terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

SAMBA, ORAÇÃO E RECONHECIMENTO PATERNAL

Leila Jalul

Aos sábados, no casarão do Bairro da Imaculada Conceição, as portas são abertas após as 20h. A batucada e a cantoria, porém, só têm início após a chegada de Frei Beto, pároco da Igreja de Sant’Ana. É que o frei, além de bom pastor,dedilha um teclado como ninguém. Filho de mãe solteira e criado num seminário de orientação Franciscana, Frei Beto fez daquela família, a família que sempre quis ter.

A casa principal é ocupada por Silas Cordeiro e Dona Tereza, pais dos seis meninos e das cinco meninas que habitam em pequenas vivendas nos fundos do grande quintal, com seus respectivos filhos, esposos e esposas.

Ao centro, de bom tamanho e separando a casa principal das moradas dos filhos, um grande e confortável barracão coberto de telha colonial é dividido entre todos e usado como cozinha comunitária, salão de encontro nas noites de pagode, festas do Divino e aniversários, além de funcionar como cassino do jogo de truco e capela para a realização de missas e novenas. O bom aproveitamento do espaço é de fazer inveja. Nunca está ocioso, a bem da verdade. 

O velho Silas, até o ano de 2006, teve saúde pra dar e vender. Em 2007, numa pescaria de rio, foi ferrado por uma arraia e, por infelicidade, nunca mais teve a mesma saúde. O bom humor e o gosto pelas festas religiosas e profanas não foi abalado. Não mais aguenta varar sempre as madrugadas, mas ... Não foge da raia e da boa prosa. Uma cadeira de junco de enorme espaldar e fofas almofadas lhe serve de trono. Sentado ali, tocando seu cavaquinho ou desfiando o seu terço de grandes contas, mais parece um rei negro. E ele é um rei. O rei do pedaço! 

O dia do aniversário de 15 anos da primeira neta, agora neste janeiro, aconteceu um imprevisto. Um quase imprevisto, para melhor dizer. O dia foi por demais movimentado no barracão. Os fogões não foram desligados um só minuto e, deles, saíram bolos e salgados de todos os tipos e qualidades. A turma da decoração, por sua vez, entupiu o teto e as colunas com grandes balões rosa e verdes, as cores da escola preferida de toda a família - a Mangueira, que também foi de Dona Zica, de Cartola e de dona Neuma.

Dona Tereza, ou Terezona, como é chamada, cuidou do altar e da arrumação dos instrumentos do pagode. Terezinha, a mãe da aniversariante, ficou livre para a sessão de embelezamento dela e da menina Maria Lúcia. Tudo quase que cronometrado e sem falhas. Silas, por conta da perna inchada, somente pôde ajudar com palpites e reclamações. No que foi atendido. Quem ousaria contrariar o grande chefe da tribo?
Às seis da tarde, com pontualidade inglesa, chegou Frei Beto que, logo, deu início à Santa Missa. No lugar do sermão, pois que não era dia, fez um belo discurso sobre a beleza do ser jovem e pertencer a uma família de valores morais irrepreensíveis.

Durante a comunhão, puxada por Dona Terezona, a turma ajoelhou-se em volta do trono do patriarca para receber o corpo de Cristo em forma de pão. Um momento inesquecível para os que presenciaram a partilha, concebida na acepção maior da palavra.

Entre as sete e oito da noite, circulando em volta da grande mesa, passou-se à degustação dos petiscos, finalizando, assim, a primeira parte da festa. O canto do parabéns já foi em compasso de pagode. E daí emendou, começando com a música preferida do vô Silas, que é de autoria do Martinho da Vila. “Madalena, Madalena / você é meu bem querer / eu vou contar pra todo mundo / vou contar pra todo mundo / que eu só quero você”. Segundo Silas, pelo seu gosto, o nome deste samba deveriaser Terezona.

Um dos convidados, o outro avô da aniversariante, ao despedir-se da festa foi, antes, abraçar o velho amigo. E, durante o abraço, notou que ele estava muito gelado e com as mãos bastante trêmulas, motivo suficiente para chamar Joel num cantinho e avisar o percebido. Talvez fosse apenas emoção, mas, pensou, com a idade não se brinca.

