QUALIFICAÇÃO
Não venham com
razões
e palavras
estreitas.
O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a
doença,
a dor já me curou.
E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que
vão,
o rosto que se
acerca
na rudeza do chão.
O que sou
é dar socos
contra as facas
cotidianas.
E é pouco. p.39
DO TRATO COM A VIDA
Uno a embarcação
ao porto
e canto a convulsão
de um ser extinto.
Amo o sangue
que me crucia e
doma,
com seu ferro.
Não espero
dos deuses,
pois engendro
o deus que me
transfere
a solidão de ser
meu próprio
invento.
Sou poeta,
formo o ciclo do
tempo,
onde me enterro.
p.40
DA DELIBERAÇÃO
IMPROFÍCUA
Não quero
deliberação.
Os conceitos são
mortos,
os filósofos rotos
e a ideia de Deus
gerou o exílio.
Não quero
deliberação,
nem contatos
inócuos,
empurrando o dia.
Não quero
deliberação.
Quero a vida
sem refrão ou
bandeira,
companheira.
II
Dane-se
a geração de
espuma.
Sou filho da terra
que me enjaula
e atira contra a
treva
e faz que nada
passe,
além do braço,
casando o
pensamento
à própria carne.
Danem-se os
parentes,
amigos, inimigos, o
que for;
não vos arrancarei
desta epiderme,
o mesmo caule, a
mesma solidão
nos vai ligar:
jogados somos na
cadência
dos sonhos e da
morte
Aqui estamos, para
aqui ficar
III
O mundo está pesado
de palavras futuras,
que invadem casas,
ruas e quintais;
o mundo está pesado
de signos e escuros,
onde dormem
ladrões.
O mundo está pesado
de palavras futuras
ou verdades
escritas;
é preciso gestos
que fustiguem
e marquem sobre o
dorso a passagem
do mar.
O mundo está
dormindo;
é preciso gestos
que despertem
e venham desnastrar
os cavalos
da távola das
árvores. p.42-43
ANTEPASTO
A morte me
trabalha,
enferrujada faca,
de que já sou
guardião;
arca de solidão,
com ratos no
interior.
A morte me
trabalha,
flecha
na metade da chaga.
O que sobra
é um pedaço de asa
da alguma estranha
ave,
nutrida e
rejeitada.
A morte me
trabalha.
II
A morte,
com sua gula
canina,
incubada
como um filho.
A morte,
deixei-a,
livremente,
pastar em meu
terreno,
com outros animais
de outra estirpe e
veneno.
Alimentei-a de
feno,
Tentando
distraí-la, em desespero.
Alimentei-a,
fornalha,
com meu lenho,
com o mantimento
da tropa, com o
provimento
do trigo no
celeiro,
com o fermento
dos dias e noites,
tentando
distraí-las, em desespero,
pensando sempre
tê-la com seu relho,
e as rédeas e as
correias.
E quando nada
houver para sustê-la,
darei a minha fome,
meu repouso de
homem. p.46
AOS SENHORES DA
OCASIÃO E DA GUERRA
A vós que me
despejastes,
nesta loucura sem
telhas
e neste chão de
desastres,
acaso devo
ajoelhar-me
e bendizer as
cadeias?
E ser aquele que
acata
as ordens e ser
aquele
apaziguado e
cordato,
preso às aranhas e
às teias;
Levando o “sim” em
uma das mãos
e o “não” noutra,
rastejante
aos senhores da
ocasião e da guerra,
ser no chão
o inseto e sua
caverna?
Corrente serei
no recuo das águas.
Resina aos frutos
do exílio.
Espúrio entre as
bodas.
Resíduo.
Até poder elevar-me
com a força de
outras asas,
para os meus
próprios lugares.
A vós que me despejastes,
nesta loucura sem
telhas
e neste chão de
desastres,
com a resistência
das penas,
aceitarei o
combate. p.60-61
O EMBARQUE
O réu,
dobrado como vaso,
onde as urtigas se
calam,
desdobrado o peito,
tábua de corais e
ressacas,
vem depor o grito
e a sentença
merecida.
Pagou o imposto
exigido
de existir, não
existindo.
Foi deposto em
reino morto,
sem apelação
punido.
O réu,
com os sonhos e os
pés vergados
e os desvãos,
vive de estar
embarcado. p.68-69
NEJAR, Carlos.
Poesia reunida I: Amizade do Mundo. Osasco: Novo Século Editora, 2009.
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