quarta-feira, 28 de março de 2018

CARLOS NEJAR: alguns poemas

QUALIFICAÇÃO

Não venham com razões
e palavras estreitas.

O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a doença,
a dor já me curou.

E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que vão,
o rosto que se acerca
na rudeza do chão.

O que sou
é dar socos
contra as facas cotidianas.
E é pouco. p.39


DO TRATO COM A VIDA

Uno a embarcação
ao porto
e canto a convulsão
de um ser extinto.

Amo o sangue
que me crucia e doma,
com seu ferro.

Não espero
dos deuses,
pois engendro
o deus que me transfere
a solidão de ser
meu próprio invento.

Sou poeta,
formo o ciclo do tempo,
onde me enterro. p.40


DA DELIBERAÇÃO IMPROFÍCUA

Não quero deliberação.

Os conceitos são mortos,
os filósofos rotos
e a ideia de Deus
gerou o exílio.

Não quero deliberação,
nem contatos inócuos,
empurrando o dia.

Não quero deliberação.
Quero a vida
sem refrão ou bandeira,
companheira.

II

Dane-se
a geração de espuma.
Sou filho da terra
que me enjaula
e atira contra a treva
e faz que nada passe,
além do braço,
casando o pensamento
à própria carne.

Danem-se os parentes,
amigos, inimigos, o que for;
não vos arrancarei desta epiderme,
o mesmo caule, a mesma solidão
nos vai ligar:
jogados somos na cadência
dos sonhos e da morte

Aqui estamos, para aqui ficar

III

O mundo está pesado de palavras futuras,
que invadem casas, ruas e quintais;
o mundo está pesado de signos e escuros,
onde dormem ladrões.

O mundo está pesado de palavras futuras
ou verdades escritas;
é preciso gestos que fustiguem
e marquem sobre o dorso a passagem
do mar.

O mundo está dormindo;
é preciso gestos que despertem
e venham desnastrar os cavalos
da távola das árvores. p.42-43


ANTEPASTO

A morte me trabalha,
enferrujada faca,
de que já sou guardião;
arca de solidão,
com ratos no interior.
A morte me trabalha,
flecha
na metade da chaga.
O que sobra
é um pedaço de asa
da alguma estranha ave,
nutrida e rejeitada.
A morte me trabalha.

II

A morte,
com sua gula canina,
incubada
como um filho.
A morte,
deixei-a, livremente,
pastar em meu terreno,
com outros animais
de outra estirpe e veneno.
Alimentei-a de feno,
Tentando distraí-la, em desespero.
Alimentei-a, fornalha,
com meu lenho,
com o mantimento
da tropa, com o provimento
do trigo no celeiro,
com o fermento
dos dias e noites,
tentando distraí-las, em desespero,
pensando sempre tê-la com seu relho,
e as rédeas e as correias.
E quando nada houver para sustê-la,
darei a minha fome,
meu repouso de homem. p.46


AOS SENHORES DA OCASIÃO E DA GUERRA

A vós que me despejastes,
nesta loucura sem telhas
e neste chão de desastres,
acaso devo ajoelhar-me
e bendizer as cadeias?

E ser aquele que acata
as ordens e ser aquele
apaziguado e cordato,
preso às aranhas e às teias;

Levando o “sim” em uma das mãos
e o “não” noutra, rastejante
aos senhores da ocasião e da guerra,
ser no chão
o inseto e sua caverna?

Corrente serei
no recuo das águas.
Resina aos frutos do exílio.
Espúrio entre as bodas.
Resíduo.

Até poder elevar-me
com a força de outras asas,
para os meus próprios lugares.

A vós que me despejastes,
nesta loucura sem telhas
e neste chão de desastres,
com a resistência das penas,
aceitarei o combate. p.60-61


O EMBARQUE

O réu,
dobrado como vaso,
onde as urtigas se calam,
desdobrado o peito,
tábua de corais e ressacas,
vem depor o grito
e a sentença merecida.

Pagou o imposto exigido
de existir, não existindo.

Foi deposto em reino morto,
sem apelação punido.
O réu,
com os sonhos e os pés vergados
e os desvãos,
vive de estar embarcado. p.68-69


NEJAR, Carlos. Poesia reunida I: Amizade do Mundo. Osasco: Novo Século Editora, 2009.

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