Foi quando chegou à cidade um desconhecido
tio da menina, irmão do pai que ela também não conhecia.
A mãe vestiu-lhe o melhor vestido, arrumou-lhe os cabelos com uma tiara, examinou-lhes as unhas – estavam limpas – levou-a ao hotel onde o tio hospedara-se. Até lá não foi. Ficou na esquina, a pouca distância.
– Você chega lá, diz que quer falar com o tio Armando. Armando Fernandes. Diga-lhe que já está na 5ª série e que este ano vai estudar no colégio das freiras. É uma escola melhor e que arranjamos uma bolsa para seus estudos. Não fale que você tem uma irmã. Não lhe conte nada de nossa vida. Se ele perguntar, diga-lhe que quer o uniforme e o material escolar. Fale corretamente, com educação e de cabeça levantada. Agora vá, eu fico aqui esperando você.
A filha criou-se sem o pai. O casamento não deu certo. Se por causa dos ciúmes da mãe, se por causa da infidelidade do pai... o certo é que não se acertaram. A separação foi rápida, a vida a dois não vingou. Para ele, outra cidade, outra vida, nem conheceu a menina. Nunca mais se encontraram. Crescia ouvindo a mãe a dizer que o pai era um desgraçado, nunca quis saber da filha, mas que era mulher suficiente para criá-la sozinha.
Mas não era tão fácil criar uma filha sozinha. A armadura de heroína, que ela mesma inventara, começou a pesar-lhe a cada dia. A filha crescendo, precisando de tudo, o salário de diarista curto.
Arranjou outro marido. Outra filha. Outra separação. Agora eram duas pra criar.
Assim, quando recebeu o recado do ex-cunhado de que estava na cidade, por dois ou três dias, e que queria conhecer a sobrinha, pensou que os santos resolveram ajudá-la. O uniforme da filha era caro e exigido desde os primeiros dias de aula. Depois da primeira semana, sem ele, o aluno voltava da porta do colégio. E os livros, cadernos e toda a parafernália que os professores exigem? Sabia que o ex-cunhado era uma pessoa generosa, muito diferente do irmão. Só não queria que ele soubesse dos desencontros e desacertos de sua vida, outra união desfeita, como se ela não tivesse as qualidades necessárias para manter um relacionamento a dois. Além disso, envergonhava-se de sua aparência atual, cabelos maltratados, mãos ásperas. Certamente, mais cedo ou mais tarde, ele contaria para o irmão e isso ela não queria. Por isso não foi encontrá-lo no hotel e, por isso mesmo, as recomendações à filha.
O tio era alto, muito branco e calvo. Na opinião da menina, muito bonito. Recebeu-a com alegria e mesmo sem muitos afagos, abraçou-a, puxou conversa. Qual a idade? Onze anos? Já na 5ª série? Parece muito com sua mãe, sabia?
Ela sabia.
Respostas lacônicas, com muita reserva e timidez. Na ponta da língua, a pergunta do presente. Na cabeça, a recomendação da mãe: não conte nada de nossas vidas.
Ele mostrou-lhe uma fotografia do pai: Por fotografia já o conhecia, disse-lhe. Tem em casa a fotografia do casamento. O tio ficou, de repente, mais sério.
– Sabe, sua avó faleceu faz poucos dias. Ela queria muito conhecer você.
– Morreu?
O coraçãozinho não doeu nada. Mais conversa, mais conversa, até que o tio lhe faz a tão esperada pergunta.
– Então, minha sobrinha, o que você quer de presente do tio Armando?
Calou-se, olhou o bico dos sapatos, envergonhada. Lembrou-se das palavras da mãe: – foi Deus quem te mandou esse tio.
– Então, querida, o que você quer?
Criou coragem. Era uma oportunidade única. Ginásio ou não, queria ter o que nunca teve.
– Uma boneca. Uma boneca grande, de cabelo louro e que abra e feche os olhos.
– Uma boneca?
– É – responde com convicção. – Uma para mim e outra para minha irmã menor. Sabe, o pai dela também foi embora!
As duas bonecas foram compradas na loja próxima ao hotel. O tio nem perguntou o preço.
SOUZA, Robélia Fernandes. Contos esparsos. Rio Branco: Estrela Gráfica & Editora, 2009. p.30-32
A mãe vestiu-lhe o melhor vestido, arrumou-lhe os cabelos com uma tiara, examinou-lhes as unhas – estavam limpas – levou-a ao hotel onde o tio hospedara-se. Até lá não foi. Ficou na esquina, a pouca distância.
