Pés saltitantes na areia,
Mãos que sacodem e se juntam
Saia rodada, colar a dar voltas,
Corpo que dança, serpenteando no
ar.
É roda, é ciranda.
É Lia de Itamaracá.
Sentimento inebriante
Os corações abrandados
Voz, que ecoa distante,
Gente que encanta ao cantar
É roda, é ciranda.
É Lia de Itamaracá.
Nas praias da ilha, a lua
levanta,
Tudo reflete com pleno fulgor
O suor dos corpos tece u’a manta
Contracenando com as ondas do mar
É roda, é ciranda.
É Lia de Itamaracá.
A visita à ilha de Itamaracá,
não tinha outro propósito, senão conhecer, Maria Madalena Correia do Nascimento
- Lia, figura pública, a cirandeira mais famosa do Brasil, e quem sabe do
mundo. Requisitos estes que nos fez ver tudo com curiosidade, atenção e imaginação
equivocada, pelo fato de pensar que ela não seria encontrada num lugar tão
simples e com tanta facilidade. Grande engano, porque foi numa rua estreita,
com esgoto a céu aberto, onde em alguns momentos, tivemos que saltar, para não
afogar o pé na lama, em uma casa simples que se destaca apenas pela decoração
peculiar, onde encontramos a artista.
Sem ter o endereço de sua
residência, saímos andando pela ilha e perguntando por ela, todas as pessoas
sabiam onde ela morava, quando perguntávamos, diziam – quem a Lia da ciranda?
Numa demonstração de extrema popularidade junto aos moradores. No bairro do
Jaguaribe, descemos do trenzinho de madeira, que faz o transporte entre os
povoados/bairros da ilha de Itamaracá. Seguimos a rua indicada cheios de ansiedade,
que acabamos passando sem perceber, que a casa dela já havia ficado para trás
alguns metros, quando uma transeunte nos orientou. Somente quando paramos na
frente da casa dela pensamos - que ousadia… Dizer o que para ela ou para quem
abrisse a porta? Será que havia alguém na casa? E se ela não quisesse nos
receber?
Todos os questionamentos caíram no chão,
quando ela mesma abriu a porta, não havia dúvida que era ela! Aquela mulher
grandiosa, na altura e na expressão, vestida de bermuda jeans e camiseta que
trazia sua própria foto, na cabeça havia um lenço ou uma toca que escondia seus
cabelos, semblante sério e olhar penetrante. Abriu o portão, com o olhar
circulando nossos corpos de cima a baixo, perguntou do que se tratava, com
palavras que já nem lembro mais. Nossa resposta foi a mais honesta possível –
queríamos conhecê-la!
Na casa da Lia de Itamaracá
Foto: Oliveira de Castela,
2015 |
Diante de nossa resposta,
firme e sem rodeios, ela foi aos poucos abrindo um sorriso e nos deixando à
vontade. Falou que estava sem o espaço da dança, que tudo estava no chão,
referindo-se ao processo de retirada de barracas construídas ilegalmente na
praia e que só retomaria às danças, quando houvesse uma definição e disse - “eu
gosto de tudo certinho” - referindo-se ao fato de não querer construir em área
irregular. Descontraída diante de nossa alegria por estar com ela, posou para
algumas fotos conosco e nos presenteou o catálogo de uma exposição multimídia
de fotos e objetos sobre o seu trabalho, que foi aprovado pela Caixa Econômica
Federal, no ano de 2013.
Depois de conhecer Lia, já
podíamos ficar à vontade para conhecer a ilha, visitar o Forte de Santa Cruz de
Itamaracá, popularmente, Forte Orange, contemplar o mar, passear pela praia…
Foi assim que soubemos que o forte encontrava-se fechado para reforma, sem
previsão de data para reabrir, então ficamos circulando aquela estrutura
imensa, construída pelos portugueses, para proteger a colônia da invasão
holandesa. Graças a inquietude, desobediência às regras, normas e proibições,
atitudes tão próprias do Jorge, ele empurrou a porta, onde constava uma placa
com aviso proibindo a entrada de pessoas, que não fossem os trabalhadores da
obra, ele entrou e fez algumas fotos no interior do forte. Sempre avalio que
forte, é o que os muros dos Fortes escondem, pois muitos deles serviram de
prisões, para presos políticos na época da ditadura militar.
Pérolas
Sob
o sol escaldante,
Sobre
a areia ardente,
Na
atmosfera do labor,
Mulheres
coletam ostras
Incrustadas
nas pedras.
Dos
rostos corados,
Brotam
gotas de suor
Escorre
madrepérola.
