Aquela noite estava intensamente clara, não
pela claridade da lua que, cheia, deveria dar luz aos céus, mas pelo clarão dos
raios que a atravessavam imprimindo sua luz difusa na densa paisagem de nuvens
que choviam com fúria no seio da tempestade. Nos céus, reinavam os raios e o
troar dos seus trovões.
E foi sob a luz dos raios e sons de trovões
que os dois se viram pela primeira vez. Ambos tinham 25 anos. Um era nativo da
grande ilha que estava sendo invadida. O outro vinha de outra grande ilha e era
invasor. Um era anglo-saxão monge e cantor; o outro, viking, guerreiro e pagão.
Avistaram-se no salão do mosteiro de onde um às
pressas saia, e o outro, furtivo, entrava.
Ao verem-se...
Na verdade, Alfred, o monge, nem sabia muito
bem quem era. Ou de onde viera. Não
conhecera seus pais. Por isso não sabia que era filho de camponeses que haviam vivido do outro lado da ilha onde, no começo do mês de julho, nasceu. Sua mãe morreu poucos dias depois. Seu pai ainda tentou ficar mais tempo com ele, mas foi impossível. O inverno havia sido muito rigoroso após meses de invasões, lutas e saques. Muitos da aldeia haviam morrido nos combates ou em consequência dos ferimentos de combate, alguns outros de fome... As colheitas foram saqueadas e havia muita fome. Tanta que algumas dezenas de pessoas, na aldeia e em vários lugares das proximidades, se deram as mãos e se lançaram em precipícios. Mãe e pai de Alfred resistiram. Esquálidos mas resistiram. No verão, o bebê nasceu e sua mãe morreu.
conhecera seus pais. Por isso não sabia que era filho de camponeses que haviam vivido do outro lado da ilha onde, no começo do mês de julho, nasceu. Sua mãe morreu poucos dias depois. Seu pai ainda tentou ficar mais tempo com ele, mas foi impossível. O inverno havia sido muito rigoroso após meses de invasões, lutas e saques. Muitos da aldeia haviam morrido nos combates ou em consequência dos ferimentos de combate, alguns outros de fome... As colheitas foram saqueadas e havia muita fome. Tanta que algumas dezenas de pessoas, na aldeia e em vários lugares das proximidades, se deram as mãos e se lançaram em precipícios. Mãe e pai de Alfred resistiram. Esquálidos mas resistiram. No verão, o bebê nasceu e sua mãe morreu.
Já era quase metade de julho e os grãos ainda
não estavam prontos para a colheita. Essa era uma das piores épocas para os
camponeses. As reservas do inverno haviam acabado, e o momento da colheita
ainda não havia chegado. Era uma época de grandes penúrias conhecida como ’o
hiato da fome’. Como não havia trigo suficiente para o pão, base da alimentação
do camponês, 90 % da população, muitos adicionavam toda sorte de ‘nutrientes’
que pudessem ‘engrossar’ o trigo para o pão. Os mais comuns desses ‘nutrientes’
eram cânhamo, papoulas e joio. Assados com o trigo produziam o chamado ‘pão da
loucura’ que, como o seu nome já diz, provocava estados de alteração de consciência
e sensibilidade que ajudavam a ‘esquecer’ a fome de quem o consumia e, não
raras vezes, produzia formas variadas de histerias coletivas.
Foi após comer nacos do pão da loucura que o
pai de Alfred se decidiu. Não tinha condições de criar seu filho, nem ele nem
ninguém da aldeia. Por isso, quando o dia raiou, seu pai fez o que muitas pessoas
fizeram naqueles tempos, e que milhares fariam pelos séculos afora (que o digam
João e Maria, Hansel and Gretel): levou seu filho para ser abandonado na
floresta. Quem sabe alguém, alguma alma caridosa pudesse encontrá-lo e criá-lo?
Mas, e se algum urso, raposa ou lobo (e posteriormente alguma bruxa, que o
digam novamente Hünsel und Gretel, Hans og Grete) o visse primeiro? O pai de
Alfredo não sentia o menor remorso ante essa possibilidade. Ser devorado por
algum animal era muito melhor do que o menino passaria e sentiria se com ele ficasse.
