José Augusto de Castro e Costa
Entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1903 chovera incessantemente em Puerto Alonso e suas adjacências.
A noite do sétimo dia de combate chegara triste e úmida, povoada de pressentimentos, de inumeráveis enigmas e estranhas incertezas que rondavam sobretudo os bolivianos. Bem espaçadamente fazia-se ouvir algum tiro brasileiro sacudindo o cochilo boliviano e alertando as sentinelas quase imobilizadas, pelo vento cortante vindo da mata.
Por volta de meia-noite, após uma estiada de pouquíssimas horas, a escuridão começara a ser clareada por frequentes relâmpagos e a expectativa sobressaltada por rimbombantes trovões, prenunciando o temporal que se esboçaria na ventania desenfreada.
Os acreanos passaram a lançar sobre o acampamento boliviano flechas com estopas ensopadas de querosene que, iluminando o espaço, iam levar uma variedade de incêndios à resistência inimiga.
Os tiros, espaçados antes da chuva, passaram a cruzar-se por todos os lados, fazendo-se troar o canhão, intermitentemente, madrugada adentro, para, quase ao alvorecer, cessar a tempestade instantaneamente, extinguindo-se também o tiroteio, sob o manto silencioso da neblina.
O ruído que apresentara-se era o dos coveiros cavando valas, num bater de pás e picaretas, para enterrar seus companheiros mortos, ao amanhecer brumoso do dia 23 de janeiro de 1903.
Aos poucos uma luminosidade azulada ia translucidando o céu sobre Porto Acre, em busca de uma limpidez anilada, quando os brasileiros divisaram o branco de uma bandeira subindo trêmula no mastro fixado no alto da Delegação Nacional da Bolívia, na margem oposta.
Plácido de Castro ordenara o cessar fogo e, ao lado dos companheiros, procurara entender o que lhes acenavam, do outro lado do rio, aos brados, os bolivianos. As palavras curtas e incisivas, não chegaram a ser entendias com clareza porém, em vista da movimentação de dois estrangeiros numa canoa, procurando atravessar empunhando uma bandeira branca, o Caudilho deduzira tratar-se de uma rendição honrosa.
Era engano, pois a autoridade boliviana viera aos brasileiros com a simulada intenção de pedir trégua para enterrarem seus mortos, que somavam grande quantidade, segundo informações.
O comandante acreano, todavia, pressentira o pretexto e, ao suspeitar de algo além da justificativa, respondera ao boliviano que, no momento, estavam discutindo a sorte dos vivos. Mais tarde tratariam dos mortos, porque eles não ficariam insepultos, por muito tempo.
A suspeita do Caudilho, em verdade, teria fundamento, de vez que seu comando de guerra situara-se em um alvo bem acessível às balas inimigas, apesar de sua tropa manter-se oculta, cercada por um sem-número de bananeiras que serviam de tapumes.
Plácido, porém, percebera que o boliviano interlocutor, no momento em que ali estivera, aproveitara para examinar atentamente o local e pousara o olhar insistentemente nas trincheiras acreanas. Em assim sendo, melhor seria dali retirar seu acampamento para outro local mais seguro, o que fizera sem pestanejar.
Reiniciado o tiroteio, de maneira tão intensa quanto no primeiro dia, os brasileiros observaram que a zona mais varrida a bala fora justamente a das bananeiras, onde estavam entrincheirados antes. O pipocar ensurdecedor dos tiros prolongara-se por todo o dia, propagando-se pela noite adentro, sem interrupção.
As tropas de Plácido lançaram-se a conquistar o terreno por todos os flancos, chegando a cerca de cinquenta metros do inimigo, prestes a partir para o corpo a corpo e sair no tapa, quando a “peixeira” certamente entraria em ação. E boliviano não é muito chegado a faca, da qual foge, como o diabo foge da cruz.
Ao amanhecer o dia 24 de janeiro de 1903, novamente os bolivianos hastearam a bandeira branca e pediram momentâneo descanso.
Trégua consentida, aproximara-se outra vez Dom Moysés Santivañez, desta vez, em nome do delegado do governo boliviano, para propor a capitulação, ao que Plácido respondeu que somente aceitaria sob primordial condição: a retirada imediata total dos bolivianos de toda a região acreana.
Instantes depois viera ao acampamento brasileiro Dom Lino Romero, delegado boliviano, que declarara aceitar, indiscutivelmente, qualquer condição proposta pelo Caudilho e oferecendo-se para assinar a Ata de Capitulação no local que os revolucionários indicassem, tendo sido escolhida a trincheira principal de Puerto Alonso.
Após transmitir as ordens de alerta aos seus comandados, Plácido, levando consigo apenas o corneteiro, acompanhou Dom Lino Romero de volta até às trincheiras bolivianas, onde fora apresentado aos oficiais superiores, quando destacara-se a espirituosa concepção do coronel Ruiz: "- Pero usted és mui joven”! O Caudilho, então, que há um mês completara 29 anos, respondera, com urbanidade, que “é a idade mais adequada às aventuras da guerra”.
O próprio Plácido lavrara a Ata de Capitulação em português, enquanto Dom Moysés Santivañez providenciara a respectiva versão para o espanhol e a passara ao delegado boliviano e demais superiores hierárquicos, para as devidas assinaturas.
Mais tarde, formada toda a força boliviana ante ao exército acreano, procedera-se a entrega das armas, a começar pelos oficiais superiores, tendo Plácido de Castro salientado que “o ideal era a emancipação do Acre e que a cerimônia da entrega da espada do vencido, conquanto fosse um ato muito apetecido pelos grandes exércitos, não o confortara o coração, por ser um ato que aumentaria o infortúnio daqueles já infortunados pela derrota”.
Ao cair da noite de 24 de janeiro de 1903, o navio “Independência”, já descarregado das borrachas, depois transformadas em balsas, amarradas umas às outras, como de costume, tinha a bordo todos os bolivianos prisioneiros, que seriam levados sob a escolta dos brasileiros até a cidade de Manaus.
A 26 de janeiro, Plácido de Castro, após ser aclamado governador do Acre pelo Dr. Baptista de Moraes, em nome de todos os oficiais combatentes da revolução e dos civis presentes, passara a organizar o governo com três ministérios, dos quais, dois – o da Guerra e o da Justiça – seriam acumulados pelo próprio governante e o da Fazenda, pelo coronel Rodrigo de Carvalho, que já possuía prática de assuntos aduaneiros.
Através do primeiro decreto fora adotada a língua portuguesa, como o idioma oficial do Estado do Acre, e reconhecidas as propriedades e posses de terras ocupadas.
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* José Augusto de Castro e Costa é cronista e poeta acreano. Mora em Brasília e escreve o Blog FELICIDACRE.
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