sábado, 10 de março de 2018

POEMAS DE TORQUATO NETO

TORQUATO NETO nasceu em Teresina, Piauí, 1944. Foi repórter, letrista, compôs e escreveu shows, assinava a coluna Geléia Geral na Última Hora. Deixou 17 músicas gravadas. Em 1973 foi lançada Os últimos dias de paupéria, sua obra póstuma. Morreu no Rio de Janeiro, em 1972. Em 2018, estreou o filme “Torquato Neto – Todas as Horas do Fim” (2017), dos diretores Eduardo Ades e Marcus Fernando, que explora a vida e as múltiplas frentes do poeta, que atuou ainda no cinema, na música e no jornalismo.

VER

e deu-se que um dia eu o matei, por merecimento.
sou um homem desesperado andando à margem do rio parnaíba.

VIR

correndo sol a pino pela avenida

***

Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cidade
e qualquer gesto é o fim
do seu início;

Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.

Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:

só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo;

não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
não se fala, não é permitido:
mudar de ideia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento.

***

era um pacato cidadão de roupa clara
seu terno, sua gravata lhe caíam bem
seu nome, que eu me lembre, era ezequias
casado, vacinado e sem ninguém.
brasileiro e eleitor, seu ezequias
reservista de terceira e com família
três filhos, prestações e alguns livros
(enciclopédias e biografias).
era uma pacato cidadão de roupa clara
era um homem de bem que eu conhecia
cumpria seus deveres, trabalhava
chegava cedo, em casa de madrugada
lutando pelo pão de cada dia.
era um pacato cidadão de roupa clara
e todo dia passava e me dizia
que o mundo estava andando muito mal
eu perguntava por que, eu perguntava
seu ezequias nunca me explicava
apenas repetia
lá dentro do seu puro tropical
este mundo vai seguindo muito mal
este mundo, meu filho, vai seguindo muito mal.
ah, seu ezequias!
que pena, que desastre, que tragédia
que coisa aconteceu naquele dia
seu ezequias, ah, seu ezequias
saiu do emprego e foi tomar cachaça
e apenas de manhã voltou pra casa
batendo na mulher, xingando os filhos
seu ezequias, ah, seu ezequias
era um pacato cidadão de roupa clara
era um homem de bem que eu conhecia
e agora é a vergonha da família.


MAKE LOVE, NOT BEDS OU É ISSO MESMO

FILHO de Kennedy não quer ser Kennedy
Deus os faz e os junta.
Amanhã em Tara eu pensarei nisso.
Pra o bom entendedor: meia palavra basta?
É disco que eu gosto?
Quem vem lá faça o favor de dizer por que é que vem.
Tem gente dando bandeira a meio pau.
Ninguém me ama, ninguém me chama, são coisas do passado (W.S.)
Quem sabe, sabe, conhece bem: gostoso gostar de alguém?
Vai começar a era de Aquarius. Prepare seu coração.
Ou não: dê um pulo do lado de fora.
Compre: Olhe. Vire. Mexa.
Você sempre me aparece com a mesma conversa mole.
Com o mesmo papo furado – só filmo planos gerais.
Sou feiticeiro de nascença/Trago o meu peito cruzado
A morte não é vingança/Orgulho não vale nada.
E atrás dessa reticência
Nada, ri-go-ro-sa-men-te nada
Boca calada, moscas voando, e tudo somente enquanto
Eu deixar. Enquanto eu estiver atento nada me acontecerá.
Um painel depois do outro e um sorriso de vampiro;
Eu me viro/como/posso me virar.
E agora corta essa – só quero saber do que pode dar certo
Mas hoje tenho muita pressa. Pressa! A gente se vê,
Na certa.


MAIS DESFRUTE, CURTA

a)        A virtude é a mãe do vício
conforme se sabe;
acabe logo comigo
ou se acabe.

b)        A virtude é o próprio vício
– conforme se sabe –
estão no fim, no início
da escada, Chave.

c)         Chuva da virtude, o vício,
é conforme se sabe;
e propriamente nela é que eu me ligo,
nem disco nem filme:
nada, amizade. Chuvas de
virtude:
chaves.

d)        amar-te/a morte/morrer.
há urubus no telhado e a carne seca
é servida: um escorpião
encravado
na sua própria ferida, não
escapa;
só escapo pela porta da saída.

e)        A virtude, a mãe do vício
como eu tenho vinte dedos,
ainda,
e ainda é cedo:
você olha nos meus olhos
mas não vê, se lembra?

f)         A virtude
mais o vício: início da
MINHA
transa. Início fácil, termino:
Deus é precipício,
durma,
e nem com Deus no hospício
(durma), o hospício é refúgio.
Fuja.


