segunda-feira, 7 de maio de 2012

O HOMEM QUE VENCEU O TEMPO

Marcos Vinícius Neves


O que um homem acumula ao longo de sua vida? Rancores e ressentimentos? Boas lembranças e conhecimento? Observar o que um homem deixa como herança e legado aos que vem depois dele, pode ser uma boa maneira de encontrarmos a resposta para essa essencial pergunta.


Abrir a porta daquele armário me provocou ao mesmo tempo enorme desespero e imensa animação. A pilha de pastas e envelopes recobertos por grossa camada do pó dos tempos de imediato revelava que os próximos dias seriam muito, muito, trabalhosos mas profundamente recompensadores.

Não é todo dia que um pesquisador tem a oportunidade de se debruçar sobre o conjunto de materiais acumulados em décadas de trabalho de um outro pesquisador. Ainda mais se levarmos em consideração que este conjunto de documentos, cartas, recortes de jornais, manuscritos originais, fotografias, entre muitas outras coisas, nunca haviam sido pesquisados antes. E, principalmente, que foram o produto de toda uma vida de trabalho e dedicação de um dos mais extraordinários e importantes pesquisadores da história do Acre: Leandro Tocantins.

Mas, antes mesmo de continuar a descrever o que foram esses últimos dias em minha vida, é fundamental explicar que essa rara janela de oportunidades extraordinárias foi aberta pelo diretor da Biblioteca da Floresta, o filósofo e amante do conhecimento, Marcos Afonso.

Foi ele que fez contato com a viúva de Leandro Tocantins, a simpática e atenciosa D. Léa Tocantins, e sua filha, a animada e irrequieta Rosane. O objetivo inicial seria o de trazer para o Acre a biblioteca de Leandro, em especial aquela parte dedicada a Amazônia, já que este era com justiça tratado por Gilberto Freire como um Amazonófilo. Infelizmente essa biblioteca já havia sido doada e está motivando uma série de contatos e tratativas que continuam sendo conduzidas por Marcos Afonso, que não costuma se deter no primeiro obstáculo.
 
Por outro lado, durante a primeira visita que a equipe formada por Marcos Afonso (e que incluiu outras três pessoas além de mim e dele) fez a Dona Léa - um assunto que logo será devidamente tratado em artigo escrito por ele mesmo - nos deparamos com um grande volume de documentos e textos originais deixados por Leandro Tocantins. A alegria foi então inevitável e generalizada. Ainda mais depois que Dona Léa e Rosane deixaram clara sua disposição de doar esse acervo documental para a Biblioteca da Floresta, que mesmo num primeiro e superficial olhar se mostrava evidentemente muito rico, para que os acreanos possam dele desfrutar.

E foi assim e por isso que eu e Libério, Chefe do Departamento de Patrimônio Histórico da FEM, desembarcamos no Rio de Janeiro, no útimo domingo, com a missão de identificar, selecionar, encaixotar e trazer para o Acre o acervo documental deixado por Leandro Tocantins.

Muito dificil é pra mim, descrever com propriedade o que senti nos dias subsequentes. A emoção de abrir dezenas de envelopes e pastas acumuladas ao longo de uma vida inteira para nelas descobrir verdadeiras preciosidades é única na vida de um pesquisador. Assim passamos dias inteiros, encontrando fotografias amareladas de uma Belém e de um Acre que não mais existem; telegramas e cartas trocadas com autoridades e intelectuais do calibre de Raquel de Queiróz, Gilberto Freire e Arthur César Ferreira Reis; poesias e textos manuscritos ou datilografados, muitos deles ineditos, incluindo os fichamentos e ensaios que deram origem à fundamental e clássica obra de Leandro Tocantins: Formação Histórica do Acre; entre muitos outros documentos e objetos impossíveis de relacionar aqui neste artigo.

Um prazeroso trabalho que contou com a luxuosa orientação e auxílio de Dona Léa e Rosane que o tempo todo nos acompanharam identificando lugares e pessoas, esclarecendo dúvidas sobre o período em que Leandro trabalhou na Embrafilme, na Embratur, na embaixada brasileira em Lisboa e nos mais diversos acontecimentos da vida desse extraordinário memorialista e historiador.
Um homem que, mesmo tendo deixado Tarauacá aos doze anos e Belém aos dezoito, nunca deixou de ter uma alma amazônica, tanto que suas principais obras permaneceram ligadas umbilicalmente à floresta e ao seu povo simples. Um homem que, apesar de formado em direito, amou a história como poucos.

Mas, além de emocionantes e cansativos, preciso dizer que esses foram também dias muito alegres. A sensação que tive foi que enquanto esvaziávamos os armários das pastas e envelopes tão longamente acumulados por Leandro Tocantins, tirávamos um peso dos ombros de Dona Léa e Rosane que alternavam risos e choros ao verem suas vidas de novo repassadas diante de seus olhos. Afinal, este fantástico acervo agora voltará a vida e passará a estar disponível para todos que por ele se interessarem.

Mas, quando já estávamos perto de terminar o trabalho, uma coisa, um detalhe simples e despretencioso, me chamou a atenção. Em nenhuma das pastas ou papeis encontramos uma traça sequer. Muita poeira, fungos, ácaros, mas traça nenhuma. Pareceu-me, então, que Leandro Tocantins foi e é como aquelas árvores de madeira de lei amazônicas que os cupins não róem porque não conseguem, são duras demais para isso. Tal como a obra de Tocantins, rija, consistente e permanente demais para ser devorada. Sem dúvida um homem que por sua vida e trabalho venceu a voragem do tempo.

3 comentários:

Anônimo disse...

Minha admiração pelo trabalho do Marcos Binicius é enorme. Ele pesquisa a história do Acre como poucos o fizeram.
Leila Jalul

Olivia Maria Maia disse...

Assino embaixo, Leila.
Abraços pra você, menina.
Outros pro Isaac.
O do Marcos deixei lá no blog dele.

Olivia Maia

Alma Acreana disse...

ERRATA
Marcos Vinícius em vez de Marcos Binicius.

Correção a pedido de Leila!