Com o correr dos anos, os fatos, por vezes,
adquirem um relevo todo especial. Pequenos episódios, se bastante recuados,
assumem proporções bem mais interessantes do que obtiveram contemporaneamente. Acreditamos
que não seja precisamente o caso daquele famoso tuxaua de quem nos ocuparemos
no presente depoimento, como uma homenagem à sua excepcional coragem e inteligência,
que fizeram o seu nome quase legendário.
Para tanto, teremos de recuar bastante no
tempo, até a segunda década do presente século e nos situarmos às margens de um
afluente do médio Juruá, o Gregório, sem dúvida um dos mais importantes tributários
da margem direita daquele grande rio.
Dentre as várias tribos que o habitavam, duas
mais se destacaram pela importância: os Caxinauás e os Araras, hostis entre si,
não raro entrando em guerra.
O herói desta estória era Tescom, tuxaua dos Caxinauás, forte, robusto, inteligente, um líder excepcional. Impôs-se decididamente que não só perante a sua tribo, como entre as outras, até onde chegava a fama do seu ânimo e das suas proezas. Conseguiu admiração também entre os civilizados, com quem mantinha contatos cordiais e normais, em constantes visitas aos barracões e até mesmo a bordo dos navios.
O herói desta estória era Tescom, tuxaua dos Caxinauás, forte, robusto, inteligente, um líder excepcional. Impôs-se decididamente que não só perante a sua tribo, como entre as outras, até onde chegava a fama do seu ânimo e das suas proezas. Conseguiu admiração também entre os civilizados, com quem mantinha contatos cordiais e normais, em constantes visitas aos barracões e até mesmo a bordo dos navios.
Em todos os relatos sobre a sua vida,
caracterizou-se fundamentalmente pela coragem indômita e pela inteligência. Como
guerreiro, manejava naturalmente com esmero o arco e a flecha, mas, por igual
operava admiravelmente um rifle “Winchester” 44, o famoso “papo-amarelo”. Era
exímio atirador e rápido aprendeu o mecanismo da arma e do seu projétil,
improvisando daí um ardil que ainda mais aumentou o seu prestígio entre os
companheiros de tribo, que viam nele dotes excepcionais, sobrenaturais, coisas
de pajé. Para tanto, afastava-se discretamente para a mata e retirava o
projétil de diversas balas, deixando somente a pólvora na cápsula. Feito o
trabalho, carregava cuidadosamente o rifle, alternando uma bala com o projétil
e outra sem ele. Então estava pronto para se submeter a perigosas experiências,
mas sempre rendosas em termos de prestígio entre os seus comandados. A demonstração
consistia em entregar a arma a um dos seus caboclos e mandar detonar contra
ele. O índio apontava caprichosamente e disparava, mas nada acontecia. Em seguida,
ele mesmo apanhava o rifle e disparava contra uma galinha ou qualquer outro
animal e a vítima tombava nos estertores da morte. A experiência se repetia e
tudo acontecia como era por ele esperado. Estava comprovada a sua natureza
extraordinária, excepcional e aumentado o seu respeito entre os silvícolas. Quem,
dentre eles, poderia enfrentar um chefe com tais dotes? Esses fatos corriam
longe e talvez até mesmo entre outras tribos de quem era inimigo,
principalmente entre a poderosa nação dos Araras, cujo chefe, o tuxaua João Teimá,
também era prestigioso e bem servido de inteligência.
Dizia-se que quando Tescom conhecia uma
tapuia bonita em qualquer tribo e a desejava, ia buscá-la pessoalmente, apoiado
tão-somente nas suas armas e na sua fama de hábil guerreiro. Muitas vezes
deixou caboclos de queixo caído e bisonhos, por ter arrebatado a mulher
preferida. Era absoluto. Reconhecia nos Araras o maior inimigo e por vezes
tentou recursos menos cavalheirescos para conseguir a eliminação do adversário.
