terça-feira, 21 de junho de 2016

POEMA DA SERINGUEIRA

Pereira da Silva (1890-1973)

(...) seringueira, pobre árvore sofredora, votada pela cobiça humana a eterno martírio! Manará constante teu látex de ouro das mil feridas, que te abrir o ferro na uberdade dos flancos, enquanto acalentar o coração do homem o louro sonho de Creso, ou dominar-lhe o pensamento o desvairado anseio das doçuras satíricas.
João Leda
Foto: blog Ambiente Acreano

Lá, na tessitura da floresta primitiva,
Onde os olhos de Deus chegam já tão cansados,
A seringueira é a dadivosa mãe caritativa
Dos flagelados,
Dos desesperados
Bandeirantes da fome e da desgraça.

Vede, como é humana! Vede!
Lá está, oferecendo os seios fartos a quem passa,
Maltrapilha e sem nome,
Pela estrada.
– Ela dá de comer a quem tem fome!
– Ela dá de beber a quem tem sede!

Há de ter alma e coração como as mulheres boas
E fecundas. Mães carinhosas
Que amamentaram muitos filhos pequeninos.
E as outras árvores, na mata perfumada,
Devem beijar a frança a trifólia benfazeja,
Linda e seivosa irmã das casteloas...

Aos primeiros rubores matutinos
Quando às protofonias de mil vozes
Ferozes,
Sucedem os pizzicatos saltitantes
Dos descantes
Dos pássaros despertos,
A hévea, de folhas alternas, pecioladas,
Digitadas, trifoliadas,
Que a luz equatorial abraça, e afaga, e beija,
Ouve o rumor de passos vigorosos. E escuta.

Anda alguém a tatear nos caminhos incertos
Da mata bruta.

– Quem virá?
– Quem será?

É o seringueiro! É o homem moreno, caldeado
Pelo sol nordestino,
– Misto de trovador e de herói espartano –
Que sofre, dentro da selva, a nostalgia das caatingas.
E contemplando a bruteza dos rios
tem saudade dos “verdes mares bravios”
De sua terra. É o seringueiro,
Que vem chegando para o “corte”,
Vencendo o varadouro emaranhado,
Depois de atravessar igapós e restingas.
Uma faca de mato, um rifle, um machadinho,
Os músculos de aço, o peito forte,
O olhar ligeiro,
Ei-lo que vem trauteando,
De mansinho,
Uma cantiga langorosa do sertão.
Ilustração do livro "O seringal e o seringueiro" (1956), de Arthur Cezar. F. Reis.
E a Árvore-Mãe, então, recebe-o, transfigurada,
Para a glória sensual da martirização.
E abençoa o verdugo seringueiro
Com a mais seráficas das beatitudes.

Ao clarear a manhã, soberbamente nua,
Santamente serena,
Cheia da piedade nazarena
do perdão,
A cada golpe do machadinho certeiro,
A Árvore-deusa do país verdacho dos paludes,
Há de dizer sorrindo,
E de sorrir gemendo
E de gemer cantando:

“Homem! Leva meu leite! A minha seiva é tua!
Ela não vale por uma gota da saudade
Que heroicamente andas carpindo,
Na bruteza cruel destas matas, correndo,
Contra as rudes caudais desses rios, lutando!
Leva a minha vida! é o que te posso dar:
– Meu sangue brancacento, minha saúde e mocidade.

Quero que volte a alegria
À tua face!
E que a fortuna te sorria!
E que a felicidade não seja um bem fugace
No teu lar!...

Fere! E que cada ferida, santificada
Pelo líquido nevado vindo de minhas entranhas,
Seja o manancial da ventura sonhada,
A fonte genetriz das sensações estranhas
Que agitam os teus sentidos,
Na hora angustiada
Dos desalentos, das febres, nos horrores
Do teu abandono
Num pobre tapiri, onde as tristezas e pavores
Povoam de fantasmas o teu sono!...

Fere! E que nunca mais os teus gemidos
Sejam ouvidos!
Que as tigelinhas embutidas no meu tronco fiquem cheias
Do ouro latescente que jorra de minhas veias,
E que, afinal, de tão cheias, transbordem!”

“Oh! Quanto sou feliz, meu filho! – pela alegria
De ver-te a dominar a fereza, a desordem
Hidroflorificada destas zonas,
Onde a brutalidade das coisas circundantes
É um heptacórdio selvagem de beleza e de poesia!...”

... E o rei dos bandeirantes,
O homem moreno e caldeado pelo sol nordestino,
Domador dos sertões palustres do Amazonas,
Vai cortando,
Vai golpeando
A miraculosa seringueira abnegada,
A Árvore-Mulher martirizada,
Que se entrega para o gozo sofrer, todo o verão,
O seu fadário, o sacrifício muito humano
De ser lanceada
Pelo bem
De alguém.

... E o seringueiro vai pela estrada torcicoleante,
Com a esperança dançando dentro da alma,
E o balde cheio de leite... De ouro!
Vai sonhando com a fortuna. A baixada
Próxima. O retorno à gleba nativa. A vida calma
Do sertão,
Onde ficou, soluçando, uma velhinha de cabelos de prata.
Na face albicremada do látex, a miragem.

E o seringueiro, alucinado, crê.

Na crepitação das chamas
De seu sonho, há o fascínio de um tesouro
Encontrado na selva e a linda imagem
Da felicidade perdida lhe acenando!

Mas, oh! desilusão de uma crença insensata!
Tudo afinal é a trama, o engano ledo
De um bruxedo
Da Mãe-da-Mata.

SILVA, Pereira da. Poemas amazônicos. Manaus: Valer, 1998. p.181-188

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“Francisco PEREIRA DA SILVA nasceu em 7 de setembro de 1890, no povoado de Guamaré, município de Macau, no Rio Grande do Norte, mudando-se com a família, ainda menino, para a Amazônia. Iniciou a vida pública ainda no Acre, ainda território federal, onde foi fiscal de rendas federais no Alto Juruá, diretor do jornal oficial da Prefeitura Federal de Cruzeiro do Sul, Promotor Público interino e Prefeito Municipal de Tarauacá, no período de 1911 a 1921. Chegou ao Amazonas em 1924, nomeado Secretário da Chefatura de Polícia, cargo que ocupou por pouco tempo. Em 1930 foi aclamado membro da Junta Governativa Revolucionária do Amazonas e, após a extinção desta, nomeado Secretário Geral do Estado, permanecendo no cargo por dois anos, isto é, até 1932, quando entrou em divergência com o Governo do Estado, na fase intervencionista transferindo-se para o Rio de Janeiro, exercendo a advocacia. Pereira da Silva cumpriu quatro legislaturas como Deputado Federal pelo Amazonas. Foi o idealizador do Projeto da Zona Franca de Manaus. Faleceu em 10 de setembro de 1973, aos 83 anos, em Manaus, sendo sepultado no Cemitério São João Batista, túmulo nº 1, quadra 15.” Saiba mais aqui.

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