domingo, 10 de junho de 2012

O BOI E A HIERARQUIA

Leila Jalul


Enquanto escrevia este texto, a Adélia Prado, com toda a sua mineirice, entremeada comuma talhada de goianidade, dava uma entrevista ao Globo News e dizia que, quando escreve, sente os defuntos ao seu redor. São seus entes queridos que partiram, assim entendi.

Comigo está acontecendo quase a mesma coisa. Meu quarto está empestado de espíritos de porcos dizendo: “Fala de mim!”; “E eu?”;“Peraí, eu sou mais eu.” Uns me cutucam, outros apagam o que está escrito, e, pior, outros interferem nas ondas do meu provedor.

É tudo gente tinhosa. Eu, como um cavalo obediente, vou procurando atender a todos, na medida das suas necessidades. Vocês não acreditam? Agora mesmo, neste exato minuto, eles afastaram o texto para o lado esquerdo e fiquei sem entender nada. Quando é assim, não escrevo. Espero desanuviar.

Mercado Velho de Rio Branco antes.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Para sempre seja louvado! Eu só queria contar que visitei, no dia do velório do Joaquim Macedo, pela vez primeira, o Mercado Velho revitalizado pelo menino Jorge Viana! Coisa linda. Estávamos eu, minha comadre Jorgete e sua comadre Val. Tudo comadre. Aliás, no Acre de antanhos, quem não era irmão, era primo, quem não era primo era compadre. Eram compadres e comadres. Uma máfia do caralho. Tuttibuona genti.

Mercado Velho de Rio Branco atual.
Mas eu preciso falar do boi. No boi daquele tempo. Tem nada a ver com o de Parintins. No tempo quando açougueiro era apelidado de magarefe. No tempo das cestas de vime, da fila ou cobrinha.

E foi assim, de supetão, quando entrei no mercado revitalizado, que senti o choque elétrico na vertebral. Lá se faziam presentes duas almas de dois magarefes. Virei para a esquerda e falei: “Ali era o açougue do Zé Mourão. E ali o do Raimundo.”

Incorporei. Pensem numa cidade que, para alimentar uma população inteira, sacrificava apenas e unicamente um pobre boi por dia. Magro, quase sempre magro.

Agora vamos à divisão: o filé, pro governador. Contrafilé, pro prefeito. A alcatra pro bispo e pra irmandade, que se alimentava muito bem, diga-se de passagem. A chã-de-dentro do juiz… Já estava velho, coitado. A chã-de-fora pro provedor da maternidade. Provedor da maternidade era tanto quanto ou mais autoridade e autoritário que o governador. É mole, ou quer mais?

A fraldinha pro secretário da Fazenda, ou ele não pagava as notas de empenho da carne fornecida. As costelas e os músculos pro Hospital das Clínicas. E o cupim?Pronde foi? Foi pro dono do boi.

Ali, naquele aglomerado, estava eu. Cesta na mão, dinheiro na outra. Fazendo uma ginástica do tcham para me esgueirar das pimbas duras e aproveitadoras, que insistiam em se esfregar em mim.

Deus que proteja e que tenha em Sua Santa e Eterna Glória o meu grande protetor e amigo Boaventura dos Santos Moreira. E dê saúde e felicidade ao Seu Aureliano dos Santos Barreto, pai de minha amiga Judite. Eles me defendiam, e faziam de tudo para que, ao final do embate, entrasse na minha pequena cesta um palmo de pescoço, com carótida e tudo. E mais: dois quilos de ossos que viravam a sopinha da irmã Zarur.

Hoje, perdeu a graça. Já não sinto mais o sabor da carne de pescoço.

Agora engulo cobra.



* Crônica publicada no Blog do Altino e  no site Lima Coelho.

Um comentário:

Olivia Maria Maia disse...

Leila, essa crônica é demais! adorei (já conhecia de outro blog... mas me divirti tudinho de novo).
E eu menina, que ainda não deixei de engolir sapos!! rss.
Parabéns, aprendo muito com seus escritos.