sábado, 2 de setembro de 2017

O QUIRIRI

Luiz Cláudio de Castro (1909-1999)


Primeiro, era um caboclo que descia a correnteza, remando numa igarité, depois, um navio; e o banzeiro vinha roer a terra do barranco. Adiante, onde a vista dava, uma fímbria verde que ia esmaecendo e tornava a ficar da mesma cor, parecia fechar o enorme lençol d’água.
– Mãe, é ali que o rio acaba?
– Não; ele acaba no mar. Dá muitas voltas antes de chegar lá.
Era um mistério. O fato era que a igarité e o navio seguiam naquele rumo misterioso, até que desapareciam.
– Menino, sai da água; quer viver o dia inteiro na beira do rio?
Os vizinhos já andavam reprovando esses alentos maternos: “Dona Dica quer criar o filho no rabo da saia; não vê que está prejudicando o futuro dele”. Que ficasse onde estava, se quisesse, até cansar. Mas ele não cansava. Era tão bom ver a água correndo ali, exatamente ali naquele remanso, mais clara, mais tranquila, refletindo as folhagens das árvores.
– Joãozinho, sobe este barranco, menino sem juízo!
E dizia para as mulheres que lavavam roupa ali, nas pranchas de cedro:
– Vigiem esse Não-Sei-Que-Diga, pelo amor de Deus. Acaba carregado por um boto.
Muitos olhos ficavam a vigiá-lo. Mas acabavam cansado porque ou tomavam conta dele ou da roupa estendida pela canarana, que o gado podia sujar.
– Ei, vaca! Sai daí, Malhada da peste!
E o rio corria manso, faiscando. Não sabia de onde vinha (para que saber?) e desconfiava apenas de seu destino: perder-se num mundo d’água que não tinha fim, o mar, como chamavam. Não gostava de pensar nisso; sentia-se perturbado. Como é que não acabava essa água toda? Às vezes ficava triste, imaginando que um rio tão bonito fosse terminar engolido pelo mar. Devia ser mentira.
Mas não era mentira que os botos saíam do fundo, em noites de luar, para namorar as moças donzelas. Como os invejava! Chegava mesmo a cantar, para que eles boiassem.
“Aramaçá, peixinho gostoso, lá do fundo do grotão; sutê Camocim, sutê rangama, sutê camocim, sutê ragama...”
E a mãe vinha logo atrapalhar tudo:
– Não chame boto, menino, que isso faz mal. Olhe como eles já estão boiando.
De fato; era só cantar, os lombos apareciam, luzindo ao sol. Bufavam, dando cambalhotas. Como os invejava! Saíam ao clarão da lua, como príncipes de tanta beleza que apaixonavam as moças mais bonitas e cavilosas. Quando dava meia noite, fugiam carregando-as para o fundo do rio. Um mundo submerso oferecia castigos medonhos às pobres moças sem juízo. Um deles era a sede que as torturava no meio de tanta água. Os próprios botos tinham os seus tormentos de seres encantados, ou demônios. E a boa mãe terminava as histórias dizendo que ele só as compreenderia bem quando crescesse.
Ele não era boto nem era homem, mas fingia que tinha mulher. Corria então a procurá-la; era uma bananeira dentro da mata, onde havia grande algazarra de bichos, como se todo o horror do fundo do rio se abrigasse sob a abóboda verde. Cercava-a com os braços amorosamente. Desenhara nela os lábios, os olhos, os seios, o sexo, e a escondia nas moitas, com precauções extremas, para que não fosse disputada pelos outros meninos. Habituado a milhares de sons diferentes, apurava os ouvidos, nessa ocasião, aos mínimos ruídos e, certa vez, foi surpreendido pelo Quiriri. Era essa a palavra estranha: Quiriri, o deus amazônico do silêncio. Não devia ter nome, porém, aquele vazio imenso. Era como se tudo parasse, de repente; nem ele podia caminhar, carregando aquele peso enorme que desabava sobre seus ombros. As vozes da mata sumiam, sob um encanto qualquer. O certo era que as árvores não gemiam mais, nem bulia uma folha. Não se ouvia um pio. A bananeira também era assim, muda e imóvel como uma princesa enfeitiçada.

Depois, tudo recomeçava a viver e ele se sentia saindo de um abismo, com a respiração mais forte e os olhos abertos.
Enxotava, aborrecido, os macacos, pois davam-lhe mal estar, com seus trejeitos e caretas. Não gostava deles porque pareciam gente e bicho, ao mesmo tempo. Tudo ali era assim: impreciso, confuso, difícil de compreender. Preferia ir, de novo, olhar o rio.
Mas a voz de Dona Dica soava longe, amortecida:
– Vem pra casa, seu Não-Sei-Que-Diga! o Quiriri acaba te encantando!
O barranco, porém, era uma beleza, com suas terras caídas... comidas pelas águas que estrondavam pela planície. Como seria um boto feito príncipe?
“Aramaçá, peixinho gostoso, lá do fundo do grotão, sutê camocim...”
– Vôte, Joãozinho, pare com isso! Quando você crescer vai saber o que é a vida. Se você se deixar encantar, está perdido.
Era a impertinência dos conselhos. Então ele se debruçou bem sobre o remanso tranquilo como um lago e, nas águas, apareceu o príncipe. No mesmo instante, o Quiriri deteve todos os ímpetos. A sinfonia ganhou um valor novo: aquela pausa enorme. Os horizontes escureceram com uma barra negra que foi crescendo até cobrir o céu. E um frio mortal, mais cortante do que se saísse da Eternidade, espalhou as cinzas dos séculos sobre a planície. Ele não ouvia mais a voz de Dona Dica.
Quando o invisível maestro vibrou novamente a batuta, ele saiu de sua meditação e pode ver melhor o vulto nas águas. Era a sua própria imagem, envelhecida, traços cansados da longa viagem pelo mundo. Um desvio do caminho é que o levara ali, de volta. Tudo era o mesmo tão persuasivo, e a sepultura de Dona Dica tão tranquila, no barranco, que João recostou a cabeça sonolento, para o repouso que por nada no mundo trocaria mais.

CASTRO, Luiz Cláudio de. Igarités. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1955. p.5-8 

LUIZ CLÁUDIO DE CASTRO E COSTA, nascido no Amazonas, ganhou o Prêmio Vladimir Herzog de 1996, categoria literatura, com o livro Gogó de sola, e em 1999, com o livro o Feitiço da mãe das águas. Ele foi o primeiro secretário de Educação e Cultura do Acre (cassado pelo regime militar em 1964 por ter implantado o método Paulo Freire de alfabetização de adultos). Foi também o primeiro professor de francês naquele Estado. Poliglota, sabia ainda russo, latim e grego. Traduziu direto do russo o livro Crime e Castigo, de Dostoievski. Foi fundador da cadeira nº 17 da Academia Acreana de Letras. Apesar de perder o emprego de professor no regime militar, trabalhou por 10 anos escrevendo textos em São Paulo para documentários de Jean Manzon, conhecido por fazer elogios às realizações e obras do governo. Traduziu também livros sobre Kennedy e Nixon. Faleceu em julho de 1999, em São Paulo, capital.

Nenhum comentário: