sábado, 30 de junho de 2012

LILI MARLENE: O Vento e A Tempestade

LUIZ FELIPE JARDIM


Durante a Primeira Guerra Mundial, em 1915, um soldado da Guarda Imperial Alemã, Hans Leip, imaginou e criou uma poesia. Uma poesia que, embora feita sob o lume ardente, no calor incandescente dos combates, não tinha caráter belicista e falava de coisas simples: um soldado sentinela e sua namorada que namoravam clandestinamente sob o farol de uma guarita. Lembranças dos encontros entre ele e sua garota em um quartel de sua cidade natal. Coisas de poetas e de suas poesias.

Despretensiosa que era a poesia, não teve repercussão até que, em 1937 é publicada em uma coleção dos poemas de Leip e é observada pela cantora Lale Andersen que a apresenta ao compositor alemão Norbert Schultze.

Shultze, que tinha bom reconhecimento do público pelas músicas que fazia, principalmente as para bandas militares, cria uma partitura para a poesia de Leip e a canção é gravada por Lale Andersen em 1939, às portas da Segunda Guerra Mundial.

Lale Andersen já era cantora relativamente famosa em Berlim, mas não conseguiu impulsionar o sucesso da canção. Assim, o disco com a primeira gravação de LILI MARLENE tem somente 700 cópias vendidas.

Em 1940, com a Segunda Guerra já em pleno andamento, uma Companhia Alemã de Reconhecimento adotou a canção Lili Marlene como 'canção da companhia'. Em 1941 esta mesma companhia é enviada para o Norte da África e passa a fazer parte do Afrik Korp, braço do exército alemão comandado por Rommel.

Em agosto de 1941, um ex-oficial da companhia, que agora dirigia a Rádio Militar de Belgrado - uma estação alemã encravada na Iugoslávia, leva ao ar a canção dedicando-a aos seus colegas que se encontravam nos desertos africanos. Tantos foram os pedidos para que a música fosse outras vezes tocada, inclusive do próprio Rommel, que Lili Marlene, passou a ser tocada todos os dias às 21h59m como música de encerramento da emissora.

A Rádio Militar de Belgrado estava estrategicamente localizada e equipada com poderoso e moderno equipamento de transmissão. Era a primeira vez na História que a rádio era usada em uma guerra de tamanhas proporções. Na verdade as primeiras estações de rádio transmissão haviam surgido a menos de 20 anos. Porém, a tecnologia que desenvolveram foi suficientemente ágil e poderosa para que, em 1941 a Rádio Militar de Belgrado pudesse cobrir, com suas transmissões, uma área de seis milhões de habitantes. Hoje essa mesma área tem cerca de 30 milhões de habitantes. Em Tobruk, norte da África, onde os combates eram intensos, Lili Marlene, tocada às 21h59m pela rádio de Belgrado, era a senha para o cessar fogo entre os dois lados. E os dois lados ouviam-se cantando a mesma canção, que muitos dos ingleses, para surpresa dos alemães, cantavam em alemão.

O sucesso de Lili Marlene foi imediato, e não somente entre alemães e ingleses. As rádios européias passam a tocar a música em suas programações, e civis e militares de ambos os lados adotam a canção que passa a ser a canção militar mais tocada de todos os tempos, superando La Madelon música francesa da Primeira Guerra Mundial.

Um correspondente de guerra inglês na África noticiou, em 1941, que "em qualquer lugar do deserto, os soldados ingleses estão assoviando ou cantando Lili Marlene".

As rádios de toda a Europa executam a música insistentemente (como uma na Suíça que a tocava cerca de 30 vezes em um só dia) que agora era gravada nas diversas línguas européias e de outros continentes.

