TORQUATO NETO nasceu
em Teresina, Piauí, 1944. Foi repórter, letrista, compôs e escreveu shows, assinava
a coluna Geléia Geral na Última Hora. Deixou 17 músicas gravadas. Em 1973 foi
lançada Os últimos dias de paupéria,
sua obra póstuma. Morreu no Rio de Janeiro, em 1972. Em 2018, estreou o filme “Torquato
Neto – Todas as Horas do Fim” (2017), dos diretores Eduardo Ades e Marcus
Fernando, que explora a vida e as múltiplas frentes do poeta, que atuou ainda
no cinema, na música e no jornalismo.
e deu-se que um dia
eu o matei, por merecimento.
sou um homem
desesperado andando à margem do rio parnaíba.
VIR
correndo sol a pino
pela avenida
***
Agora não se fala
mais
toda palavra guarda
uma cidade
e qualquer gesto é
o fim
do seu início;
Agora não se fala
nada
e tudo é
transparente em cada forma
qualquer palavra é
um gesto
e em sua orla
os pássaros de
sempre cantam
nos hospícios.
Você não tem que me
dizer
o número de mundo
deste mundo
não tem que me
mostrar
a outra face
face ao fim de
tudo:
só tem que me dizer
o nome da república
do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo
vindo;
não tem que me
mostrar
a outra mesma face
ao outro mundo
não se fala, não é
permitido:
mudar de ideia. é
proibido.
não se permite
nunca mais olhares
tensões de cismas
crises e outros tempos.
está vetado
qualquer movimento.
***
era um pacato
cidadão de roupa clara
seu terno, sua
gravata lhe caíam bem
seu nome, que eu me
lembre, era ezequias
casado, vacinado e
sem ninguém.
brasileiro e
eleitor, seu ezequias
reservista de
terceira e com família
três filhos,
prestações e alguns livros
(enciclopédias e
biografias).
era uma pacato
cidadão de roupa clara
era um homem de bem
que eu conhecia
cumpria seus
deveres, trabalhava
chegava cedo, em
casa de madrugada
lutando pelo pão de
cada dia.
era um pacato
cidadão de roupa clara
e todo dia passava
e me dizia
que o mundo estava
andando muito mal
eu perguntava por
que, eu perguntava
seu ezequias nunca
me explicava
apenas repetia
lá dentro do seu
puro tropical
este mundo vai
seguindo muito mal
este mundo, meu
filho, vai seguindo muito mal.
ah, seu ezequias!
que pena, que
desastre, que tragédia
que coisa aconteceu
naquele dia
seu ezequias, ah,
seu ezequias
saiu do emprego e
foi tomar cachaça
e apenas de manhã
voltou pra casa
batendo na mulher,
xingando os filhos
seu ezequias, ah,
seu ezequias
era um pacato
cidadão de roupa clara
era um homem de bem
que eu conhecia
e agora é a
vergonha da família.
MAKE
LOVE, NOT BEDS OU É ISSO MESMO
FILHO de Kennedy
não quer ser Kennedy
Deus os faz e os
junta.
Amanhã em Tara eu
pensarei nisso.
Pra o bom
entendedor: meia palavra basta?
É disco que eu
gosto?
Quem vem lá faça o
favor de dizer por que é que vem.
Tem gente dando
bandeira a meio pau.
Ninguém me ama,
ninguém me chama, são coisas do passado (W.S.)
Quem sabe, sabe,
conhece bem: gostoso gostar de alguém?
Vai começar a era
de Aquarius. Prepare seu coração.
Ou não: dê um pulo
do lado de fora.
Compre: Olhe. Vire.
Mexa.
Você sempre me
aparece com a mesma conversa mole.
Com o mesmo papo
furado – só filmo planos gerais.
Sou feiticeiro de
nascença/Trago o meu peito cruzado
A morte não é
vingança/Orgulho não vale nada.
E atrás dessa
reticência
Nada,
ri-go-ro-sa-men-te nada
Boca calada, moscas
voando, e tudo somente enquanto
Eu deixar. Enquanto
eu estiver atento nada me acontecerá.
Um painel depois do
outro e um sorriso de vampiro;
Eu me
viro/como/posso me virar.
E agora corta essa
– só quero saber do que pode dar certo
Mas hoje tenho
muita pressa. Pressa! A gente se vê,
Na certa.
MAIS
DESFRUTE, CURTA
a) A virtude é a mãe do vício
conforme
se sabe;
acabe
logo comigo
ou
se acabe.
b) A virtude é o próprio vício
–
conforme se sabe –
estão
no fim, no início
da
escada, Chave.
c) Chuva da virtude, o vício,
é
conforme se sabe;
e
propriamente nela é que eu me ligo,
nem
disco nem filme:
nada,
amizade. Chuvas de
virtude:
chaves.
d) amar-te/a morte/morrer.
há
urubus no telhado e a carne seca
é
servida: um escorpião
encravado
na
sua própria ferida, não
escapa;
só
escapo pela porta da saída.
e) A virtude, a mãe do vício
como
eu tenho vinte dedos,
ainda,
e
ainda é cedo:
você
olha nos meus olhos
mas
não vê, se lembra?
f) A virtude
mais
o vício: início da
MINHA
transa.