O pai deixou o filho numa clareira enxuta da
floresta pantanosa, atravessou as portas do mundo e mergulhou no círculo de
chamas ao qual se agarrara para viver... Foi ajoelhar-se diante de um rico,
poderoso e nobre senhor do norte da ilha, oferecendo, simbolicamente, sua
cabeça às suas mãos em troca de comida. Sua proposta foi aceita e recebeu uma vara
comprida com ferrão na ponta como símbolo do contrato estabelecido. O pai de
Alfred tinha agora uma nova condição social: era agora, e para sempre,
inclusive mulher e filhos se os viesse a ter, um escravo. Como escravo que era
tinha, agora e para sempre, um senhor na Terra até o dia em que o Senhor dos
Céus viesse resgatá-lo.
...
Enquanto Alfred nascia na Inglaterra, na
Noruega nascia Olaf. Seu avô, de quem herdara o nome e que falecera
recentemente, fora ‘chefe’ da sua aldeia, que tinha perto 100 pessoas. Seu pai
fora um berserker, um guerreiro de Odin, um homem-lobo. Poderoso guerreiro
morto em combate cujas façanhas eram narradas repetidas vezes por sua gente. Isso
dava a dimensão de sua importância e valor entre seu povo.
No mesmo inverno em que a aldeia de Alfred
padecia de fome, a aldeia de Olaf vicejava: as colheitas haviam sido fartas, e
bem colhidas; o feno estava seco e armazenado; parte do gado já havia sido
abatida e salgada (assim como os pescados secos), e a outra já estava
devidamente recolhida e abrigada para o inverno; a maioria dos guerreiros já
havia voltado com fartos e ricos botins pilhados no norte da Europa. Foi nesse momento que seus pais se casaram. Sua
mãe, Hetha Olafsdottir (Hetha Filha de Olaf), ainda guardava a armação da ‘coroa
de flores’ de suas núpcias, o ‘martelo de Thor’ que estivera sob seu leito nupcial,
e ainda trazia na cintura as chaves da casa que, já com quase treze anos de
idade, recebeu do marido no dia do seu casamento em meados de outubro. As
chaves eram o símbolo de sua autoridade. Desde então era a dona do ‘interior da
casa’, vigia do ‘fogo do lar’. Altiva, valorosa, valente, ninguém lhe disputava
essa condição. Como as demais mulheres casadas, era a guardiã das tradições das
famílias, tanto das suas como as do seu marido. Tinha a missão de defender a
honra do clã e por isso estava sempre rememorando as lutas, as alianças, as
rivalidades, os compromissos e, se fosse o caso, instigando seus parentes às
vinganças e ‘prestações de contas’ com relação a outros clãs. Nas sociedades
nórdicas a família controlava dos menores aos maiores detalhes da vida
comunitária, desde os religiosos até os militares, e as opiniões, observações e
sugestões das mulheres eram sempre consideradas com muito respeito.
Olaf também não conhecera o pai que morreu
quando ele ia completar um ano de vida. Mas seu clã era próspero e sua mãe o
criou com especial dedicação. Cedo se interessou pela construção de barcos, e
se divertia com amigos aprendendo a fazer e a pintar ‘carrancas de drakars’, as
imagens de furiosos dragões que ‘enfeitavam’ os seus barcos de guerra, os
drakars. No inverno, quando algumas noites duram mais de dezesseis horas e o
frio chega a ser mortal se há descuido, sua gente tinha que ficar muito mais horas
dentro de ‘casa’. Olaf ouvia atentamente as histórias que, então, as famílias
narravam, as canções que cantavam, os poemas que recitavam e as representações
que faziam diante das fogueiras nas horas escuras das longas manhãs. Aprendeu a
contá-las, cantá-las, recitá-las e representá-las. Fazia isso com enorme
empatia.
No verão, quando os dias ficam mais longos e
os guerreiros partiam para as incursões, Olaf tinha rígidos treinamentos onde
os principais valores de sobrevivência física eram transmitidos aos mais
jovens. Tinha mais tempo para aprender as coisas da guerra como manejar espadas
e aprender a fazê-las, assim como a arcos e flechas; arremessar lanças e machados
de combate; defender-se com escudos e a usar da voz para causar terror. Desde
menino tinha poderosa voz e seus gritos e urros nos treinamentos de combate
prenunciavam o feroz guerreiro que logo viria a ser.
...
Alfred também tinha voz poderosa. Fora
recolhido na floresta por monges copistas que desciam da Escócia e cresceu em
um mosteiro no sul da ilha, na Cornualha. Não teve vida muito fácil, mas à
vista do que a gente de sua aldeia passava e passaria, por duas gerações
seguidas, não podia estar em melhor lugar.
