site Taqui Pra Ti
O
padre Fritz viajava em desobriga por seringais do Acre e pernoitou no tapiri de
um caboco às margens do rio Tarauacá, onde jantou farofa de tartaruga preparada
no casco dela, na própria gordura, com muita cebola, cheiro-verde e pimenta
murupi ao molho de tucupi. Completou com arabu, o mujangué grudento feito com
ovos crus de tracajá misturados com farinha d´água e açúcar. No dia seguinte,
cedinho, antes de tomar o chibé nosso de cada dia, experimentou um desconforto
intestinal. Toda vez que se sentia pressionado – era o caso – alternava o
francês e o alemão, as duas línguas faladas na sua Alsácia natal. Perguntou ao
caboco:
-
Ich möchte kacken. Je veux chier. Où
est-ce que je peux vider la cage du jacu?
O
humilde anfitrião ficou com cara de égua, porque só havia entendido a última
palavra, jacu - um pássaro de cauda longa, pescoço esticado, papo vermelho,
plumagem escura salpicada de escamas brancas. Ah, também havia ouvido falar em
chier, no rio Xié, que corre no alto Rio Negro. O padre Fritz traduziu então ao
português do Acre que ele dominava muito bem depois de anos de desobriga:
-
Meu filho, onde é que eu posso esvaziar a gaiola do jacu?
A
resposta demorou. O padre que estava
muuuuuuuito apressado, foi, então, mais explícito:
-
Eu quero tirar a tartaruga do casco, entendeu? Quero fazer o parto da sucuri,
mas tem que ser rapidinho, me entende?
O
caboco, que havia entendido muito bem o eufemismo, se desculpou:
-
Reverendo, aqui não tem sentina não, a gente faz coco no bananal – disse,
apontando na direção do igarapé.
O
padre saiu correndinho, fazendo barulho como um motor de popa. Mal sabia que o
bananal ficava muito longe. No caminho, parou numa ponte alta sobre o igarapé,
se contorcendo todo. Olhou de um lado, olhou de outro, não havia viva alma. O
jacu soltou um pio sonoro e plangente. Era o último aviso. Foi então que ele,
no sufoco, decidiu esvaziar a gaiola ali mesmo. Justamente quando estava
obrando, com a veia do pescoço tufada, um casal passou por baixo da ponte
remando uma igarité. De lá, olharam pra cima: a bundona branca do padre
resplandecia como uma lua cheia iluminando o rio Reno.
Quem
conta o fato de forma mais contida do que esta minha versão é Ocirema, que
descreve a reação das pessoas na canoa:
-
A mulher olhou pra cima e disse: “Bom
dia, seu padre!”. O padre não teve alternativa, a não ser ficar e responder do
mesmo lugar. E os viajantes prosseguiram com toda naturalidade.
O
padre também prosseguiu e concluiu o parto da sucuri. Não foi - digamos assim -
um parto natural. Mas o jacu ficou aliviado.
O
baú misterioso
Com
bom humor e refinamento, Ocirema Levy Rabello escreveu o livro “Minha vida no seringal”. O caso do
padre, no qual acrescentei uma pimentinha, é um dos tantos ocorridos na
floresta, nas margens dos rios Tarauacá, Envira e Jurupary, onde ela viveu
parte de sua vida.
Entre
uma história e outra, que prendem a atenção do leitor, a autora vai pincelando
o quadro cultural dos seringais, o dia-a-dia na floresta. Descreve como era o
parto no barracão – parto de gente, não da sucuri – as brincadeiras de
crianças, o namoro, o casamento, as relações familiares, os usos e costumes, as
coisas do sexo e os assédios, a condição feminina e a própria morte.
Nada
escapa aos olhos atentos e à memória viva de Ocirema. O cotidiano em um
seringal, a comida e a cozinha, as doenças e as formas de curá-las com a
farmácia da mata, o lazer, as condições de transporte fluvial, os crimes
bárbaros, a loucura e os doidinhos, a relação com a natureza. Ela fala dos
índios Kanamari com muito respeito, lembrando que eram bons, leais e
solidários.
