quinta-feira, 14 de março de 2013

O DIREITO À PREGUIÇA

Isaac Melo



A moral do trabalho é uma moral de escravos, e o mundo moderno não precisa da escravidão. O pensamento é de Bertrand Russell (1872-1970), importante filósofo, matemático e lógico do século XX. Russell, ganhador do Nobel de Literatura de 1950, escreveu um interessante ensaio intitulado Elogio ao Ócio, em que discute a questão do trabalho e o lugar do lazer ao longo da história. Grande parte das pessoas foi criada dentro de uma mentalidade (cristã, principalmente) em que o trabalho é o principal apanágio dos homens virtuosos: “o trabalho dignifica o homem”, quando na verdade é o ser humano que dignifica o trabalho. Não há espaço para preguiçosos, indolentes. “Deus ajuda quem cedo madruga”, versa o ditador popular. Na religião, a preguiça sempre foi considerada um pecado, capital, inclusive, e as crianças desde cedo são ensinadas “que Deus não quer preguiçoso em sua obra”. Nem a literatura se livrou do estereótipo, vede Monteiro Lobato e seu Jeca Tatu.

A sociedade contemporânea, a qual estamos imersos, essencialmente mercadista, presta culto, sobretudo, à eficiência, ao lucro, e à técnica. A onda da vez são os cursos técnicos, a praticidade, onde, na metófora de “Tempos Modernos”, de Chaplin, não interessa saber como, por que e para que as coisas são feitas. O que interessa é saber enroscar o parafuso. A ética que rege tudo é a ética de mercado. Quem não consome, some. Até o lazer se tornou produto, mais um negócio. O negotium surgiu, grosso modo, como uma contraposição ao ócio: do latim, nec (não), e otium (ócio, descanso, recreação), literalmente, não ócio.

Para Russell, muitos malefícios estão sendo causados no mundo moderno pela crença na virtude do trabalho, e pela convicção de que o caminho da felicidade e da prosperidade está na redução organizada do trabalho. Em tese, tal redução poderia ser alcançada com o advento da técnica, pois possibilitaria que o lazer, dentro de certos limites deixasse de ser uma prerrogativa de minorias privilegiadas e se tornasse um direito a ser distribuído de maneira equânime por toda a coletividade.

A ideia de Russell é que cada um tenha a possibilidade e o direito ao lazer, uma vez que o lazer de uns poucos só era possível devido ao trabalho da maioria. Segundo ele, com o advento da técnica moderna, seria possível a justa distribuição do lazer sem nenhum prejuízo para a civilização. A técnica estaria a serviço do homem, não o homem a serviço e escravo da técnica. Assim, por meio da organização científica da produção, uma pequena parte da capacidade de trabalho do mundo moderno seria suficiente para que a população desfrutasse um nível de conforto satisfatório. Ele exemplifica com a seguinte suposição: uma certa quantidade de pessoas está empregada na fabricação de alfinetes. Eles produzem todos os alfinetes de que o mundo necessita, trabalhando oito horas por dia. Então surge um evento com o qual as mesmas pessoas podem produzir o dobro da quantidade de alfinetes que produziam antes. Mas o mundo não precisa de duas vezes mais alfinetes: eles já são tão baratos que dificilmente se comprarão mais alfinetes por causa da baixa dos preços.

Num estado sensato, afirma Russell, todas as pessoas envolvidas na produção de alfinetes passariam a trabalhar quatro horas por dia, em vez de oito, e tudo mais continuaria como dantes. Mas, no mundo em que vivemos, isto seria considerado uma desmoralização. Permanece a jornada de oito horas, sobram alfinetes, alguns empregadores vão à falência e metade dos homens antes alocados na fabricação de alfinetes perde seu emprego. No final, a quantidade de lazer é a mesma de antes, porém, enquanto metade das pessoas está totalmente ociosa, a outra metade é submetida ao sobretrabalho.

O lazer sempre foi uma prerrogativa dos ricos. A ideia de que os pobres devem ter direito ao lazer sempre chocou os ricos, afirma Russell. Foi assim na Inglaterra do século XIX, onde a jornada de trabalho era de quinze horas para um homem adulto e 12 para crianças.  Quando foram afirmar que a jornada era longa demais, foi-lhes dito que o trabalho mantinha os adultos longe da bebida e as crinças afastadas do crime. Para o matemático, hoje em dia as pessoas são menos francas para crerem nisso, mas o sentimento persiste, e é fonte de boa parte de nossa confusão econômica.

