segunda-feira, 23 de novembro de 2015

PAULO JACOB: CHUVA BRANCA

Primeiro capítulo de «Chuva branca» (Rio de Janeiro, Ed. Nórdica, 1981. 2ª ed.)


É sempre esse rio rolando, cheias, vazantes. O barro carregado nas águas, amarelas. Pedaços de paus, tronqueiras, galhadas, matupás, canaranas membecas, murerus, correndo na correnteza, rodopiando nos remansos, nas enseadas. Menino ainda, aqui mesmo, nessa vida, mão no remo, puxando bons surubins, dos pintados, caparari. Dando adjutório no roçado, os pais ai, carregando maniva no jamaxi, basculho, roçando, limpando o terreiro. Desde menino a mesma vida, apertura que nem hoje. Tinha companheiro, nos quatro anos por ai assim. Brincadeira, era olhar o rio, jogar aninga pra jacaré, o bicho alvoriçado, a boca trancada. Agarrar urubu no anzol, arpoar boto, gostar da arrancada do bicho arrastando a igarité. Andar nos lagos, armar irapuca, apanhar rolinha, trucau, inambu. Flechar peixe, nadar quando maior. Contar vantagem de marisco, de casco bom pra furar lago, de canoa ronceira. Madeira para isso e para aquilo. Trepar nas árvores, tirar frutas, não por brincadeira, fome isto sim. Zé Pretinho também mariscava, pegava mas era só mandi. Menino entanguido, dois dentes faltando na frente, cara amargosa, empambado. Um dia o jacaré jogou o rabo no cedro, aparou o bichinho na boca. Lã se foi o companheiro. Bubuiou o sangue, a água era vermelha. A água era vermelha, cor de miséria, assim magino sempre. Na baixa das águas, pedaços de ossos se viu, branquinhos como garça. A mãe ajeitou a ossada, enterrou no aceiro da casa. Senti a ausência, mais do sangue lembrava, o tempo esqueceu. Se curumim, assinzinho, maior por dizer nada, morre por coisa pouca. Derréia, secando, o corpo descaindo, é vê cara de macaco. Afogado, defluxo, febre, desaparecido sem como se saiba. Muitas dessas. Nas cheias, a mata afogada na água. É secar, fica o barreiro na beira. Vem o sol tosta tudo, raxa. A terra é frestada e quente, esfumaça no sol. Aquela distância de lavrado, igual terreiro varrido, duro, escaldando. Primeiros dias. Azulando aos poucos, depois, o que a vista der é verde fechado. Só miséria, cor de sangue. Não fosse o lago, no tempo de carestia. .. Despensa do pessoal todo por aqui, vizinhança. Do que digo vizinhos, uma barraca aqui outra acolá naquela lonjura, curva de rio, lago, igarapé. Barro amarelo, ruim, ingrato, pobre também. Ingrato é, só dá mais é malícia, matapasto. Farinha, alguns alqueires, e só. Tentar aproveitar o eito, vá rasgar a terra, macaxeira mirrada, outra quadra a trabalhar. Esta não dá mais, cansou. Terra firme é pobre. Nessa nesga de varge, coisinha melhor. Lavada nas grandes águas, fartura se vê no plantio. É tudo assim. A mata aí confronto ao aceiro, comendo o terreiro, a capoeira engrossando. A barraca distiorada, o mato chegando perto. Telhado aberto que só renda, as estrelas entrando pela cumeeira. Respinga, mas chuva mesmo é quase um nada. Serena, sem molhar. O caminho do porto, fundo, roçado, furado de pés de tantos anos. Mulher, dois filhos, só na necessidade. Nascidos ao Deus dará, servindo de parteira à mulher. Mais o Tiririca, ossudo, pirento, cachorro bom. Alarma tudo, avisa até calango passando no terreiro. Com a onça arrepia, gane, rosna, late mas não enfrenta. É olhar um lado vê matinha de varge, ligada a matão fechado. O descampado é roça, farinha pelo menos. Chá, café às vezes, e beiju. Fome, chuva miúda, tristeza de inverno. Miséria tem cor de sangue. Deveras! Pode até ser, dar de esbarro com a anta. Rasto fresquinho vi dias passados, cortando o varadouro da terra firme. Avezou-se a comer piolhos do buriti. Não custa tentar. Até quem sabe Luís Chato. Dias sem nada em casa, na farinha com água. A meninada pedindo comer, o pessoal na fraqueza. Diabo de inverno, chuveiro danado, dificultando peixe. As águas tomando as restingas, avançando nas terras, os bichos metidos no igapó. Tem lá quem fisgue um esse que seja. Na fartura de comida lá pra eles, arisco em pegar anzol. Quando escasseia a despensa, a coisa não anda boa. Deveras, o melhor é vasculhar o vestígio da bicha, se voltou ao buritizal.