Certa feita, um conhecido e influente
seringalista foi em visita à maloca dos Araras e, logo ao chegar, foi recebido
pelo tuxaua João Teimá que o advertiu em termos definitivos: em nenhuma
hipótese deveria beber ou comer qualquer coisa que o oferecessem, salvo o que
fosse servido por ele próprio, o tuxaua. O visitante ouviu e observou a
recomendação, consciente do que poderia lhe acontecer e não foi inutilmente. A certa
altura, uma moça bonita, com todos os encantos da glamurosidade indígena,
compareceu segurando uma cuia, cujo conteúdo líquido ofereceu como petisco dos
mais saborosos, preparado especialmente para tão ilustre visitante. A oferta
foi recusada com polidez e o tuxaua chegou ainda a tempo de surpreender a jovem
com a cuia na mão. Compreendeu a artimanha e ficou tão indignado que a obrigou
a beber violentamente o líquido oferecido. Não havia decorrido quatro horas e a
moça estava morta, envenenada com a beberagem que preparara. Foi então que o
chefe dos Araras explicou: eu proibi beber qualquer coisa porque pressentia o
perigo. Isto é gente de Tescom. Ele queria que o homem branco de prestígio
fosse envenenado aqui, para provocar uma violenta reação contra os Araras, mas
eu fui avisado.
Se o golpe obtivesse sucesso, Tescom teria
conseguido tudo o que mais ambicionava: eliminar os seus combativos inimigos,
sem arriscar um só homem, numa guerra cruenta, sob todos os aspectos perigosa e
sangrenta.
Certa feira, completamente desacompanhado,
visitou a loja de um barracão e desejou comprar cachaça. A essa altura ele já
apresentava indícios de haver bebido e, por isto, o pedido não foi atendido.
Tescom insistiu e como fosse mantida a negativa, mostrou-se muito zangado, a
ponto de quase praticar um desatino. Todavia, se conteve, mas ao transpor a
porta do barracão, disparou duas vezes a arma para o ar, numa provocação mal
contida e em seguida partiu de volta para a mata. Como ostensiva demonstração
de coragem e desprezo por qualquer perigo, fez toda a travessia do campo, até
ingressar na selva, sem olhar para trás, como reafirmação de sua indesmentível
coragem.
Era assim o tuxaua dos Caxinauás. Sua fama
corria longe, principalmente nas selvas, acumulando ódios e sede de vingança,
drenando para ele um considerável número de inimigos. Como não podia deixar de
acontecer, teve o fim trágico, concedido a tantos líderes que preferiram
empreender o caminho das soluções pela força.
Seus principais inimigos, os Araras, estavam
sempre vigilantes e nunca o perdoaram. Preparam-se de forma mais cuidadosa para
um ajuste de contas final e levaram a guerra aos Caxinauás. Usando a estratégia
indígena, foram surpreender o inimigo, quando entregue a uma pescaria, num
lago, dirigida pelo próprio Tescom. Este foi atacado quando, de pé, sobre uma
árvore caída no lago, dirigia o trabalho, empunhando arco e flecha, que não
chegou a usar.
Os Araras atacaram de surpresa e atingiram em
primeiro lugar o grande líder caxinauá que caiu irremediavelmente ferido,
morto. Sua fama foi legendária na época, possibilitando que, num preito de
admiração, várias crianças nascidas posteriormente fossem batizadas com o nome
de Tescom, num testemunho da admiração por ele imposta aos moradores
civilizados daquelas selvas, daqueles barrancos.
Convenhamos que foi muito, para um chefe
indígena. Ele aqui foi lembrado como testemunho à sua coragem e inteligência. Ainda
que sem os grandes lances guerreiros de um Ajuricaba e tantos outros chefes
indígenas que enriquecem as páginas da nossa história, Tescom viveu sempre
dentro das suas limitações, da sua área e da sua época, mas seguramente como um
bravo e um homem dotado de excepcionais qualidades que o distinguiram entre
índios e civilizados.
BARAHUNA, Epaminondas. Estórias Amazônicas. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1974. p.51-55
BARAHUNA, Epaminondas. Estórias Amazônicas. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1974. p.51-55
Um comentário:
ÓTIMA POSTAGEM
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