Busco
com a força que move os tempos por novas manhãs
Busco
com a força das minhas vísceras
Quando a gente
encontra um bom poeta não é só a poesia que se renova. É o mundo que renasce. O
poeta morre (na palavra) para que seu corpo seja o alimento que faz crescer o
verso. Verso que nasce da morte (as mortes cotidianas) para potencializar a
vida. Poesia é combustível, combustão. O combustível da humanidade. Altamente
infl’amável. É resistência contra a inautencidade. O útil é anestésico. O inútil,
poético. Lobo de rebanhos morais, digitais, superficiais. A poesia rasga a
existência. Põe-nos a nu, a salvo de nós mesmos. Desmascara-nos. Expõe-nos, quando
passamos a vida inteira perdendo-nos, para a salvação e satisfação de patrões e
padrões, que nunca se satisfazem, que nunca nos satisfazem. Anarquias do verso demiúrgico
de universos. Plasmador de novas manhãs,
que nasce do berro do tempo, escondido nas dobras do pensamento.
Quilrio é um poeta
novo fazendo nova a poesia. Para a nossa alegria. Renova-se. Renovando-a,
renovamo-nos. Conhecia-o de nome. Depois, casualmente o encontrei no
ensaio-espetáculo Kanarô, peça do amigo João Veras, que, por sinal, foi quem me
apresentou ao livro e ao poeta. Livro parido com esforço do poeta, numa terra
de minguados recursos e fartos discursos.
Quilrio Farias |
E o lançamento? Lança-se a cada encontro, com cada um que se dispõe a comprar a obra. Nada de meus senhores e meus confrades. A relação é mais próxima, de cumplicidade, de velhos amigos (ainda que sejam novos) que se encontram para prosear, sorrir, cantar, quem sabe, até chorar.
O berro. O berro é memória. História. No seringal, lembro-me, o gado, ao final da tarde, reunia-se em torno da barraca. Berrava pedindo sal. A vaca berrava chamando o bezerro. O bezerro berrava procurando a mãe. Muitos berros. Berro animal. Natural. Necessário. Berros de vida. Berros de morte.
O berro de Quilrio é visceral. Como visceral é a vida arrancada das entranhas frias do cotidiano. É preciso berrar, quando todos os nossos instintos (po’éticos) foram domesticados, adestrados, servidos a tira gosto nos altares ensanguentados dos moralismos assépticos. O berro vem de dentro. Diz da cartografia do ser. O berro é o bicho que em nós habita. O bicho que silenciamos com nossas etiquetas civilizadas, servilizadas. O berro é a vida retomando o seu lugar. O berro é o que somos. E o que somos não tem nome.
Por isso Quilrio berra. Berra poeticamente. Berra para inaugurar o amanhecer. Amanhecer sufocado pela falta de horizonte, pelo peito vazio, pelas verdades contaminadas, a mastigar ressentimentos, e vomitar nadas num estômago de culpas. Berra contra a mediocridade, num tempo de futilidades, onde se come linhaça e se faz pose pr’o nada.
Berro de ação. Contestação. Berro dos perdedores, da escória, dos párias que a espada dos vencedores esmagou. A vida extrapola as cartilhas, os títulos, os sucessos. Afinal, a vida não cabe dentro da história dos vencedores. Talvez seja melhor buscar na injúria das ruas a solidão que ficou em pé. Deixar-se cair na arapuca do silêncio. E assim, mergulhados, banhar-se inteiro por palavras. Deixar o verso fermentar para preparar o pão que alimenta a fome (de amor e de beleza) da humanidade. Habitar o silêncio quando todos se dissolvem nas vozes alheias. Deixar que a tarde procrie os pássaros. Que a vida se reencontre. Floresça. Seja.
O berro arrancado das entranhas, arrancando as máscaras, as máquinas de fazer iguais, no tempo, por excelência, dos homens de cabelo penteado a procura de empregos que alimente uma vida morta de sentidos, vazia, que, sem alegria, paga para sorrir, com o peito estufado de certezas e verdades, todas compradas no supermercado da fé e do sucesso. Não ousa tatear a dúvida. Vive de certezas, as certezas do rebanho, o qual segue, cego, servo, até dissolver-se num único berro disforme, sem voz, sem identidade, sem esperanças. Cheio de ranços, remoendo ódios, cavoucando feridas abertas.
O berro ecoa ante o embrutecimento dos seres. Da vida. Dos sonhos. Por isso, todos os dias, o poeta alimenta a fome do rebanho que berra embrutecido. Não alimentar o rebanho com o farto pasto da mediocridade, dos ódios fabricados, dos moralismos forjados. Deixá-lo fenecer para a vida voltar a florescer. Ser. Acreditar na vida, inspirar-se, inspirá-la, pois ela sempre tem algumas páginas em branco sobrando. Escrever uma nova história, não com palavras, mas com a vida, em tintas de amor. Ousar. Explorar novos ares. Novos mares. Ir além do nosso navegar já esperado.
Quilrio fez o berro subir barrancos, nadar nas águas barrentas, navegar em batelão de motor de rabeta, exposto. Como exposta deve ser a felicidade das pequenas coisas que nunca nos pertencerão, por mais que a retivermos. O berro dos embates, dos empates. Se antes, a pata e o berro (do boi), hoje o berro do agronegócio, das monoculturas, da soja. Berro que sufoca todos os outros berros. Berro que nunca calou. Berro contínuo. Por isso o berro da luta, não do luto. Da insistência. Dos velhos tempos que ainda virão.
Por fim, o berro é a tentativa de ser o que somos, com a soma do outro, mas sem a violência das fôrmas e das formas padronizantes. A vida faz festa. Pede orgias para não morrer sufocada pelo concreto puritano. Por isso o nosso bicho, o nosso troço interior berra. Berra para que a gente não perca a festa, que escorre veloz como um repiquete. Que esvai-se, saudoso, como um bom livro de poesia. Mas que nos deixa o gosto na boca, na alma, de quero mais. Mais festa. Mais vida.
Bendito o berro. Bendito o poeta. Bendita a vida.
***
PERSPECTIVA
Quilrio Farias
Eu sou um daqueles
que vaguei calmamente
Numa estrada
improvisada
Buscando um rio
silencioso
Detrás de cada
manhã
E quando tudo
findar
Talvez meu canto
continue no vento
Ou em boca
desconhecida
Almejo somente que
tenha força para mover
A poeira vaga da
luz
Dos velhos tempos
que ainda virão
EMBATE
Quilrio Farias
Desce pro embate
Serve a tua carne
Carente
Bêbada
e só
No prato o berro
Que deixou no meio
do pasto
O verso que já voou
pássaro
O verso que sonhou
sombra de árvore
O verso humano que
deixou de ser
Agora é máquina que
faz ruído
Som que propaga
entre histórias de “empates”
E treme a terra pra
acordar a soja
MEMÓRIA
Quilrio Farias
Meu tio tinha um
batelão colorido fazedor de banzeiro
Batizou com o nome
de minha Avó
Dulcirene
Eu menino
estranhava aquele motor exposto
Diferente dos
carros guiados pelos homens
Minha Avó cedo foi
morar nas margens de um rio de vento
O BERRO
Quilrio Farias
A noite e sua
vertigem
Um sol de mentira
Brilha para a
maioria
O rebanho segue
Um verso sem
destino
Canta várias
promessas
O poeta morre
calado
O rebanho segue
O rebanho cego
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