Início fácil, termino:
Deus
é precipício,
durma,
e
nem com Deus no hospício
(durma),
o hospício é refúgio.
Fuja.
COGITO
eu sou como eu sou
pronome
pessoal
intransferível
do homem que
iniciei
na medida do
impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes
segredos dantes
sem novos secretos
dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado
indecente
feito um pedaço de
mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do
fim.
D’ENGENHO
DE DENTRO
(excertos)
12/10
eu queria escrever
sobre ana, mas ainda é cedo, eu não sei, não sei se posso e, finalmente, vejo que
não quero. sobre a vinda de mamãe e papai até aqui, também não: falta qualquer
novidade a esse respeito – a não ser que valha a pena anotar que reencontrar papai
depois de três anos é como reencontrar um velho amigo que não via há três dias;
e reencontrar mamãe depois de dois anos é como ser apresentado a alguém cujo
nome, fama e aventuras eu já conhecia de sobra e que, portanto, me pareceu
estranha, distante, mítica. mais ou menos assim. Mas prefiro escrever sobre
este lugar e minha vida dentro dele. a melhor sensação é a de reconquistar
inteiramente o anonimato no contato diário com meus pares de hospício. posso
gritar: “meu nome é torquato neto, etc., etc.”; do outro lado uma voz sem
dentes dirá: meu nome é vitalino; e outra: o meu é atagahy! aqui dentro só eu
mesmo posso ter algum interesse: minhas aventuras, nem um pingo. meu nome podia
ser, josé da silva – e de preferência, mas somente no que se refere a mim. a
eles não interessa. O dr. Osvaldo não pode fugir. nem fingir: mas isso eu
comecei a ver, de fato, logo mais quando teremos nossa primeira entrevista. o
anonimato me assegura uma segurança incrível: já não preciso mais (pelo menos
enquanto estiver aqui) liquidar meu nome e formar nova reputação como vinha
fazendo sistematicamente como parte do processo autodestrutivo em que embarquei
– e do qual, certamente, jamais me safarei por completo. mas sobre isso, prefiro
dar mais tempo ao tempo: eu sou obrigado a acreditar no meu destino. (isso é
outra conversa que só rogério entenderia). tem um livro chamado: o hospício é
deus. eu queria ler esse livro. foi escrito, penso, neste mesmo sanatório. vou
pedir a alguém para me conseguir esse livro.
13/10
eu: pronome pessoal
e intransferível. viver: verbo transitório e transitivo, transável, conforme
for. a prisão é um refúgio: é perigoso acostumar-se a ela. e o dr. Osvaldo? Não
exclui a responsabilidade de optar, ou seja:?
20/10
É preciso não beber
mais. Não é preciso sentir vontade de beber e não beber: é preciso não sentir
vontade de beber. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso fechar para
balanço e reabrir. É preciso não dar de comer aos urubus. Nem esperanças aos
urubus. É preciso sacudir a poeira. É preciso poder beber sem se oferecer em
holocausto. É preciso. É preciso não morrer por enquanto. É preciso sobreviver para
verificar. Não pensar mais na solidão de Rogério, e deixá-lo. É preciso não dar
de comer aos urubus. É preciso enquanto é tempo não morrer na via pública.
4/4/71
Debaixo da
tempestade
sou feiticeiro de
nascença
atrás desta
reticência
tenho o meu corpo
cruzado
a morte não é
vingança
7/4/71
– Foi um caminhão
que passou. bateu na minha cabeça. aqui. isso aqui é péssimo, não me lembro de
nada.
– Eles não deixam
ninguém ficar em paz aqui dentro. São bestas. Não deixam a gente cortar a carne
com faca mas dão gilete pra se fazer a barba.
– Pode me dar um
cigarro? eu só tenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. Pode me
dar as vinte.
HOLLANDA, Heloisa
Buarque de (org.). 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007.p.60-68
POEMA DO AVISO
FINAL
É preciso que haja
alguma coisa
alimentando o meu
povo;
uma vontade
uma certeza
uma qualquer esperança.
É preciso que
alguma coisa atraia
a vida
ou tudo será posto
de lado
e na procura da
vida
a morte virá na
frente
a abrirá caminhos.
É preciso que haja
algum respeito,
ao menos um esboço
ou a dignidade
humana se afirmará
a machadadas.
Torquato Neto, em “O
Fato e A Coisa”, Teresina/PI: UPJ Produções, 2012.
Saiba mais sobre o
poeta no link abaixo:
Um comentário:
ei, que trabalho massa que cês fazem aqui! viva torquato!! <3
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