No espaço de seis meses Lili Marlene é gravada em 43 idiomas. Isso numa época em que as condições para as gravações não eram nada fáceis, muito menos em tempos de guerra onde o material necessário para as gravações como gasolina e goma-laca, estavam sendo racionados em todo o mundo. Em todas as gravações, a música é a mesma, com variações apenas no andamento e instrumentalização. E, embora a letra sofra mudanças signifativas, algumas vezes até mesmo em um único idioma, mantém-se o sentido original de Leip, além do título.

Em 1942, discos de Lale Andersen com a canção têm venda de 160 mil cópias só na Alemanha.

Em 1944 a música foi adotada pelo VIII Exército Britânico e passa a ser tocada em quartéis e hospitais militares.

Também em 1944, esteve por treze semanas no topo da parada de sucessos nos EUA.

Marlene Dietrich
Em 1944, a atriz Marlene Dietrich grava Lili Marlene em alemão e inglês, e percorre as frentes aliadas da África à Groelandia, da Europa à Asia.

Mesmo depois da Guerra, Lili Marlene continua a fazer sucesso, e se torna a primeira música alemã a vender um milhão de cópias. Até 1960 venderá dois milhões de cópias.

Uma pessoa que nasceu em 1938, 39 ou 40, ou nas cercanias, terá, em quase todos os lugares do planeta, a canção Lili Marlene como uma das suas primeiras canções mais ouvidas. Uma espécie de ‘berço sonoro’, que certamente embalará e marcará sua sensibilidade musical. Será essa mesma geração que, com 18, 17, 16 anos, um pouco mais e um pouco menos, qual rastilho de pólvora, espalhará pelo Mundo o Rock and Roll. E que terá vinte, vinte tantos anos quando nas revoluções dos anos 60. Bob Dylan tinha 21 anos de quando compôs Blowin’ in the Wind em 1962.

A gravadora alemã Bear Family, lançou mais recentemente uma caixa de 7 cds com 197 interpretações diferentes de Lili Marlene.

Um dos aspectos interessantes que o sucesso instantâneo da música evidencia, é o caráter cosmopolita da época. A humanidade, em meio a uma guerra violentíssima, vivia em carne e espírito, a experiência de uma internacionalização que nascia traumática e vertiginosamente, e que não pararia mais de crescer. Ao ser, simultaneamente cantada, assoviada, tocada, ouvida ou pensada por mais de vinte milhões de pessoas em todo o mundo, num momento em que a humanidade dava a si mesma as dores de uma guerra (como as de um parto às avessas) com mais de 40 milhões de mortos, 120 milhões de órfãos etc., Lili Marlene se fazia, não só um hino da guerra como querem uns, nem só da liberdade, como querem outros, mas também um canto que anunciava ao mundo a integração que ele passava a viver. Como se a canção, ao sopro dos ventos, e nos quatro cantos do planeta, dissesse a cada habitante da aldeia global que então se fazia: “Veja, o mundo está chegando. Cante. Anuncie a sua chegada”.

Lili Marlene mostrava que os sentimentos daqueles namorados lá da aldeia da Alemanha eram os mesmos daqueles namorados lá da aldeia na Indonésia. Que a ânsia de liberdade daquele jovem que guerreava era a mesma daquele outro que o combatia. A humanidade se globalizava e desenhava em si os traços mais marcantes de uma humanidade que se globalizava.

Em 1967, Norbert Schultze, que durante a guerra havia composto várias músicas para o governo nazista, perguntado se tinha algum remorso por isso respondeu: “Não posso arrepender-me. Eram uma exigência da época, não minha. Uns faziam outras coisas. Eu compunha canções”.

Assim como o espírito universal se realiza nos indivíduos, a humanidade se realiza nas pessoas que a compõe. Não existe uma ‘humanidade’ exterior que, numa época diga: “essas são as minhas exigências”. Mas existem múltiplas realidades, objetivas e subjetivas, que produzem e selecionam pessoas para fazerem bem o que fazem. Como os bons cientistas, ou os bons músicos. Uns produzirão a penicilina, como Fleming. Outros produzirão boas canções e poesias como Schultze/Lale/Leip. Uns darão mais vigor, mais resistência ao físico do homem; outros trarão mais sensibilidade ao homem e ao espírito da humanidade.

