terça-feira, 4 de junho de 2013

Série HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU

CHICO BRASIL
 
José Augusto de Castro e Costa
 
 
Tudo que se escrever sobre o Acre, seja referente às pessoas, ou simplesmente à sua história, tem nascente enraizada no nordeste brasileiro.
 
A seca nordestina de 1877 não durou apenas três anos, ao contrário, prolonga-se até aos dias atuais, de maneira cada vez mais agravada.
 
A situação desesperada dos suplicados daquela época, forçaram milhares de nordestinos, sobretudo do interior cearense, a migrarem para outras localidades. Há relatos de episódios carregados de verdadeiro sofrimento, como o caso do naufrágio do navio Laura, ocorrido nas costas do Pará e dos flagelados recebidos com vaias e pedradas ao chegarem ao Maranhão.
 
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Após o Tratado de Petrópolis, quando a área em conflito, de aproximadamente 189.000 km², ficou, finalmente, sob a soberania nacional, muitos brasileiros embrenharam-se pela Amazônia, em busca, não apenas do látex encontrado no paraíso econômico, mas, também, por inexplicável atrativo, num ambiente estranho, em meio a culturas diversas, cediam aos seus espíritos aventureiros.
 
Mais ou menos na mesma época, vários jovens, após vencerem naturais oposições familiares, embarcaram rumo à imensidão amazônica, navegando num “céu d’água brutalmente enorme”, com destino ao Acre. Dessa forma, a região acreana, em razão do crescente aumento da produção da borracha, tornava-se a sina de muitos nordestinos.
 
Dentre eles, destacava-se Francisco Brasil, que ao chegar ao destino, procurou familiarizar-se ao cotidiano do lugar, ao modo de vida e aos costumes de seus habitantes para, em seguida, determinar-se a investir em um seringal.
 
Para tanto, refletira bem sobre sua condição de nordestino, acossado pela agressividade da seca e ainda levado pela ilusão do enriquecimento rápido com o extrativismo no Acre, não querida desperdiçar a oportunidade de trabalhar em terras da qual se dizia que “lá se juntava dinheiro até com ciscador”.
 
Seu Chico Brasil, natural do seu adorado Quixadá, então adquirira, por compra, o seringal Vila Nova e dedicara-se a esperar uma nova fase da borracha, o que de fato ocorreu nos anos da Segunda Guerra Mundial.
 
Naquela época o alto rio Acre contabilizava cerca de mais de um milhão de árvores de seringueira, das quais, 555.000 achavam-se em Xapuri.
 
O sensível e contínuo aumento da produção gomífera na região ampliava cada vez mais as estruturas de transporte de mercadorias, de passageiros e de escoamento dos produtos dos seringais que iam-se proliferando para outras localidades.
 
Assim, como seu Chico Brasil, muitos investiram no Acre, sempre observando um regulamento, onde lia-se:
 
“b) Trabalhar para se manter decentemente, porque, sendo os seringais um núcleo de trabalho, para onde se vai com a vontade exclusiva de ganhar dinheiro e consequentemente melhorar as condições de vida, só se pode adquirir o desejado com um trabalho firme e honroso”.
 
Seu Chico Brasil, como homem informado, era sabedor que os seringais rendiam muito e possuíam estrutura para tal, como o seringal Bom Destino, abaixo de Rio Branco, que possuía 1.500 estradas e o Iracema, que além de suas 1.605 estradas, produzira 549.384 quilos de borracha, anuais, segundo as estatísticas.
Lidar com a natureza dos seringais era um tanto quanto complicado, razão pela qual fazia-se necessário  tino administrativo  e  noções de atividades comerciais e contábeis, trato  com pessoal e mercadorias, elementos de destaque  na estrutura de um seringal, estrutura esta observada pela existência de dois grupos unidos pelo objetivo do ganho industrial e comercial, nas figuras  do patrão e do seringueiro.

Submetido a várias agruras, o seringueiro ainda era alvo de várias doenças, como impaludismo, beribéri, polinevrites e infecções intestinais, causadores de grande mortalidade.
Possuidor dos dotes referenciados, seu Chico Brasil estabeleceu-se em seu empreendimento e passou a enfrentar o cotidiano da vida ribeirinha, do amanhecer ao final do dia, da primeira refeição ao anoitecer, entre fiscalizações e contagens das pélas de borracha, anotações de sua produção e devido estoque, assim como a movimentação dos diversos artigos mercantis e das questões particulares.
 
