CONCLUSÃO
“O que nos importa é
observar esse movimento entre o real da descoberta (sem-sentido), a fantasia
(imaginação), e a ideologia (imaginário), produzindo a realidade dessa história
que se está fazendo. E que produz o efeito de que a ideologia sempre está fora
da história (oficial). Por seu lado, essa história aproveita, do discurso
fundador, o fato de que nele há ainda uma indistinção entre imaginação,
imaginário e realidade”.
(ORLANDI, 1993, p. 18, grifo nosso).
O Acre é, acima de
tudo, a consagração do homem branco de nacionalidade brasileira em uma região
milenarmente marcada pela presença indígena. No entanto, o apoderamento físico
desse território foi precedido pelo assenhoreamento simbólico dele, uma vez
que, antes mesmo da colonização, os migrantes já imaginavam aquele “fim do
mundo” (JACKSON, 2011), como uma “terra de ninguém”, uma espécie de “deserto
ocidental” (COSTA, 2005).
A nosogenia acriana
foi inaugurada pelo apelo econômico do capital internacional em favor da
produção da borracha e pela violência imagética da negação da humanidade
indígena. O sangrento genocídio, o dramático culturicídio e tantas outras patologias
sociais protagonizados pelos “heróis patriotas” (Cf. CARNEIRO, 2015a), base da
árvore genealógica do povo acriano, foram invisibilizados pela historiografia
oficial. Infelizmente o excesso de “acrEanismo” provocado por políticas
simbólicas de governos com tendência ao autoritarismo populista tem afetado a
sanidade mental coletiva local. Até hoje parte dos acrianos sofrem com surtos
de megalomania e com delírios de grandeza, pois insistem em viver sob a égide
de um passado fantasiosamente glorioso.
Eu tive que aproximar
as minhas reflexões da linguística e utilizar o conceito de discurso fundador
para entender como um período tão violento e tão corrupto conseguiu
transmutar-se em uma espécie de Idade de Ouro da acrianidade. Por conta disso,
esse livro se preocupou mais em historicizar a emergência da verossimilhança do
que em descrever os fatos propriamente ditos. A verossimilhança é a imagem
através da qual as “vozes constituintes do discurso fundador” pintaram a cena
inaugural do Acre(ano). É a representação ideal dos acontecimentos, de como
deveriam ser imortalizados no imaginário social para posterior recordação.
Em resumo podemos
dizer que o discurso fundador do Acre tem as seguintes características: a)
estabelece um marco inaugural glorioso para o Acre(ano) – a “Revolução
Acriana”; b) sugere o culto ao passado por meio do eterno retorno às origens;
c) instaura o idealismo patriótico como motivação constituinte da “Revolução
Acriana”; d) consagra qualidades
heroicas para a primeira geração de acrianos; e) inventa uma comunhão em torno da
“Revolução”.
Até hoje o período
relativo à formação histórica do Acre(ano) é tratado como uma espécie de Idade
de Ouro, em que os paradigmas e os arquétipos da identidade acriana se
encontram em seu estado puro. É como se a ideia triunfalista da origem fosse
fiadora do otimismo presente e futuro. Esse atavismo acriano precisa ser
desintoxicado, pois a ideia de gênese defendida está “envenenada” com
“acrEanocentrismo”. No decorrer dessas linhas mostramos que a apoteose da
genealogia Acre(ana) foi o resultado de um processo de significação, qual seja,
o do “embelezamento” dos fatos. A nossa missão foi justamente denunciar o
caráter artificial desses sentidos enobrecedores, revelando o jogo de interesse
que estava por trás deles.
O fato de o caráter
“glorioso” da origem ser retratado nos documentos e textos jornalísticos da
época, não garante o caráter célebre da genealogia do Acre(ano). Isso porque o
discurso enobrecedor é explicado pelas condições históricas e linguísticas que
permitiram a emergência dele. Consequentemente, a representação beatificada do Acre(ano) tem uma
história e está eivada de “violência simbólica” e de relações de poder. A
manutenção dela é puramente convencional. O gentílico “acrEano”, por exemplo,
foi inventado com o propósito de causar certa união entre os “brasileiros do
Acre” em torno da causa latifundiária dos seringalistas e da demanda fiscal do
governo do Amazonas.
Essa disposição à
heroificação do passado demonstra o conservadorismo das elites acrianas,
afinal, a evocação ao heroísmo se torna uma necessidade social quando se trata
de uma sociedade constituída de covardes (Cf. MICELI, 1994), e “quanto mais
fracos os homens numa sociedade, tanto mais eles precisam de super-heróis. E
tanto mais super-heróis eles recebem para se manterem fracos” (KOTHE, 1985, p.
72). E tudo isso não deve servir de espanto, pois a retórica da identidade é
sempre mais proferida naqueles povos em que a união é mais frágil.
O debate sobre o
discurso fundador do Acre(ano) está apenas começando. Há um longo caminho a ser
percorrido para que essa categoria de análise seja consolidada nos estudos
historiográfico e linguístico regionais. Toda a pesquisa que resultou nesse
livro visou encontrar, nas “origens” do Acre(ano) fincadas pela historiografia
oficial, a formação do acriano enquanto subjetividade, e a do Acre enquanto
território brasileiro. No entanto, tais origens não foram encontradas, no lugar
delas o que se achou foi uma rede interminável de discursos.
O passado inaugural
glorioso, a identidade bem-aventurada e a anexação territorial epopeica, tudo,
não passam de discursos. E se esses discursos circulam até hoje com o status de verdade, é porque existe uma
política institucional para preservá-los como tal. Por isso, a história do
Acre, da forma como vem sendo escrita e ensinada, mais deseduca do que educa.
Ela não tem compromisso com o desenvolvimento do juízo crítico do cidadão
acriano, pelo contrário, a missão dela é produzir ufanismo, alienação e pacificação
social. Toda a glória desse passado imemorial pode ser resumida nisto:
discursos, uma rede interminável de discursos.
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