Perguntada sobre o porquê do sucesso rápido e fulminante de Lili Marlene, Lale Andersen respondeu: “pode o vento explicar porque se torna tempestade”?

Gosto dessa resposta porque ela pergunta. Se o vento não conhecer as respostas, soprará as perguntas. Com o tempo, no vôo calmo das suas brisas ou nas rajadas das tempestades, soprará as respostas que suas asas irão defrontar. E que nos seus sopros estarão a voar.

Ah! Bob Dylan, compositor, nasceu em 1941 e tinha 21 anos quando fez Blowin’ in the Wind.
“Pode, por acaso, o vento explicar porque se torna tempestade”?
Fonte - Rosa Sala Rose: Lili Marlene, Barcelona

5 comentários:

Jalul disse...

Henriques e Felipes,
Li, reli e treli teu lindo artigo.
A música da Liloca sempre esteve em minha mente, ainda que cantarolada.
Acho as guerras estúpidas. Nunca gostei muito de filmes sobre elas. Mas não me surpreendeu que a canção tenha agradado gregos, troianos e acreanos. Isto é fantástico!
Agora, com o auxílio do Google, achei a tradução e entendi a resposta do Lale Andersen e o porquê de você gostar dela.
Um suave beijo da Leiloca que muito te quer bem.
Leila Jalul

Anônimo disse...

MIL PERDÕES POR TER FALHADO NO ENVIO DA LETRA ORIGINAL E DA TRADUÇÃO. AÍ ESTÃO!



Lili Marleen (versão original em alemão)
Hans Leip, 1915

Vor der Kaserne
Vor dem großen Tor
Stand eine Laterne
Und steht sie noch davor
So woll'n wir uns da wieder seh'n
Bei der Laterne wollen wir steh'n
Wie einst Lili Marleen. (2x)

Unsere beide Schatten
Sah'n wie einer aus
Daß wir so lieb uns hatten
Das sah man gleich daraus
Und alle Leute soll'n es seh'n
Wenn wir bei der Laterne steh'n
Wie einst Lili Marleen. (2x)

Schon rief der Posten,
Sie blasen Zapfenstreich
Das kann drei Tage kosten
Kam'rad, ich komm sogleich
Da sagten wir auf Wiedersehen
Wie gerne wollt ich mit dir geh'n
Mit dir Lili Marleen. (2x)

Deine Schritte kennt sie,
Deinen zieren Gang
Alle Abend brennt sie,
Doch mich vergaß sie lang
Und sollte mir ein Leids gescheh'n
Wer wird bei der Laterne stehen
Mit dir Lili Marleen ? (2x)

Aus dem stillen Raume,
Aus der Erde Grund
Hebt mich wie im Traume
Dein verliebter Mund
Wenn sich die späten Nebel drehn
Werd' ich bei der Laterne steh'n
Wie einst Lili Marleen. (2x)



Lili Marleen (tradução da versão alemã)
M. Moreira Jr., 2003

Em frente ao quartel
Diante do portão
Havia um poste com um lampião
E se ele ainda estiver lá
Lá desejamos nos reencontrar
Queremos junto ao lampião ficar
Como outrora, Lili Marlene. (2x)

Nossas duas sombras
Pareciam uma só
Tinhamos tanto amor
Que todos logo percebiam
E toda a gente ficava a contemplar
Quando estávamos junto ao lampião
Como outrora, Lili Marlene. (2x)

Gritou o sentinela
Que soaram o toque de recolher
(Um atraso) pode te custar três dias
Companheiro, já estou indo
E então dissemos adeus
Como gostaria de ir contigo
Contigo, Lili Marlene (2x)

