MANSA PROCURA
Para meu irmão Eurico Alves
Vejo a folha cair como uma sombra
e o silêncio inventar seu canto triste
na flauta abstrata desta tarde.
Corcéis de sons e cores transmutando
a insânia azul que roça a minha imagem
como um toque de líquida penumbra.
Assim me vejo – gestos transparentes
mansa procura gotejando esperas
nesse calmo sussurro de visagens
que se inquilinam frios e mansos nos meus
ossos.
Essa torpe visão me acena
é um absurdo Fantasma de pranto extravasado
como o impossível gesto de uma estátua.
Mesmo assim eu caminho, lentamente,
sobre este chão de líquidas lembranças
de inconcebíveis expectativas. p. 32
PEIXE-PÃO
Para a grandeza espiritual e humanista
de Roberto Tadros
As escamas pulam como estrelas
sob o gume da faca afiada
despertando o cheiro de pitiú
do jaraqui agora véspera
do caldo verde e grosso, com chicórias
pimenta-murupi e cheiro-verde.
O peixe se despe de sua roupa de malhas:
ticado, em postas, participa
do prato com farinha, coentro e cebolinha.
Pão do rio, pão do pobre,
bailarino aquático, sempre pronto
à armadilha de um anzol ou
ao abraço de uma rede de pescador marupiara,
Não mais as algas verde-escuras
dos igapós, nem os pulos acrobáticos
acordando astros no rio Solimões,
nem os repiquetes enchendo de ventos frios,
ou chuvas hibernais tecendo véus de sons e
sonhos
no palco de uma mesa – o peixe brilha sob os
olhos
e a fome.
Fora da vida é vida, é mesa farta. p. 37
BARCOS – I
Para Nilton Lins
Estes meus barcos são visões fantásticas
desfilando distâncias e horizontes;
com dorso inflado de mistério e sonhos,
como teatro mundos flutuando,
constroem malabarismos de ilusões.
Universo marítimo de rumos,
errantes naus que o vento acaricia,
entranhas vivas de horas e emoções,
imorredouro painel de pátrias.
Nômade altar, divino excalibur,
estrela solitária em mar pousada.
Oh! Albatroz de asas decepadas
sobre o mar a vida confinando.
Teu lar é longe, é a líquida miragem
e a superfície do mar te amparando.
Gaivota dos mares de martírio e medo,
teus marujos, intrépidos guerreiros
se confundem contigo no teu fado,
no bojo de ouro das manhãs e ocasos
como canções de quilhas navegando.
Benditos barcos de prata dos luares,
do fogo-de-santelmo de alvoradas,
dos pescadores de velas retesadas,
dos remadores de matas afogadas
e de segredos em sonhos embalados.
Barcos da Amazônia agigantada,
dos rios, lagos, paranás e furos,
barcos heróis de históricas memórias,
construtores de pátrias e de povos,
de longas travessias malogradas,
de partidas e esperas desejadas,
de lendas mil em almas divulgadas.
Barcos veleiros dos descobridores,
naufragados barcos em noites ancorados,
barcos fantasmas nos mitos povoados,
nas bocas e corações ressuscitados
e em saudades eternas relembrados.
Eu te bendigo, barco navegante,
irmão da solidão do espaço infindo.
Bendigo teus mastros apontando os céus
como orações materializadas.
Bendigo o leme, irmão do teu destino,
todos os portos onde tens andado.
Bendigo as partidas e as chegadas.
Bendigo o teu convés, um livro aberto
de heroicas e lendárias descobertas,
registro inapelável de mistérios.
Todo o teu corpo é um abraço terno,
hinário sacrossanto de canções,
magnetismo de imaginação.
No teu longo apito há um grave apelo
e a leve sensação de um nunca mais.
Ninho de amor por homens tripulado,
nave de destinos desiguais
tatuando no líquido caminho
a imagem de saudade do teu cais. p. 42-43
BARCOS – II
Nesta noite
várias figuras e barcos me deslizam
sem ruído sem cor e sem murmúrios
como flocos de nuvens esculpindo
um teatro de lendas e canções sem vozes.
