Parecia
até que lhe fervia a cabeça. Dia e noite era aquele pensamento, principalmente
quando olhava a barriga da mulher. Mais um filho, e não dava conta nem dos
outros. Que fazer, se a mulher era filhenta e só vivia barriguda? Culpa dela. Dele
é que não era. Por que que quando ficou aquele ano com das Dores (que Deus a
tenha), ela não emprenhou nem uma vez? Aí está. Era culpa de Juraci ou não era?
Não
dava conta da filharada e não aguentava mais aquela ladainha de “estou com fome”.
Pois não tinha farinha à vontade? Fizessem pirão. E, com paciência, sempre se
pescava uma trairazinha, pra dar um gostinho no pirão. E depois, sempre tinha
castanha. Comessem castanha.
Tanto
filho! Não parava de pensar, dia e noite. Teve até uma noite... uma não, várias
noites que sonhou. Foi aquele sonho horrível. E não é que ele, de verdade,
tivesse coragem. Imagine um pai esmagar um filho! Pois no sonho ele era capaz
disso. As tripas das crianças em suas mãos. Era horrível. Mas que se essa
criança a nascer não vingasse ia ser bom, ia.
Era
tão insistente o pensamento que teve um dia que ele olhou Jacilene e João, os
dois menores, e pensou o pensamento. Diabo, assim também não! Espantou a visão.
Nascer morta, morrer assim que nascer, é uma coisa. Morrer depois de grandinho,
dá pena. Especialmente Jacilene, tão risonha. Ele chegava, ela estendia os
bracinhos e falava lá na sua língua “papai”.
Bem,
se Juraci levasse uma queda, um susto grande, até uma raiva, será que ela não
abortava? Ele já tinha ouvido falar de muito caso assim. Aí, não teria sido
culpa dele nem de ninguém. Assim como não seria culpa dele se Juraci parisse
enquanto ele ia à cidade. Ele não estando perto pra ajudar ( conforme ajudou em
todos os outros partos), se alguma coisa desse errado, culpa sua é que não era.
E, depois, tinha Jacira pra ajudar, já estava grandinha, na hora de aprender
essas coisas da vida. Moça donzela não deve? Pois sim. Logo mais ela é que
estaria na vez de parir.
O
certo é que tinha de ir à cidade. Não dava mais pra ver Joel estirado na rede,
morre não morre, sem força até pra falar. Se o filho lhe morresse, quem ia ajudar
ele nos trabalhos mais pesados? É. Não dava mais pra esperar. Combinou com
Juraci: era pro dia seguinte.
Voltaria
logo. Logo!... A pé, varando a lama do ramal, até alcançar a BR, ainda a
esperar carona ou ônibus, bote dois dias só pra ir. Mais um dia em Rio Branco,
pra conseguir consulta, três. E dois de volta, cinco. Será que ainda ia
encontrar Juraci barriguda? Ou quem sabe, nesses dias de sua ausência ela ia
resolver parir? Não era de duvidar, lua cheia, e já estava no tempo. É, pelas suas
contas, haverá de ser nessa lua.
Seis
filhos. Juvenal parou pra contar. Seis? Ou eram sete? Foi nomeando um a um,
começando dos maiores para os menores: Jacira, Joel, Jerônimo, Janara, José,
João e Jacilene. Sete. Eram sete. Com o que ia nascer, oito. Oito. Que nome lhe
daria? Parecia esgotada a relação dos jotas quando lembrou: Jaci. Servia tanto
para homem como pra mulher.
Tomou
como agouro ter errado a conta do número dos filhos. Será que Joel ia morrer? Logo
ele, o mais velho dos homens, que ajudava tanto! Mas que o menino estava mal,
estava. Aquele febrão, barriga inchada, vômito escuro e fedorento, boa coisa
não era. Sezão, sabia que não podia ser. Estava acostumado com a malária, conhecia
de longe, conviveu com ela muitos anos. E só conseguiu curar, abaixo de Deus,
porque doutor Mário era um grande médico. Com os remédios que lhe passou, foi
poucos dias, e a febre foi embora.
Procuraria
doutor Mário. Pedia a Deus que ele continuasse atendendo no Posto Médico. Mas
nunca se sabe, pensou. Pelo que lhe contaram, doutor Mário tinha se candidatado
a deputado. Se ganhou, foi pra Brasília.
Chegou
cansado a Rio Branco, muito cansado. Dormir na mata, comido de carapanã, o medo
de cobra, onça, não dava. Mesmo trepando a rede bem alta, quem que dormia
sossegado? Depois foi aquela espera sem fim na beira da rodagem, sol quente,
tinindo, e nada de ônibus. Carona, cansou de pedir, não davam. O único caminhão
que parou, o motorista queria cobrar mais que o preço da passagem de ônibus. Até
pagaria mais, se pudesse. Mas o dinheiro era conta certa. E ainda tinha que
reservar um pouco para comer alguma coisa no Mercado dos Colonos. Só de lembrar
da gororoba de dona Enedina, mesmo ruim, só de lembrar, a fome aumentava. Naqueles
dois dias de caminhada, limitou-se a comer a farofa de jabá que Juraci lhe
preparou, coco de Ouricuri que foi encontrando pelo caminho, tucumã e castanha.