- Mulher vou ao mato, quem sabe se dá na sorte de pegar a anta.

O mais tardar à tardinha, volto. Saiu logo aí detrás do cagador cresce a mata alta, terra disconforme. Na comidia deve de estar, enquanto fruta cair não abandona. Duas ou três vezes vi rasto dela, vindo daquela direção. O rumo é este, beirando o igarapé até cruzar o primeiro afluente. Aquele do lado de lá, servindo de ponte o pau caído. Daí é centrar na terra alta, depois cortar pelo atalho da mãe-do-rio. No cuidado em centrar, com terras gerais ninguém brinca. O sol mal-a-mal dando sinal de claro de vir daquelas bandas. A ciência é não tirar vista da posição da picada. Tem outra melhor, mas muito pisada, um atoleiro dos infernos. Ainda assim é um bordejo, vai sair muito acima do buritizal comidia dela. Caminhada mais longa, arriscado espantar a bicha ao tomar chegada. Andando destabocado, distante de casa é coisa muita, pelo claro se vê. Mas deveras mesmo, o certo é especular as pegadas na travessia do varadouro, aqui ao lado. Eita! tou na sorte. Passou cedo por aqui. Terra molhada, pegada nova. Cala a boca, Luís Chato, o animal num de repente cisma, cai mata afora. Uma baitela fêmea, rasto aberto não engana. Maior que essa, só vi matar compadre Juvenal. Mas cuidado é que é, falando alto não vai prestar. E olhe só, aqui comeu a imbaúba, resina fresca escorrendo. Dessa vez, pego. Sustou seguida, rasgou o cacho do croatá. Assustou-se, cismou, que teria de havido? Afundou o pé no tijuco chega esparramou. Se anda corrida de onça, nem o diabo vai encontrar. Graças a Deus, como pensei não era, saiu devagar. Foi até ali, bordejou acolá, tomou direção naquela paragem mais entaniçada. É um fechado de cipó a atrapalhar qualquer um. Firmou caminhada nesse rumo. Com a ajuda de Deus, não passa de hoje. Começou a voltear, deve de estar deitada. Apitei, não respondeu. Andando sempre devagar, calcando leve o terreno. Ainda falsear o pé chato de merda, fez zoada. No calado, vai longe o estrupício. Se arisca, toma por outros lados. Amaciar o pé, o mais e mais. Tinha dito, dizia bem. Deitou-se, mas já se arriou de centro. Tomar reparo na cama. Fria, nem mosca por perto. Quando foi lã isso que deitou. É andar, andar, bicha danada pra rasgar mata.

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PAULO JACOB
Rogel Samuel

Sob vários aspectos, ele é o maior romancista da Amazônia.
Não é muito lido, conhecido, porque autor difícil, sofisticado.
Sua morte, no dia 7 de abril do ano passado, abre questão grave quanto à divulgação da cultura nacional brasileira.
Sua morte não chamou atenção.
Não se soube.
Eu mesmo, amazonense de Manaus, onde morava o escritor, não tive conhecimento.