O lampião conhece teus passos
Teu lindo caminhar
Todas as noites ele queima
Mas há tempos se esqueceu de mim
E, caso algo ruim me aconteça
Quem vai estar junto ao lampião
Contigo, Lili Marlene ? (2x)

Do tranquilo céu,
Das profundezas da terra
Me surge como em sonho
Teu rosto amado
Envolto na névoa da noite
Será que voltarei para nosso lampião
Como outrora, Lili Marlene. (2x)


GOSTO MAIS DE CANTÁ-LA NA VERSÃO ORIGINAL. TENHO BOA FORMAÇÃO NA LÍNGUA ALEMÃ. rsrsrs
BEIJOS

Leila Jalul

Palazzo disse...

No Brasil temos uma versão da Lili Marlene interessante.Estou te enviando por e-mail.abç

Anônimo disse...

Oi, Leila
Concordo com você, também acho as guerras absurdas. Coisas do 'arco da velha'. Literalmente. Coisas do arco da velha Pré História. De bem antes da criação de um espaço onde os humanos passariam (ou quase) a resolver suas contendas em guerras simbólicas, como acontece (ou quase) no espaço da política.
Mas essa truculência, assim como as religiões de amor como o cristianismo, o budismo, zoroastrismo afirmam, não é inata, ela é adquirida no processo de humanização e encravada no DNA de quase todas as culturas humanas.
O resultado são as sociedades guerreiras. Dos saques, dos botins, dos violadores, dos antropófagos. Desde a Grécia aos Tupiniquins.
Quem eram os gregos (entre outras coisas boas), senão piratas, saqueadores escravocratas?
Quem eram os Romanos (entre outras coisas até muito boas), senão exímios soldados assassinos que destruíram dezenas de milhares de aldeias pelo mundo em que andavam para escravizar humanos?
Quem eram os 'índios' (entre outras coisas até maravilhosas), senão exímios matadores de animais e gente? Alguns até comiam os inimigos para adquirir 'força e valentia dos seus ancestrais'.
Todos eles guerreiros. Todas as suas sociedades grandemente moldadas pela força simbólica dos seus adorados ídolos, e expressa na força real e bruta dos seus seguidores, adoradores da violência.
Desde que a humanidade pode ser assim chamada, foram muito poucos, pouquíssimos mesmo - se é que existiram, os dias em que não houve combate entre humanos em guerras sem sentido.
A nossa esperança é que existem pessoas como você que, com atitudes, alegria natural e coragem para serem boas, povoam o mundo de um senso de urgência contra essas coisas absurdas, que resultam em um freio, um grito de basta; que resulta nos movimentos pacifistas; nas buscas por maior tolerância; nas expressões mais vivas de respeito e solidariedade entre os diferentes/iguais.
Acho que a canção Lili Marlene também refletia essa face da humanidade. Nasceu e cresceu em tempos de guerra. Antibelicista, não se banhava nas lavas que jorram dos combates. Pelo contrário, mesmo imersa em universo turbulento, nutria-se da serenidade que existe no universo humano. Dessa serenidade com a qual banhava a alma da humanidade em tempestade.
Se Montaigne estava certo, naquele momento, Lili Marlene fazia às vezes de Filosofia.
"O ofício da Filosofia é serenar as tempestades da alma", Montaigne dizia. abs

Luiz Felipe

Fernando Jorge disse...

Boa noite a todos.
Estou abismado! É de longe o melhor levantamento que li sobre “Lili Marleen” em língua portuguesa, e sem dúvida um dos melhores de sempre. Os meus sinceros parabéns! O exemplo desta canção é uma prova flagrante de como a arte É e deve ser transparente a qualquer conflito, mesmo ao maior e mais hediondo de que há memória. Uma canção como esta pode muito bem ser a mais bela homenagem rendida globalmente a 60 milhões de mortos em nome da ganância da Humanidade. Afinal, foi uma canção de Amor que ganhou a guerra, e ainda bem…
O meu bem-haja. É algo absolutamente brilhante.