Chamou a nossa atenção um grupo de mulheres,
no horário de sol a pino, com pequenos instrumentos, martelando e raspando
pedras na praia. Mesmo chegando próxima a elas, não identificamos o que faziam,
para matar a curiosidade, o jeito foi perguntar. Elas coletavam ostras. Seus
rostos suados tinham uma particularidade, estavam maquiadas, usando sombras
azuis nos olhos. Aquele toque feminino, no trabalho duro, dava leveza à
paisagem, na praia do Forte Orange, em Itamaracá.
Mulheres catando ostras na praia do forte Orange
Foto: Oliveira de Castela, 2015 |
Uma das trabalhadoras falou
que não coletava ostras para vender, pois não compensava, era muito trabalho
para pouco dinheiro, porque no final, quem de fato ganhava, eram os donos dos
restaurantes. Elas preferiam dar para os filhos comerem. A queixa da coletora é
a mesma dos extrativistas e dos pequenos produtores rurais que dão o maior
duro, enquanto o atravessador obtém o maior lucro.
Deixamos a Ilha de Itamaracá
com a alegria de haver conhecido a cirandeira Lia e passar cinco dias
balançando na rede, ao som das ondas mar, comendo tapioca, bolos, sucos de
frutas e outras guloseimas regionais, numa pousada de baixo custo e excelente
acomodação.
Ó
cidade linda
“Nessas
terras do Sul ele nasceu, amiga.
Aqui,
nesses campos que se estendem em busca do infinito,
Correm
livres os animais e as lendas”.
Jorge Amado
As ruas, ladeiras, largos e
as casas de Olinda, exibem um ar festivo. As sombrinhas coloridas do frevo
estão sob o “guarda chuva” do talento, que é próprio do povo nordestino, que
deixa a alegria gritar mais alto que qualquer dificuldade. Muitos são os
espaços que abrigam a arte daquela gente de criatividade intensa, na poesia
presente na música, pinturas, danças, e na maneira de lidar com a natureza e
dela tirar o sustento da vida.
Dentre os espaços de cultura
de Olinda, um é muito especial para nós,
o Terraço de Olinda. É o casarão que oportuniza diversos artistas de
diferentes áreas, com apoio e incentivo da Marisa Reis, que é responsável pelo
espaço, local onde os artistas podem produzir e comercializar os seus
trabalhos.
No Terraço de Olinda, em
2013 realizamos o lançamento da Folhinha Poética. Naquele ano, o espaço abrigou
o evento, Alt Fest, de responsabilidade de Tuppan Poeta. Oportunidade em que
pudemos conhecer um pouco mais do rico universo de poetas pernambucanos.
Em 2015, o Terraço de Olinda
estava em processo de reestruturação, de suas instalações físicas, após haver
sofrido danos no seu telhado, pelo desgaste de tempo. Embora Marisa Reis
estivesse com muitos afazeres, não deixou de nos acolher, com carinho e atenção
especial. Ela disponibilizou um cantinho, para guarda de parte de nossa
bagagem, durante os dias que fomos à Ilha de Itamaracá.
Talvez tenha sido a magia de
Olinda, que acolheu a arte culinária do português Jaime Alves, proprietário e
chef, do Restaurante Tribuna Sabores Ibéricos. No Tribuna, já estivemos outras
noites e lá sempre come-se muito bem, mas naquela noite, além do bom vinho e
iguarias como bolinho de bacalhau e bacalhau com batatas a murro, a mesa foi
servida com a experiência de vida do amigo Jaime, e no que pese a já conhecida
cozinha portuguesa, a sua história foi o prato que melhor nos alimentou, ao
longo dos cinco anos que visitamos Olinda.
Cabe registrar que, quem nos
apresentou o Jaime e o seu restaurante foi Crhistian Cunha, o pernambucano que
é personagem do livro Was Bach Brasilian, do Jorge Carlos. Crhistian é um
artista que aprisiona na caixa de fósforos imagens captadas de vários lugares
do mundo, através da técnica de pinhole, do inglês pin-hole, que é a câmera sem
lentes. Naquela noite especial de novembro, mesmo que num curto tempo, ele fez
parte do banquete, o que foi uma pena, não esperou o prato principal –
histórias e cantorias - ele precisou sair antes.
Depois
das iguarias acima mencionadas, Jaime nos serviu com maestria, fragmentos de
sua história. Contou como ele conheceu o escritor Jorge Amado, autor do livro, O cavalheiro da esperança, que Jaime
lera e despertou o interesse em conhecer a personagem do livro, Luiz Carlos
Prestes. O que veio a acontecer posteriormente, quando Prestes se encontrava em
Moscou, assim como Jaime, que também estava na capital da antiga União
Soviética. Jaime fora como voluntário, para cozinhar durante os jogos olímpicos
que viria a acontecer em 1980.
Além das histórias, Jaime
conduziu as cantorias das músicas de caráter revolucionário, como as do
português Zeca Afonso que é considerado ícone, da Revolução dos Cravos.