– Você chega lá, diz que quer falar com o tio Armando. Armando Fernandes. Diga-lhe que já está na 5ª série e que este ano vai estudar no colégio das freiras. É uma escola melhor e que arranjamos uma bolsa para seus estudos. Não fale que você tem uma irmã. Não lhe conte nada de nossa vida. Se ele perguntar, diga-lhe que quer o uniforme e o material escolar. Fale corretamente, com educação e de cabeça levantada. Agora vá, eu fico aqui esperando você.
A filha criou-se sem o pai. O casamento não deu certo. Se por causa dos ciúmes da mãe, se por causa da infidelidade do pai... o certo é que não se acertaram. A separação foi rápida, a vida a dois não vingou. Para ele, outra cidade, outra vida, nem conheceu a menina. Nunca mais se encontraram. Crescia ouvindo a mãe a dizer que o pai era um desgraçado, nunca quis saber da filha, mas que era mulher suficiente para criá-la sozinha.
Mas não era tão fácil criar uma filha sozinha. A armadura de heroína, que ela mesma inventara, começou a pesar-lhe a cada dia. A filha crescendo, precisando de tudo, o salário de diarista curto.
Arranjou outro marido. Outra filha. Outra separação. Agora eram duas pra criar.
Assim, quando recebeu o recado do ex-cunhado de que estava na cidade, por dois ou três dias, e que queria conhecer a sobrinha, pensou que os santos resolveram ajudá-la. O uniforme da filha era caro e exigido desde os primeiros dias de aula. Depois da primeira semana, sem ele, o aluno voltava da porta do colégio. E os livros, cadernos e toda a parafernália que os professores exigem? Sabia que o ex-cunhado era uma pessoa generosa, muito diferente do irmão. Só não queria que ele soubesse dos desencontros e desacertos de sua vida, outra união desfeita, como se ela não tivesse as qualidades necessárias para manter um relacionamento a dois. Além disso, envergonhava-se de sua aparência atual, cabelos maltratados, mãos ásperas. Certamente, mais cedo ou mais tarde, ele contaria para o irmão e isso ela não queria. Por isso não foi encontrá-lo no hotel e, por isso mesmo, as recomendações à filha.
O tio era alto, muito branco e calvo. Na opinião da menina, muito bonito. Recebeu-a com alegria e mesmo sem muitos afagos, abraçou-a, puxou conversa. Qual a idade? Onze anos? Já na 5ª série? Parece muito com sua mãe, sabia?
Ela sabia.
Respostas lacônicas, com muita reserva e timidez. Na ponta da língua, a pergunta do presente. Na cabeça, a recomendação da mãe: não conte nada de nossas vidas.
Ele mostrou-lhe uma fotografia do pai: Por fotografia já o conhecia, disse-lhe. Tem em casa a fotografia do casamento. O tio ficou, de repente, mais sério.
– Sabe, sua avó faleceu faz poucos dias. Ela queria muito conhecer você.
– Morreu?
O coraçãozinho não doeu nada. Mais conversa, mais conversa, até que o tio lhe faz a tão esperada pergunta.
– Então, minha sobrinha, o que você quer de presente do tio Armando?
Calou-se, olhou o bico dos sapatos, envergonhada. Lembrou-se das palavras da mãe: – foi Deus quem te mandou esse tio.
– Então, querida, o que você quer?
Criou coragem. Era uma oportunidade única. Ginásio ou não, queria ter o que nunca teve.
– Uma boneca. Uma boneca grande, de cabelo louro e que abra e feche os olhos.
– Uma boneca?
– É – responde com convicção. – Uma para mim e outra para minha irmã menor. Sabe, o pai dela também foi embora!
As duas bonecas foram compradas na loja próxima ao hotel. O tio nem perguntou o preço.
SOUZA, Robélia Fernandes. Contos esparsos. Rio Branco: Estrela Gráfica & Editora, 2009. p.30-32
2 comentários:
Construção textual que nos prende à leitura, de tão bela, de tão real. - Quem de nós, de origem humilde, não viveu ou não tem, na família de muitos irmãos, uma história assim?
Construção textual que nos prende à leitura, de tão bela, de tão real. - Quem de nós, de origem humilde, não viveu ou não tem, na família de muitos irmãos, uma história assim?
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