De imediato, já com o estetoscópio e o esfigmo nas mãos, o filho médico tratou de ver a pressão arterial e os batimentos cardíacos do pai. Aferida e conferida, o ponteiro marcava 8 x 4. Baixíssima! Tanto quanto os batimentos cardíacos, também em pancadas lerdas. Sua obrigação de médico era conduzir o pai até ao Hospital Pio XII e acionar o cardiologista.

Terezona, em vista disso, quis encerrar a reunião. Perguntou aSilas se desejava que o acompanhasse até o hospital. A negativa veio de pronto e em tom de firmeza.

Preferiu ser acompanhado por Joel e por Frei Beto.

Saíram, então, deixando Terezona com a obrigação de tocar a festa como se nada estivesse acontecendo. Joel concordou com Silas. A ida ao hospital seria apenas uma medida preventiva, porém necessária.

- Fica tranquila, mãe! Já voltamos. Será um pé lá e outro cá.

Frei Beto, cheio de orgulho por ter sido escolhido acompanhante, também acalmou a matrona.

- Ei, Dona Tereza, quem anda com Deus não tem medo de assombração. Não deixe a peteca cair! Deus não abandona os seus filhos. Nunca!

A festa não parou. João Negreiros assumiu o teclado e Terezinha o pandeiro. Nada que se comparasse a Frei Beto e a Joel, mas... Quebraram o galho, ora pois!

Em menos de uma hora, com a pressão equilibrada e os batimentos cardíacos saltitantes no peito, chegaram Silas e seus dois anjos. A festa aumentou de volume quando Marien, esposa de Joel, puxou outro samba da preferência do sogro, que é de autoria de Paulinho da Viola.

Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida 

Se um dia
Meu coração for consultado
Para saber se andou errado
Será difícil negar 
Meu coração
Tem mania de amor
Amor não é fácil de achar
A marca dos meus desenganos
Ficou, ficou
Só um amor pode apagar
A marca dos meus desenganos
Ficou, ficou
Só um amor pode apagar... 
Porém! Ai porém!
Há um caso diferente
Que marcou num breve tempo
Meu coração para sempre
Era dia de Carnaval
Carregava uma tristeza
Não pensava em novo amor
Quando alguém
Que não me lembro anunciou
Portela, Portela
O samba trazendo alvorada
Meu coração conquistou... 
Ah! Minha Portela!
Quando vi você passar
Senti meu coração apressado
Todo o meu corpo tomado
Minha alegria voltar
Não posso definir
Aquele azul
Não era do céu
Nem era do mar
Foi um rio
Que passou em minha vida
E meu coração se deixou levar
Foi um rio
Que passou em minha vida
E meu coração se deixou levar
Foi um rio
Que passou em minha vida
E meu coração se deixou levar! 
Silas voltou alegre. Ensaiou uns passinhos e, após sentar-se em seu trono de rei negro, chamou Terezona e pediu que parassem os instrumentos. Precisava fazer uma confissão do interesse de todos. Seria rápido, avisou. E então, ladeado pela esposa, filhos, genros, noras, netos e por Frei Beto, fez a tal confissão. Quase lacônica, por sinal. 

- Tereza, minha esposa; amada família: Frei Beto é meu filho com uma moça que conheci antes de casar. Frei Beto é irmão de vocês e, embora já faça parte da nossa vida, vou reconhecê-lo como manda a lei. Espero a compreensão de todos. Tragam meu cavaquinhoe vamos cantar!

Ao amanhecer do dia, em abraço coletivo, rezaram um Pai Nosso. Quem puxou a oração foi Joel. Frei Beto estava caindo de bêbado e rindo que nem pinto na bosta.

Hoje, entre as crianças, o religioso filho de Silas Cordeiro não é mais Frei Beto. É tio Frei Bebeto. Nas cantorias, entre os irmãos, é conhecido e tratado como Mano Beto do teclado. 

A cadeira de junco com grandes e fofas almofadas, até agora e pelo tempo que Deus permitir, serve e servirá de trono para o rei negro Silas Cordeiro, que não perde a pose de patriarca e ilustre chefe de uma família que reza e canta samba com singular alegria.

Um comentário:

Anônimo disse...

Obrigada, Isaac!
Olhe, eu acho que o velho Silas ficou com medo de morrer sem reconhecer o Frei Beto, sabia?
Frei deixou de ser frei. Está casado com uma das filhas de Maria da sua paróquia. Agora é pai de um lindo moleque, a quem deu o nome de Silas Neto.
Este conto é uma quase verdade.
Grande abraço.
Leila