Castanha, sim, tapeava bem a fome. Aliás, doutor Mário sempre lhe dizia: como
castanha, Juvenal, coma muita castanha e dê para seus filhos. Castanha tem
muita proteína. Proteína... decorou o nome esquisito.
Fome,
cansaço, sono. Pior que a noite passada na mata, foi dormir no banco da praça. Carro
passando sem parar, barulho que ele não estava acostumado. Depois veio o guarda
duas vezes expulsar ele do banco. “Seu guarda, não posso pagar onde dormir,
moro na colônia, longe, vim consultar meu filho, deixe eu ficar aqui, que não
estou ofendendo ninguém. Não sou ladrão nem vagabundo.” Depois o guarda deixou.
Antes
que amanhecesse, iria para a fila do Posto Médico. Certamente seria o primeiro.
Consultaria Joel e voltaria logo. Que não conseguia parar de pensar em Juraci. E
aquele pensamento... Não queria que Joel morresse, não queria mesmo. Joel acompanhava
ele em tudo: no roçado, na horta, na farinhada, e na extração da copaíba que,
no tempo, vendia por bom dinheiro. Enfim, Joel não podia morrer, faria muita
falta. Mas o neném que ia nascer, Deus... Cortou o pensamento. Deus podia
castigar matando o Joel. Começou a assobiar, pra não pensar. Até se distraiu
com o assobio. Reconheceu uma valsa antiga que sua mãe cantava, lembrou da
velha, do velho pai, do último olhar que lhes deu na beira da estrada, o ônibus
buzinando e os velhos ficando cada vez menores, mais pequenos, acenando, e o
ônibus buzinando e se afastando e ele indo embora. Parecia tanto tempo!
Tanto
tempo parecia que ele havia saído de casa, atrás de promessas de ganhar
dinheiro fácil no Acre, e aí estava ele, faminto, cansado, à espera de uma
receita pro filho, a fim de voltar pra sua colônia. Juraci o aguardava.
Esperou
o médico até onze horas da manhã. Cansado, sonado, faminto. Nem um cafezinho
havia tomado, pra não perder seu lugar na fila. O primeiro. Também, quase não
dormiu, e se plantou em frente do Posto Médico ainda muito longe de amanhecer.
Não
era doutor Mário Maia. Mas o médico que o atendeu fez muitas perguntas,
bonzinho, ofereceu-lhe cafezinho, e ainda deu o remédio da receita. Nem precisava
comprar. Ainda bem. Saiu satisfeito.
Conseguiu
pegar logo o ônibus. Desceu no seu ramal, começou a caminhada...
Não
foi mais fácil a volta. Nem a farofa de jabá tinha mais. Comprou uns pães (que
era barato) e comia, quando a fome apertava. À noite não conseguiu dormir: caiu
uma chuva forte, toró mesmo, e nem as palhas de paxiúba com que improvisou um
abrigo, o protegeram da chuva. Amanheceu todo molhado, corpo doído, imaginando
que ainda teria o dia inteiro de caminhada pela frente, e só à noite noitinha
chegaria em casa.
Vinha
pensando o tempo todo. Pensando. Se o governo mandasse arrumar o ramal de sua
colônia, a vida ficaria mais fácil. Ele podia plantar e colher o ano todo, que
tinha caminhão pra levar a produção e vender no mercado. Mas do jeito que era a
estrada, qualquer chuvinha arruinava. No inverno ficava ilhado. E a produção se
perdia. As frutas apodreciam, nada se aproveitava. Comiam melhor, é verdade. Comiam
o que não podiam vender, mas não tinham dinheiro pra comprar remédio, um corte
de chita, um litro de querosene, sabão, açúcar, nada. Um despautério, também, a
mulher parindo todo ano.
Sete
filhos e mais um chegado. Talvez, até, já tivesse chegado. Tinha quase certeza.
Com aquela lua no céu, lua cheia, Juraci já teria parido. E lá voltava o
pensamento. Durante a viagem, inventou de pensar na estrada, em caçada, lembrou
de tanta coisa, mas era como se o pensamento estivesse escondido na aba do
chapéu, bem ali na sua frente, e não adiantava fingir que não estava vendo.
Deus
havera de ajudar! Mal formulou o pensamento, teve um estremecimento, como se
fosse um aviso. Joel... Não. Deus não havera de permitir que Joel morresse. Mas
o neném, quem sabe? Deus é quem sabia. Deus sabia como a vida estava difícil,
dar de comer a tantas bocas.
De
longe, ainda um resto de dia dando pra avistar o barraco, assuntou: tudo
quieto. Nenhum menino passarinhando ou brincando ali pelo terreiro. Ninguém no
igarapé. Ia se aproximando da casa e o coração apertando. De repente sentiu um
cheiro de vela. Joel? Juraci? No varal, panos estendidos, cueiros, o lençol
novo que Juraci só usava nos partos. Então o neném nasceu... Pensou o
pensamento, levou as mãos à cabeça como se assim pudesse espantar as ideias. Começou
a assobiar.
Ouvindo
o assobio, Juraci veio até a porta de casa. Sem barriga. Juvenal chegava a
ouvir o bater do coração na boca. Não teve coragem de perguntar. Lá de dentro
vinha o cheiro de vela.
Continuou
a caminhar em direção ao barraco. Naquela direção não enxergaria o canto em que
ficava a rede de Joel. Desviou-se, espichou-se, olhou: ele estava lá. Balançando
a rede.
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