terça-feira, 12 de setembro de 2017

ATRIBULAÇÃO

Cassiano Ricardo (1895-1974)


I

Abro o meu guarda-sol
contra uma ave de fogo.

Desço a aba do chapéu
sobre os olhos diurnos.

A matéria, ferida,
cospe flores e música.

O menino demônio,
que vendia jornais
nos estribos dos bondes,
virou rosa do reino
da metamorfose.
Há uma poça de sangue
sob o céu de safira.

Durmo em pé, meu enterro
será vertical,
por falta de horizonte.

A hora e a geometria
nunca estão de acordo
na cidade grande.

II

Ó deus cotidiano!
por que não nos concedes,
ao menos, o direito
de escolher a morte
de que desejaríamos
morrer, mais simplesmente?
como quem escolhe
um lírio, entre outras flores,
para um presente?


RICARDO, Cassiano. Melhores Poemas. Seleção Luiza Franco Moreira. São Paulo: Global, 2003. p.97-98

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