quinta-feira, 13 de setembro de 2012

NAS PALMAS DAS MÃOS

Luiz Felipe Jardim


De alguma forma que não me lembro,Leila, descobri que a professora Wolitz, como boa profissional do ensino que era, sintonizada com a melhor pedagogia, e municiada com as ferramentas da melhor didática da sua época, algumas vezes tratava seus alunos ‘nas palmas das mãos’, isto é: de vez em quando lhes aplicava algumas palmadas com uma palmatória que ficava sempre ao lado do quadro negro da sala de aulas que tinha em sua residência e que era visível a todos os que passavam pela avenida ao lado de sua casa.

Da varanda da casa dos meus tios, Helena e Amiraldo, que moravam ao lado da casa da professora Wolitz, deitado em uma rede atada no meio das tardes, ali quando meus cinco anos de idade já desaguavam nos seis, eu ficava abecorando, espreitando o momento exato do que eu achava ser o ponto culminante da relação ensino-aprendizag em: a hora das palmadas.
Henriques e Felipes dos 5 para os 6 anos  como Ícaro e Seringueiro
A professora tinha uma voz um pouco rouca e, não sei bem como aprendi isso, mas percebi que quanto mais alta e rouca ficava sua voz, mais possibilidades de palmadas havia. Assim, eu ficava atento ao tom rouco da sua voz. Ele anunciava o momento certo. Quando o percebia, eu saltava da rede e corria para uma enorme mangueira que vivia entre as duas casas e que existiu até a poucos dias. Dali, eu via a sala de aulas da professora Wolitz e, como bom menino que era, esfregava as mãos torcendo para que a sua voz enrouquecesse ainda mais. Era palmada na certa.

Às vezes, humilde e solene, ela ia até onde o aluno estava sentado aplicar-lhe a didática manual. Garbosa, majestosa mesmo, e com pulso firme, descia a ferramenta de ensino nas mãos do aprendiz com a precisão do talento e a força do saber. Ela era craque, Leila. Nunca ouvi um só gemido dos alunos. Só ouvia os estalos que as mãos deixavam escapar ao vigoroso contato com as poderosas forças do conhecimento. A esses, os sentados, eu via tranquilamente com o pescoço esticado e corpo oculto pelo tronco da mangueira.

Outras vezes o aluno é que deveria fazer-se humilde e solene e, com pulso firme ir até o quadro negro receber a didática aplicada; recolher com suas mãos e em pé, o conteúdo pedagógico que a palmatória deveria, simbólica, mas ardentemente, lhe transmitir. Esses eram os meus preferidos. Só que a melhor posição para ver a cena era do lado da Avenida. E eu tinha de correr, dar a volta pela frente da casa da professora e, finalmente, chegar à janela meio que disfarçadamente como se estivesse simplesmente por ali passando.

Fiz esse percurso muitas vezes, Leila, da varanda para a mangueira, da mangueira para a janela, da janela para a mangueira, dai para a varanda.

Tantas vezes que eu não poderia passar despercebido sempre.

Numa dessas vezes em que, da mangueira, eu observava a sala de aulas, no exato momento em que o trovão anunciava a tempestade, ou seja: quando a voz enrouquecida prenunciava as palmadas, seu Liscênio, marido da professora, me viu e perguntou o que eu fazia ali. Incontinente, me abaixei. Apanhei a primeira coisa que encontrei pelo chão e respondi que estava ‘ajuntando manga’. Ele disse: “mas, Henriques e Felipes, ainda estamos em junho. As mangas nem nasceram ainda”. Ao que respondi, dando-lhe as costas e já correndo: “Mas essa aqui tá bem madurinha”... E lá fui eu, em desabalada carreira, levando nas mãos um tijolo maciço que havia apanhado do chão. O tijolo não doía nas mãos como deviam doer as palmadas, Leila, mas acho que pesava tanto quanto e, por isso, se constituiu na primeira peça de peso da bagagem cultural de minha infância.
 

Memória ou Ficção?

Comentando sobre isso com minha mãe, ela me disse que profa. Wolitz não dava palmadas nos deus alunos e que a palmatória na parede era só decoração... Só isso: pura decoração!

Se isso é verdade, Leila, o que eu te disse ainda há pouco não é. Ou seja, o que eu te disse é ficção.

Talvez mais uma das muitas ficções dessas que trazemos fixas na memória como se fossem expressões ainda vivas, mesmo que esmaecidas, de antigos acontecimentos, de antigas realidades.

Não tenho certeza, até mesmo acho que não, mas se isso é verdade quero crer que tal ficção me foi fixada enquanto, na varanda da casa da tia Helena, deitado numa rede suspensa no meio das tardes, eu dormia os sonos de menino de 5 para 6 anos de idade, tendo ao lado um pé de mangas que unia, com suas sombras de boa mangueira, a sala de aulas da profa. Wolitz e a varanda onde a rede embalava a mim e aos meus sonhos. Os mesmos que um dia eu creria serem verdades. Verdades como as verdadeiras: tecidas e animadas pelo sopro da vivência; cuidadosamente acolhidas, e guardadas na memória; e deliciosamente reanimadas quando embaladas nas redes macias e envolventes das boas lembranças...

Certa vez, um caipira do Rio São Francisco assim falou sobre a História: "A nossa História é uma coisa interessante: a gente se alembra, se alembra... de repente se esquece. Daí, um dia, a gente não tá nem naquele sentido... de repente se alembra”...

Dante Gabriel Rossetti - Dantis Amore
Às vezes Leila, é necessário perder o 'sentido' de certas coisas para poder 'se alembrar', 'rever' o que aconteceu. Saber-lhes o sentido. Em Realidade e em Ficção. Sim porque muitas vezes a Ficção é uma realidade que se diferencia da pura realidade somente por não ter acontecido como a Realidade gostaria que tivesse acontecido. Na verdade, a Ficção é pura ficção por puro capricho da Realidade. Uma vingança desta por aquela se realizar nos espaços imaginários, fora do total e absoluto controle da realidade nua e crua, pura e verdadeira.

Realidade e Ficção têm a mesma natureza: dinâmica, profunda, intensa. Diferem entre si, e tão somente, por ao acontecerem, resultarem: uma da energia e das mãos de quem mais faz; outra das mãos e da energia de quem mais pensa. Uma resulta em energia simplesmente mais sólida. A outra, em matéria simplesmente menos densa.

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