Como proprietário, seu Chico Brasil sentiu, de saída, o impacto das dificuldades dos seringueiros envolvidos em débitos contínuos e praticamente insanáveis, numa verdadeira progressão geométrica.
 
A convivência com esse descompasso estabelecera, no espírito do jovem seringalista, humanista que era, uma crescente expectativa, em busca de uma solução bilateral, estendendo-se, por muitos anos, num misto de conforto e desconforto, de satisfação e desagrado, de alegria e mal-estar.
 
A forte intuição de seu Chico Brasil era tamanha que, ao examinar a progressão e queda do ciclo anterior e a sua rápida ascensão 30 anos depois, deduzira, pela lógica, que seria de bom alvitre passar adiante o Vila Nova, investir financeiramente em aplicações menos comprometedoras e empregar o tempo na atividade gerencial de outros seringais.
 
Casualmente, o primeiro seringal a gerenciar foi o Capatará, que teve Plácido de Castro como proprietário, passando daí a outros que ofereciam melhores propostas de gerenciamento, atividade que considerava proporcionar-lhe melhor proveito, em todos os sentidos.
 
Particularmente seu Chico Brasil era uma figura notável, simpática e acolhedora. Foi genitor, na companhia de dona Preta, de uma prole de onze filhos. Com a utilização de três letras pôs nome nos quatro primeiros filhos homens: Ruy, Ury, Yru e Ryu. Em seguida não se preocupou mais com essa particularidade, e vieram Roberto, Antonia, May, Ivo, Iso,  Ila e Isa.
 
Sua residência, em Rio Branco, à rua Marechal Deodoro, além de ampla e aprazível,  era cercada por um verdadeiro pomar, com espécimes de goiabeiras, cajueiros, mangueiras, laranjeiras, pitangueiras, jaqueiras, cajazeiras, ingazeiras, limoeiros, tangerineiras e outros pés de frutas, objetos de costumeiros sucos e doces,  preparados por dona Preta e  saboreados, inclusive, pelos peladeiros de rua, companheiros de seus filhos, nos finaizinhos  de tarde.
 
Gerenciando algum seringal, seu Chico Brasil vinha periodicamente a Rio Branco e, muito comunicativo, sempre tinha alguma história a contar, como a de que, certa tarde, ao verificar as plantas do jardim ao lado da horta, ouvira um leve chiado, que o fez voltar a cabeça, mas como nada viu, continuara a observação às roseiras. Chegou então, ao seu lado, um empregado do barracão, que, lentamente, arreou as duas latas d’água trazidas do rio, exclamando:
 
-- Uma cobra!
 
Bem às costas de seu Chico Brasil, achava-se uma enorme surucucu-pico-de-jaca, de mais de dois metros de comprimento. Ao ver a cobra enrodilhando-se e curvando o pescoço para trás, armando o bote, com a língua bífida a sair-lhe da boca, num desafio em linguagem muda e terrível, seu Chico pediu seu revólver e visou o fino pescoço erguido e, além, uma grossa volta do corpo da serpente, transpassando-os com a mesma bala, partindo-lhe em dois pontos a espinha dorsal. A cabeça pendeu inerte, com um filete de sangue a escorrer-lhe da boca, enquanto se entorcía o corpo nas convulsões da morte.
 
Aquele cearense já estava inteiramente adaptado à vida do seringal, porém, tempos depois a produção gomífera, que chegara a 94,4%, foi caindo para 10,98%, a seguir 2,3% e, em 1960, chegou a 0,43%.
 
Seu Chico Brasil resolveu, então aposentar-se e transferir-se com toda a família para São Paulo, onde viveu por mais alguns anos, cercado do carinho de  dona Preta, filhos, netos e bisnetos.
 
Por considerá-lo mais um intrépido brasileiro a regar com suor em solo acreano, frutos da dedicação do seu trabalho, perspicácia e inteligência, a vida de seu Chico Brasil é, por certo, uma história que o Acre escreveu.
 
 
* José Augusto de Castro e Costa é cronista acreano. Reside em Brasília. Neste blog, está escrevendo sua nova série intitulada HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU.
 
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