Revolução esta que pôs fim à ditadura de Salazar em Portugal. Não poderia ter
sido outro acontecimento, senão aquela noite em que o Restaurante Tribuna
Sabores Ibéricos ficou aberto, só para nos receber, num dia que não é costume
ser aberto e num horário em que já deveria estar fechado. Em poucas horas a
conversa atiçou a chama vermelha da esperança, de podermos um dia hastear a
bandeira dos sonhos. Olinda seria o fim da viagem, mas os ânimos despertos com
a história do Jaime Alves nos puseram a seguir viagem com a utopia, mesmo
voltando para casa.
Não
só para refletir
Ouricuri,
bacaba, bacuri,
Jatobá,
juçara ou açaí,
Taperebá,
mangaba,
Seriguela,
sapoti.
É
suco, doce, sorvete
Ou
creme.
Salada
destas frutas…
Nem
pensar!
Na
viagem pelos rios, estradas e ao sabor das frutas, o roteiro do Acre ao Ceará
foi marcado com sucos, doces e sorvetes, de frutas que povoam territórios, com
continuidades e intermitências. Ouricuri, no Acre, bacuri até Belém, taperebá
apenas em Manaus, mas em Belém, a taperebá de Manaus é cajá, bacaba e
açaí/jussara até ao Maranhão. No ceará, mangaba, seriguela, sapoti, umbu e
umbu-cajá. Tamarindo, do Acre ao Ceará, com territórios intermitentes. Mas este
não é um estudo de botânica.
Saboreamos vários frutos ao
longo da viagem, mas aqui no texto, falar das frutas é apenas a maneira de
ilustrar um trajeto que requer leveza ao ser executado, quando tantas outras
coisas estabelecem forte relação com a vida das pessoas. Mesmo assim tenho que
admitir que em muitos momentos elas deram mais que sucos e sorvetes, deram
conteúdo ao contexto de vivências importantes, como a do motorista Amaro, que
nos conduziu de Nova Olinda à Santana do Cariri, por exemplo, numa fala reflexiva
sobre a vida e dificuldades dos sertanejos.
A viagem foi a oportunidade
de dialogar com os Brasis, entender um pouco das razões da pobreza, das
desigualdades e a necessidade de enxergar o que está fora das capitais. Olhar
para as crianças, o futuro delas que na Amazônia e no Nordeste está muito
comprometido.
A
importância de sermos recebidos na casa de pessoas públicas, como Lia de
Itamaracá e Lourdes Ramalho, que sem nenhum protocolo ou prévio agendamento nos
acolheram para participar suas experiências de vida e suas artes. Uma
oportunidade de relevância.
Mais uma vez, podemos
perceber a importância que tem a tecnologia da comunicação, mais
especificamente as novas mídias, possibilitando tornar pessoas estranhas e
desconhecidas, em grandes amigas, assim como poder manter forte, os laços com
amigas e amigos que se encontram distantes. O desafio que temos com o uso dessa
comunicação que é nova, mas que requer velhas práticas, como a
responsabilidade, sem medo do que é novo.
A viagem foi a oportunidade
de descobrir lugares fora da grande mídia e pessoas que estão fora das
políticas públicas, mesmo quando elas, as pessoas, compõem as planilhas dos
orçamentos públicos, isso porque os orçamentos públicos não vão chegar a elas em conformidade com seus anseios. Viajar
é preciso para conhecer realidades outras e para conhecermos a nós mesmos.
Leiam
aqui as crônicas anteriores:
-
Primeira: O início é no Cai N’Água
-
Segunda: Capitais da borracha
-
Terceira: A “Pérola do Tapajós”
- Quarta:
Uma noite de medos e macacos
- Quinta:
Infâncias roubadas na Amazônia
- Sétima:
O Cariri que nos habita
- Oitava:
De Fortaleza à Trairí é um pulo!
- Nona: Nova Olinda e Santana do Cariri
- Décima: Outras buscas no mesmo sentido
- Décima Primeira: A feira de Caruaru
Um comentário:
E aquele: AAAAH! Do final de algo gostoso e que nos prende, enfim, chega... Tenho um Encontro com minha Turma de Marinha em Recife dia 6 e a vontade de visitar amigos em Itamaracá bateu com força! Eu sempre achei que iria morar definitivamente em Pernambuco! Amo esse estado! Olinda foi minha casa por quase dois anos, mas eu percorri todas as praias, especialmente, Gaibu no Cabo de Santo Agostinho... Tenho até foto tirada lá numa época em que poucos se aventuravam a ficar dias surfando naquelas praias que ainda não eram infestadas de tubarões... Essa viagem de vocês trouxe saudosismo, mas alegria indizível! Histórias bem contadas enriquecem e fortalecem nossa vontade de viver! Obrigado!
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