditar em toda essa
parafernália discursiva nos torna seres alienados, sem saber quem somos, onde
estamos, de onde viemos ou para onde queremos ir.
A
identidade acreana, assim como a identidade nacional e a regional nada mais são
que construções mentais, retornamos a Albuquerque Júnior, para quem esses tipos
de identidades
são conceitos sintéticos e abstratos
que procuram dar conta de uma generalização intelectual, de uma enorme variedade
de experiências efetivas. Falar e ver a nação ou a região [ou o estado, a
cidade, a floresta, o rio] não é, a rigor, espelhar estas realidades, mas
criá-las. São espaços que se institucionalizam, que ganham foro de verdade. Essas
cristalizações de pretensas realidades objetivas nos fazem falta, porque aprendemos
a viver por imagens. Nossos territórios existenciais são imagéticos. Eles nos chegam
e são subjetivados por meio da educação, dos contatos sociais, dos hábitos, ou
seja, da cultura, que nos faz pensar o real como totalizações abstratas.[21]
À
guisa de conclusão, ressaltamos que “Acre” é algo que não encontra referente em
espaço/tempo algum, em coisa alguma, em região, floresta rio ou cidade alguma:
é somente um enunciado. É algo que foi naturalizado pelas estratégias e acervos
de imagens e palavras que o inventaram e reinventaram, decantando-o e
repetindo-o inúmeras vezes, objetificando suas características, cores e
identidades como partes indissociáveis dessa invenção. Uma invenção ancorada na
estética amazonialista que é essa estética do vazio – desértico, distante, dependente,
solitário, isolado, insalubre, vítima – que governa nossas subjetividades. Uma
estética que precisa ser problematizada em outras escritas sobre os mundos que
habitamos. Escritas essas que, nas palavras de Albuquerque Júnior, privilegiem
tudo o que remete ao sabor acre, a
escrita de uma história que sabe a acre, ou seja, uma história ácida, não
necessariamente azeda, [...], capaz de cortar todas as certezas e verdades, de
ferir os bem pensantes e os bons pensamentos. [...] É preciso, para isso, que
os historiadores estabeleçam uma outra relação com a linguagem, rompam com a
visão de que a linguagem é um espelho ou um mero instrumento de expressão, é
preciso que deixem de acreditar ainda que as palavras dizem as coisas,
realisticamente. Uma historiografia que nos faça manter uma relação
problemática com as memórias, com as lembranças, tornando nossa relação com o
passado distanciada e crítica, longe de saudosismos e nostalgias, mesmo as populistas.
Uma historiografia capaz de nos afastar da adesão aos códigos que regem nossa
cultura, capaz de problematizar os conceitos que nos definem e que nos servem
para dizer e inventar o mundo à nossa imagem e semelhança. É preciso a
construção de um discurso historiográfico áspero, seco, que não seja fácil de
ser tragado, que incomode a quem lê e também a quem produz. [...] É preciso
escrever um texto historiográfico que fira, que provoque dor ao trazer para a
cena os eventos e personagens que foram feridos, magoados, que doloridos viveram
vidas de resto e de rastro. Uma história que trate dos homens e mulheres que
viveram vidas ásperas e rústicas. [...] Uma escrita historiográfica que
perturbe nosso pensamento e nossos sentimentos, que nos faça pensar e sentir
diferentes, uma história que nos desencaminhe mais do que nos oriente. [...] A
história acre embora amarga não é aquela que busca fazer chorar, mas aquela que
busca contorcer, distorcer e torcer os sentidos e os significados hegemônicos
para a vida e para morte...[22]
Precisamos
produzir escritas de sabor/saber acre, escritas capazes de destruir esse “Acre”
que nunca existiu, esse “Acre” objetivado por certa narrativa, esse “Acre”
ensinado e atualizado pelo conjunto de instituições que, dia e noite, trabalham
a serviço da ordem. Precisamos produzir outras escritas, capazes de alterar a
vida que vivemos, capazes de nos ajudar a redefinir nossos “territórios
existenciais”, nossas escolhas, nossas experiências em um mundo que subjuga a
vida a um mero conjunto de palavras, mercadorias e imagens sem significado, destinadas
ao consumo e ao descarte imediato. Precisamos produzir essas outras escritas,
social e eticamente comprometidas com as lutas para mudar a aparente “ordem
natural” da história de violências e injustiças contra as humanidades e naturezas
dos espaços/tempos que habitamos.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE
JÚNIOR, D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. – 4. ed. – São Paulo:
Cortez Editora, 2009.
ALBUQUERQUE
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historiográfica. In: ALBUQUERQUE, G. R.; ANTONACCI, M. A. Desde as Amazônias I
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GERSON
RODRIGUES DE ALBUQUERQUE
Doutor
em História Social (PUC-SP, 2001)
Professor
da Universidade Federal do Acre
Centro
de Educação, Letras e Artes
Nota: artigo
retirado de ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de; PACHECO, Agenor Sarraf [Orgs.]. Uwakürü: dicionário analítico. Rio Branco: Nepan Editora, 2016. p. 14-30
[1]
Cunha,
Dicionário etimológico da língua portuguesa, 2007.
[3] Embora partindo de uma abordagem diferente da
nossa, um importante e indispensável estudo sobre os signos “Acre(s)” pode ser
encontrado em Carneiro, O discurso fundador do Acre(ano), 2016.
[10]
Labre, Rio Purus, 1972. Cf. Rocha, Coronel Labre, 2016, p. 147.
[11]
Moreira Pinto, Apontamentos para o Diccionario Geographico do Brazil, 1894, p.
124.
[12] Castello Branco, O
rio Acre, 1954, pp. 294 e 298.
[16] Tocantins, Prefácio à
terceira edição de Formação histórica do Acre [1979], 2001, p. 15.
fascículo.
[20]
Foucault, A
arqueologia do saber, 2000, p. 56.
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