Cresceu entre os monges, cedo aprendeu o
latim, e a ler e escrever. Esperto, aprendeu rapidamente os 127 sinais da
linguagem de sinais com a qual os monges se comunicavam, já que deviam, bem
mais que eventualmente, permanecer longos períodos em silêncio. Aprendeu as
tarefas da agricultura: preparar a terra, semear, segar, colher, armazenar... Tinha
especial predileção por animais. Entre vacas, porcos, cabras, ovelhas, e
galinhas, com os quais todos conviviam dentro das suas casas - tanto nas
cidades, quanto nas aldeias - Alfred se ‘entendia’ melhor com os mais arredios
e esquivos: abelhas e gatos. Por abelhas tinha uma espécie de imã que o tornava
exímio ‘achador’ de colmeias além de excelente criador. Cedo aprendeu a usar o
própolis como elemento de cura. Mas foi como ‘fabricante’ de velas de cera de
abelhas que, inicialmente, se destacou no monastério. As velas que fazia davam
mais luminosidade, perfumavam e tinham luz firme. Os monges copistas, como eram
quase todos os daquele monastério, tinham a ‘vela de abelhas de Alfred’ como
uma benção divina e, naturalmente, a Alfred como um ser abençoado. Aos 12 anos
o noviço já tinha, no mosteiro, uma pequena ‘unidade de produção’ que envolvia
duas anciãs, que também cuidavam da lavanderia, e um jovem casal de camponeses
que cuidavam das hortaliças no mosteiro. Suas velas eram rapidamente comercializadas
e iluminavam missas e igrejas, festas e castelos. Através da enorme rede de comunicações que os
monges cristãos conseguiram criar naqueles anos, por onde circulavam os maiores
tesouros materiais e imateriais - ouro, prata, pedras preciosas, livros, ideias,
religiões, canções, filosofias, etc. - também circularam as ‘velas de abelhas
de Alfred’, que levaram suas luzes a muitos mosteiros e abadias no continente:
das Galias às Germanias; da Galícia à Rus de Kiev; de Roma a Constantinopla. Até
mesmo, diziam, perfumaram e iluminaram os aposentos do santo Padre, o Papa.
Na verdade, Alfred era ‘do povo’. Gostava de
estar com a gente das aldeias, participar de suas vidas, das caçadas, das
festas, saborear suas comidas. Ainda noviço, gostava de estar entre os
serviçais do mosteiro, provocando as narrações de suas histórias, das suas
relações de parentesco, instigando e ouvindo a narração das suas genealogias
que, quando minuciosa e pacientemente deslindadas nas longas e escuras manhãs
dos invernos gelados, podiam ir desde os reis, guerreiros e santos mais
recentes, como Agostinho, Uther Pequeno Dragão e Arthur, até longínquos personagens
reais, míticos ou bíblicos como Vercingetórix e Boadiceia ou Matusalém... Tudo
isso narrado em linguagem fascinante, sucinta e objetiva como era a do seu
povo. Por isso, já quando monge copista, Alfred veio a ‘copiar’ essas histórias
e muitas outras em latim e em ‘englisc’, a língua mais falada pelos
anglo-saxões na Inglaterra por volta dos anos 1000.
...
Ao verem-se, iluminados pelas luzes dos raios que reinavam na noite de tempestades...
Olaf não temia a morte. Pode se dizer que a desejava e a chamava de vez em quando. Era guerreiro viking. Polivalente, remava, caçava, cantava, recitava, lutava, sempre com maestria. Nas suas terras não havia templos religiosos como os dos cristãos, mas era profundamente religioso. Acreditava com todas as forças de sua vontade que um dia seria recebido por Odin no Vallhala e que lutaria a seu lado no Ragnarok, o dia da Batalha Final, e para isso vivia. E aprendia. E guerreava. E por esse dia morreria.
Alfred também não temia a morte, pode se dizer que até mesmo a desejava e a chamava de vez em quando. Já era cantor do coral do monastério. Um fervoroso monge-cantor. Por isso, acreditava com todas as forças de sua vontade que um dia a voz de sua alma ecoaria com as vozes dos anjos e santos no Coral Celestial, o corpo de cantores que alegrava a vida no Paraíso. Acreditava piamente que cantaria ao lado do Espírito Santo e para isso vivia. E aprendia. E ensinava. E por esse dia morreria.
Quod volumus, facile
credemus.
Facilmente cremos naquilo que desejamos.
Macte animo!!!generose puer sic itur ad
astra...Coragem, jovem! É assim que se sobe aos céus...
Continua...
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