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Vim a ouvir da boca de um chofer de táxi, em Manaus, no dia 18 de junho.
Dizia-me ele:
- ...Por ali , na rua onde morava aquele desembargador, que morreu no ano passado...
A rua, cujo nome não me ocorre, fica ao lado do Igarapé.
A casa, em frente ao igarapé, exibe a vocação de Paulo Jacob. Em Manaus, mas sempre voltado para a Floresta. Que ele conheceu bem, pois foi juiz em Canutama, no rio Purus, em 1952, e durante 10 anos viajou pelo Amazonas.
Até que, nos anos 60, foi promovido a desembargador do Tribunal de Justiça.

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Paulo Jacob escreveu muito. Muito. Cerca de 10 romances bem trabalhados.
Quase ganhou o maior prêmio nacional de literatura da sua época, o Walmap, em 1969, com «Dos ditos passados nos acercador do Cassianã», 2º lugar. Excelente livro, imenso, denso, 359 páginas de um tipo pequeno, corpo 10 (Rio de Janeiro, Bloch, 1969). 
O Walmap tinha juízes como Jorge Amado, Guimarães Rosa e Antônio Olinto.
Os três deram o 4º lugar para «Chuva branca», em 1967, um dos seus mais belos livros. Outro livro, «Vila rica das queimadas», título bem atual, ecológico, também ficou entre os finalistas do Walmap.  O título denuncia, como o livro: «O coração da mata, dos rios, dos igarapés e dos igapós morrendo», sobre o desmatamento. «Chãos de Maíconã» também «menção honrosa» do Concurso Walmap.

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Festejado foi pela crítica, Paulo Jacob.
Leila Miccolis o considera «o Guimarães Rosa da Amazônia».
Guimarães Rosa ficou entusiasmado com «Chuva branca».
Aguinaldo Silva diz que ele fez «o primeiro grande romance da Amazônia».
Assis Brasil compara «Chuva branca» a «Sagarana» de Rosa e a «The wild palms» de Willian Faulkner.

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Ler Paulo Jacob é dificuldade. Chega que ele, em «Chãos de Maíconã», anexou um vocabulário da língua ianoname, no fim do livro.
De um «Dicionário da língua popular da Amazônia» também ele é autor

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Paulo Jacob nasceu em 24 de fevereiro de 1921 e faleceu no dia 7 de abril de 2004. Escreveu ainda: Muralha verde (1964), Andirá (1965), Estirão de mundo (1979), A noite cobria o rio caminhando (1983), O gaiola tirante rumo do rio da borracha (1987), além dos citados acima.

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Em «Chuva branca», o personagem vai-se adentrando, vai-se assimilando na floresta, vai-se afastando da civilização, até que no fim parece que nem existiu - vira mito. No fim, na morte, ele tira a roupa, fica nu, perdido na mata, integrado nela, sabendo que vai morrer, perdido e integrado, no mitificado.

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«O gaiola tirante rumo do rio da borracha» narra a viagem de um navio, um gaiola, um barco a vapor, saindo de Belém até o outro lado da Amazônia, no rio Purus até subir o rio Iaco, onde o navio naufragou e ali se soube que o preço da borracha despencara, de quinze mil réis caiu para oito, pondo na falência todos os coronéis. O personagem é o Comandante Antonio Damasceno.

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Paulo Jacob foi professor universitário e Presidente do Tribunal de Justiça. Como Presidente de tribunal chegou a assumir o Governo do estado, em 1982. Sua morte deixa aberta a vaga de melhor romancista da região Norte.


Um comentário:

Ricardo Borges disse...

Acabei de ler Chuva Branca e foi um dos livros mais sensacionais que já me passou pelas mãos. Achei por acaso, com um senhor que vende livros na rua aqui em BH, e percebo que não encontro o livro em lugar nenhum da internet para comprar. É uma pena que seja um autor tão desconhecido.