De acordo com Russell, não há mais motivo pelo qual a maioria da população deva sofrer a privação de lazer; só um ascetismo tolo faz com que se continue a insistir no excesso do trabalho quando não há mais necessidade. Ideia que converge para aquilo que Hannah Arendt, em Responsabilidade e Julgamento, havia afirmado: “Hoje é quase universalmente aceito que devemos fazer carros para manter empregos, e não para transportar as pessoas.” (2004, p.343) Para o autor, não se empenha nem um pouco na realização da justiça econômica, de modo que a maior parte do produto total fica nas mãos de uma minoria, boa parte da qual simplesmente não trabalha. Devido à total ausência de controle central sobre a produção, se produz uma imensa quantidade de coisas de que não se precisa.

Russell entende que movimentar a matéria em quantidades necessárias à nossa existência nunca foi um dos objetivos da vida humana. Nesse sentido, fomos enganados por dois motivos. Um é a necessidade de manter os pobres aplacados, o que levou os ricos a pregarem, durante milhares de anos, a dignidade do trabalho, enquanto tratavam de se manter indignos a respeito do mesmo assunto. O outro são os novos prazeres do maquinismo, isto é, a tecnologia, que nos delicia com as espantosas transformações que podemos produzir sobre a superfície da Terra.

Quanto ao culto da eficiência, esse foi responsável pela inibição da antiga propensão para a despreocupação e o divertimento. O homem moderno, explica Russell, acha que qualquer atividade deve ser exercida em prol de outras coisas, nunca da coisa mesma. Produz-se música, por exemplo, não pelo prazer que proporciona à pessoa, à alma, mas para atender a necessidade de mercado. Tudo se tornou produto de mercado, transável. Assim, atividade boa passou a ser aquela que produz lucro, o que para Russell constitui uma completa inversão da ordem das coisas.

De acordo com o matemático, quatro horas diárias de trabalho deveriam ser suficientes. Isso daria às pessoas o direito de satisfazer as necessidades básicas e os confortos elementares da vida, e o resto de seu tempo poderia ser usado da maneira que lhes parecesse mais adequada. É claro que Russell fala de se usar o lazer de maneira inteligente, o que não que dizer que se trata de atividades supostamente “intelectualizadas”. O ócio, em si, permitiu muito avanço, sobretudo nas áreas humanas. No passado, comenta o autor, a classe ociosa desfrutava vantagens que não tinham qualquer fundamento na justiça social, o que a tornou opressora; mas não a impediu de ter contribuído para quase tudo que hoje chamamos de civilização: cultivou as artes e descobriu as ciências, escreveu os livros, inventou as filosofias e aperfeiçoou as relações sociais. Mesmo a libertação dos opromidos foi geralmente iniciada a partir de cima. Sem a classe ociosa, portanto, dos que podiam pensar, a humanidade nunca teria emergido da barbárie, completa Russell. Mas, por outro lado, o método da hereditariedade de uma classe ociosa que não possuía qualquer obrigação gerou, no entanto, um extraordinário desperdício. Não aprendeu a ser diligente e não primava pelo brilho intelectual. Foi capaz de produzir um Darwin, mas a este se opunham dezenas de milhares de proprietários rurais que jamais pensaram em coisas mais inteligentes do que caçar raposas e punir invasores de propriedade.

Na atualidade, percebe-se que grande parte das pessoas não sente prazer naquilo que faz. Para muitos, o trabalho se tornou um fardo. De um lado, certa insatisfação, de outro, salários baixos, sobretudo, aos de pouca escolaridade. O trabalho consome-lhes todo o tempo. A educação dos filhos fica relegada à escola, e o lazer, à passividade da televisão. Por isso, Russell acreditava numa reorganização da função social do trabalho, para que houvesse felicidade e alegria de viver, em vez de nervos em frangalhos, fadiga e má digestão. Dessa forma, homens e mulheres comuns, tendo chance de viverem vidas felizes, se tornarão mais afáveis, menos persecutórios e menos propensos a olhar os outros com desconfiança.