Seus
personagens, embora pareçam saídos de um romance de Garcia Marques ou de um
conto de fadas cabocas, são vivos, de carne e osso, como Nancy, a megera e
Judith, a louca.
A
viúva Nancy tinha um baú misterioso, trancado a sete chaves. Vocês não podem
nem imaginar o que tinha lá dentro! Sua enteada de 12 anos, queria porque
queria descobrir o segredo do baú e como era maltratada pela madrasta, tentou
se vingar misturando no café dela pó de pata de aranha, mas o veneno era fraco
e a velha, dura de queda, escapou. Quem acabou xeretando foi Maud, a irmã da
autora:
-
Num belo dia em que a mulher foi passear,
Maud achou um jeito de destrancar o baú e lá dentro, entre outras coisas,
encontrou para seu espanto um esqueleto de criança, um esqueleto de cobra e um
ressequido órgão genital masculino.
A
quem pertencia o dito cujo? Por que guardar “aquilo”? Ninguém sabe, nem nunca
saberá.
Pimenta
no jacu
Outra
história é a de Judith, que enlouqueceu. Viajou a Manaus para se tratar. No
barco, tentou estrangular Fátima, filha de Ocirema, que fugiu para o camarote.
-
Deitei Fátima no beliche, e eu, com muito
sono, já me preparava para dormir, quando Judith empurrou a porta do camarote e
entrou. Ela estava nua, enrolada num cobertor molhado e com uma faca na mão.
O
que aconteceu? Só posso revelar aqui que a Judith torou o dedo do taifeiro com
a faca. Se você quiser saber o final, leia o livro, que tem valor documental,
de memória, podendo servir de fonte inestimável para historiadores,
antropólogos, sociólogos e outros pesquisadores, além de deliciar o leitor
comprometido com a boa literatura. Toda a produção da metade dos membros da
Academia Amazonense de Letras não vale uma página da Ocirema.
Passei
por Manaus em junho de 1996 e li num jornal local que o livro seria lançado no
Tribunal Regional do Trabalho. Fui lá conhecer a jovem escritora, com 86 anos,
sete filhos, 26 netos e 27 bisnetos. Nem desconfiava que Ocirema era avó de uma
ex-aluna, que reencontrei no evento. Publiquei então essa crônica, que agora
atualizo. A autora faleceu em Manaus, aos 95 anos, em 9 de fevereiro de 2005.
Fica aqui a homenagem a quem soube fazer uma etnografia despretensiosa do
seringal e nos divertir, lutando contra o esquecimento. Até o padre Fritz deve
ter gostado do livro. A pimenta, que no jacu dos outros é refresco, fica por
minha conta.
P.S.
Ocirema Levy Rabello: “Minha vida no seringal”. Manaus. Prograf. 1996. 111 pgs.
Supervisão editorial: Isabella Benarrós. Maió rapoio: Zazá e Cláudio Limongi
Batista.
CAIO
E A ONÇA DO PANTANAL
-
Prazerzão! Caio.
A
funcionária concursada da SESAU, Lúcia Wanderley acabava de conhecer seu futuro
esposo. Simpático, ele conquistou toda a família com sua voz e seu violão. De
dia era bancário, de noite músico. Em anos de namoro, era Caio pra lá, Caio pra
cá. Na hora do casamento, o padre perguntou se ela aceitava como legítimo
esposo Jacinaguara Sabino. Lúcia ficou estarrecida. Sentiu-se enganada.
Namorara um Caio e casava com um Jacinaguara. E na época não havia nem Procon
para reclamar. Ela só deu o “sim”porque amava o rapaz de verdade. Descobri tudo
no domingo passado, tomando um porre com Caio num bar. “Isso é estelionato”- eu
disse. Foi ai que ele confessou a troca de nome por razões de ordem prática:
“Caio é general romano. Jacinaguara é nome de onça da novela do Pantanal”.
Ficou Caio.
P.S. - Essa não é uma história de seringal,
mas está aqui porque foi publicada na época junto com a crônica.
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