Nesta noite
me voltam, compassadas de ternura,
visagens frias
no reencontro de apenas um veleiro
– navegantes do ontem inesquecível
onde me encontro em restos de outrora
veladas confissões de estrelas e manhãs.
Nesta noite
não sei se ouço, sinto ou mesmo sonho,
só sei que em sentimento me proponho
velar no meu silêncio estas visões.
E vejo e sinto e ouço e paro
no limiar do eu e o nada,
porque o menino há muito já se foi
e no rio Solimões, que a sede aplaca,
eu vejo a infância em transe retornando
com seu filão de ouro e de venturas.
E no voo silente dos meus versos.
a embalsamada infância se refaz
como cristais de orvalhos das manhãs.
Beiradão do rio Solimões. p. 44
OUTONO
Para a menina de ontem Maria Elba dos Santos
Uma folha, outra folha,
e no espaço desprendidas, açoitadas pela brisa,
rodopiam em acenos de saudade – as folhas
mortas.
As folhas que foram sombras de conforto e de
alento,
as folhas, que foram abóbadas de sonho e,
agora,
amarelecidas e soltas,
são pontos vagabundos de saudade.
Folhas mortas, folhas fugidias,
multidão de folhas esquecidas.
Como as folhas que o outono impiedosamente
abate,
o meu coração é um pedaço da ilusão que míngua,
cada vez que as folhas se cobrem de orvalhos.
Árvore desnuda, não chores as tuas folhas idas.
Outras folhas virão,
te cobrirão de milhões de folhas, verdejantes,
farfalhantes, buliçosas, primaveris.
E o meu coração que não tem folhas
chora a saudade das folhas que não vêm. p. 84
ANDRADE, Moacir. Portais. Manaus: Editora
Valer, 2008.
Moacir Andrade. Foto: Robervaldo Rocha
Moacir Couto de Andrade nasceu em Manaus-AM, em
17 de março de 1927, onde também faleceu, em 27 de julho de 2016. Artista
plástico, desenhista, escritor e poeta. Em 9 de abril de 1952 realizou a sua
primeira mostra individual, no peristilo da Escola Técnica Federal do Amazonas.
Foi também professor de Educação Artística na antiga Universidade do Amazonas
(UA), Escola Técnica Federal, Colégio Estadual e no Colégio Militar. Um dos
fundadores do Clube da Madrugada, em 1954. Pertenceu, ainda, à Academia
Amazonense de Letras. Escreveu os livros: Alguns Aspectos da Antropologia
Cultural do Amazonas (1978); Amazônia: a Esfinge do Terceiro Milênio
(1981); Manaus: Monumentos, Hábitos e Costumes (1982); Tipos e
Utilidades dos Veículos de Transportes Fluviais do Amazonas (1983); Manaus:
Ruas, Fachadas e Varandas (1985); Nheengaré: ou Poranduba dos Dabacuris
(1985); Pratos, Lendas, Estórias e Superstição de alguns Peixes do Amazonas:
Folclore do Peixe do Amazonas (1988); Moacir Andrade
(autobiográfico, 1992); Antologia
Biográfica de Personalidades Ilustres do Amazonas
(1995); Colégio Santa Dorotéia: 1910 a 1995 (1995); 100 Anos de
Arquitetura (1996); Acontecimentos
de um Amazonas
de Ontem (2006); Portais (poesia, 2008); Vida e Obra: 66
anos de História e Paixão pelas Artes Plásticas (2008); Segredo dos
Silêncios: Cantigas de Ninar e Roda (2012); Histórias, costumes e
tragédias dos barcos do Amazonas (2012); Desenhos: Memória e Testemunho
(2012); Inventário dos Sonhos (poesia, 2014).
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BELOS POEMAS DO MESTRE DAS CORES
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