COGITO

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.


D’ENGENHO DE DENTRO

(excertos)

12/10

eu queria escrever sobre ana, mas ainda é cedo, eu não sei, não sei se posso e, finalmente, vejo que não quero. sobre a vinda de mamãe e papai até aqui, também não: falta qualquer novidade a esse respeito – a não ser que valha a pena anotar que reencontrar papai depois de três anos é como reencontrar um velho amigo que não via há três dias; e reencontrar mamãe depois de dois anos é como ser apresentado a alguém cujo nome, fama e aventuras eu já conhecia de sobra e que, portanto, me pareceu estranha, distante, mítica. mais ou menos assim. Mas prefiro escrever sobre este lugar e minha vida dentro dele. a melhor sensação é a de reconquistar inteiramente o anonimato no contato diário com meus pares de hospício. posso gritar: “meu nome é torquato neto, etc., etc.”; do outro lado uma voz sem dentes dirá: meu nome é vitalino; e outra: o meu é atagahy! aqui dentro só eu mesmo posso ter algum interesse: minhas aventuras, nem um pingo. meu nome podia ser, josé da silva – e de preferência, mas somente no que se refere a mim. a eles não interessa. O dr. Osvaldo não pode fugir. nem fingir: mas isso eu comecei a ver, de fato, logo mais quando teremos nossa primeira entrevista. o anonimato me assegura uma segurança incrível: já não preciso mais (pelo menos enquanto estiver aqui) liquidar meu nome e formar nova reputação como vinha fazendo sistematicamente como parte do processo autodestrutivo em que embarquei – e do qual, certamente, jamais me safarei por completo. mas sobre isso, prefiro dar mais tempo ao tempo: eu sou obrigado a acreditar no meu destino. (isso é outra conversa que só rogério entenderia). tem um livro chamado: o hospício é deus. eu queria ler esse livro. foi escrito, penso, neste mesmo sanatório. vou pedir a alguém para me conseguir esse livro.

13/10

eu: pronome pessoal e intransferível. viver: verbo transitório e transitivo, transável, conforme for. a prisão é um refúgio: é perigoso acostumar-se a ela. e o dr. Osvaldo? Não exclui a responsabilidade de optar, ou seja:?

20/10

É preciso não beber mais. Não é preciso sentir vontade de beber e não beber: é preciso não sentir vontade de beber. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso fechar para balanço e reabrir. É preciso não dar de comer aos urubus. Nem esperanças aos urubus. É preciso sacudir a poeira. É preciso poder beber sem se oferecer em holocausto. É preciso. É preciso não morrer por enquanto. É preciso sobreviver para verificar. Não pensar mais na solidão de Rogério, e deixá-lo. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso enquanto é tempo não morrer na via pública.

4/4/71

Debaixo da tempestade
sou feiticeiro de nascença
atrás desta reticência
tenho o meu corpo cruzado
a morte não é vingança

7/4/71

– Foi um caminhão que passou. bateu na minha cabeça. aqui. isso aqui é péssimo, não me lembro de nada.

– Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. São bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba.

– Pode me dar um cigarro? eu só tenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. Pode me dar as vinte.


HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007.p.60-68


POEMA DO AVISO FINAL

É preciso que haja alguma coisa
alimentando o meu povo;
uma vontade
uma certeza
uma qualquer esperança.
É preciso que alguma coisa atraia
a vida
ou tudo será posto de lado
e na procura da vida
a morte virá na frente
a abrirá caminhos.
É preciso que haja algum respeito,
ao menos um esboço
ou a dignidade humana se afirmará
a machadadas.

Torquato Neto, em “O Fato e A Coisa”, Teresina/PI: UPJ Produções, 2012.

Saiba mais sobre o poeta no link abaixo:

Um comentário:

Unknown disse...

ei, que trabalho massa que cês fazem aqui! viva torquato!! <3