O modo como o trabalho hoje permanece organizado tolhe praticamente a possibilidade das pessoas se voltarem para si, cultivarem-se. Daí a importância do ócio defendido por Russell, um tempo para a reflexão, para o cultivo do conhecimento “inútil”. A crítica do autor, é que o conhecimento está deixando de ser visto como um bem em si mesmo ou como um meio de se criar uma perspectiva de vida humana e abrangente para se transformar em mero ingrediente da aptidão técnica. Não temos, portanto, tempo mental para adquirir outros conhecimentos além daqueles que hão de nos ajudar na luta pelas coisas que consideramos importantes. Assim, o conhecimento que se adquire tem em vista desenvolver melhor o trabalho que realizamos, e não o aperfeiçoamento do ser humano em si. Daí a crescente valorização do conhecimento técnico atual.

O avanço da tecnologia, em tese, permitiria ao ser humano mais tempo para o ócio. Mas não foi o que aconteceu. Os modernos métodos de produção tornaram possíveis a segurança e o bem-estar para uma parcela maior de pessoas, mas, apesar disso, explica Russell, continuamos preferindo o sobretrabalho para alguns e a penúria para os demais. A “libertação” que a técnica traria da sobrecarga humana de trabalho se converteu em outro tipo de escravidão, ainda mais forte. Russell não pretende uma sociedade de vagabundos, onde a preguiça seja um valor norteador. O direito à preguiça, não é o direito a ser preguiçoso. Mas, que a cada um seja assegurado o direito a ter preguiça, a desfrutar do ócio, assim como a ter trabalho, apesar que não nos agrada pensar que alguém possa gozar a vida preguiçosamente, por mais culta que seja a qualidade desse gozo.

O ócio defendido por Russell é para permitir às pessoas um refinamento mental, o que não tem nada a ver com capacidades intelectuais. Não porque o refinamento mental, esclarece o filósofo, produza sentimentos humanitários positivos, ainda que possa fazê-lo, mas porque cria outros interesses que não o de maltratar o próximo e fontes de auto-estima que prescindem da afirmação de dominação. Pode-se afirmar que se trata de momento para auto-humanizar-se. Por isso a importância do conhecimento “inútil”, pois incentivaria a atividade mental contemplativa. Entenda por “conhecimento inútil” como tudo aquilo que tem um fim em si mesmo, como a contemplação de uma obra de arte, o deleite de uma música, a leitura de um livro, o admirar um pôr do sol, em contraposição ao chamado conhecimento “útil”, isto é, aquele que se pode aplicar a algum setor da vida econômica da coletividade, muito em voga nos tempos hodiernos.

No entanto, Russell critica a própria forma como atualmente o ócio tem sido concebido, onde as diversões das modernas populações urbanas se apresentam cada vez mais passivas e coletivas, consistindo na observação inativa das habilidades dos outros. Viramos expectadores: da tv, do futebol, da política, etc. O restante fica por conta da internet e dos games, na “interatividade” do mundo virtual.

O filósofo, que deteve uma grande autoridade moral em vida, sempre foi uma referência por seus ideais humanitários e pela defesa da liberdade de pensamento: “o mundo de hoje está cheio de grupos egocêntricos e radicais, incapazes de ver a vida humana como totalidade, e muitos mais dispostos a destruir a civilização do que ceder um milímetro sequer em suas posições.” Num tempo de tantas liberalidades, como o nosso, ironicamente, ainda se observa prevalecer um enrijecimento de mentalidades, com atitudes extremistas e mesmo fanáticas. E a “crise civilizatória” de que se fala por aí não é nada mais do que a estreiteza de pensamento, inclusive a estreiteza do que é ser humano, cada vez mais distanciado de sua totalidade. Somos absorvidos pelo mundo mercadista, que, com seus tentáculos propagandistas, nos leva aos shoppings para comprar a felicidade à prestação.

Por minha vez, ainda prefiro a companhia dos livros e uma “rede preguiçosa pra deitar”, e, assim, poder dizer com Juvenal Antunes: “Bendita sejas tu, Preguiça amada, / Que não consentes que eu me ocupe em nada!”; ou como versejou Mário Quintana: “A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, jamais teria inventado a roda.” Temos sido tolos, mas não há razão para sermos tolos para sempre. O alerta é Bertrand Russell, mas a opção é nossa.


REFERÊNCIAS
RUSSELL, Bertrand. O Elogio ao Ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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