Altino Machado (1924-2011)
Com um metro e oitenta e dois, pernas finas,
desengonçado, tamanho de homem e vestido como menino, de calças curtas,
sentia-se ridículo; era o costume da época, só veio a vestir as calças
compridas ao completar catorze anos, para seu alívio e de suas gambás de galgo.
Adorava visitar sua irmã mais velha, morando
com seu marido e filhos em Vila Mariana, sobretudo para brincar com as
sobrinhas, três anjos peraltas, olhos de anil. Tomava dois bondes, descia na
rua Carlos Petit, andava duas quadras a pé e chegava à casa, recebido com
beijos e amor, lanches e petiscos.
Nessa rua, andava atento, olhando para a
janela de um sobrado na qual vira uma menina de tranças negras, presas com fita
vermelha, que o olhara, disparando-lhe o coração. Lá estava ela mais uma vez!
Pequena deusa emoldurada pela esquadria, debruçada no parapeito, sorrindo-lhe
e, quando quebrou a esquina, acenando. Amiudou as visitas. Os pais estranharam
tanta frequência, pois era tão longe; deram-lhe, porém, liberdade porque
afirmava que ia “ajudar a irmã”...
Na ida e na volta, via-a, sorriso inocente na
boca jovem, olhos imensos, prometedores. Arranjava pretextos vários para ir à
esquina, vê-la; de permeio, olho nos olhos da janela... Logo se fez amiga da
casa, quase vizinha; aos 10 anos, foi-lhe fácil cativar as garotas; era só ele
chegar e ela aparecia correndo. Chamava-se Gessy.
Ficavam mudos, trocavam olhares apaixonados,
que falavam muito. Aproveitando as paradas do bonde sacolejante, escrevia-lhe
bilhetinhos, garatujados às pressas, com afeto imenso. Dizia que a amava!
Repetitivos, traduziam bem o seu sentir: te amo, te amo, te amo!
Mal chegava, esperava ansioso oportunidade de
enviar o “novo” bilhete, que lhe queimava o bolso da calça. Ela o apanhava
sorrindo, corria e se trancava no banheiro, para a leitura. Jamais respondeu,
não era preciso. A resposta transparecia no brilho do olhar, na doçura da voz,
no carinho dos gestos.
Na emoção da adolescência, primeiros pelos
despontando, fala de taquara rachada, jeito desajeitado de não ter onde pôr as
mãos, cabeça cheia de fantasia, ele a amava. Pensava nela o dia inteiro: Gessy,
Gessy, Gessy!
Em tarde primaveril, alma florida, ânimo
colorido, chegou à casa; em dois minutos ela, que lhe sorrira da janela,
surgiu, dissimulada.
– Oh! que surpresa!
Vestido branco, meia soquete, sapato pajem,
cortara as tranças, trazia os cabelos repartidos de lado, fivela dourada à
cabeça. Estava linda!
– Deixaram a porta do céu aberta, você fugiu?
– perguntou-lhe embevecido. A resposta foi o mais radioso olhar. O encantamento
começou, o mundo girava, ele levitava, imantado pela menina morena. A sua
Gessy!
Naquele dia feliz, ao lhe dar o papelzinho,
fê-lo de forma estabanada, deixando-o cair. Imediatamente, num reflexo
recíproco, ambos se abaixaram para apanhá-lo; as testas se tocaram, as bocas
rentes, as mãos se encontraram no bilhete tombado. Agachados, frente a frente,
joelhos afastados para equilíbrio do corpo, o vestido curto subiu e ele viu as
grossas coxas luzidias, roliças e, ao fundo, vislumbrou a calcinha branca!
Tudo se seu num átimo, mas foi um momento
eletrizante, eterno. Olharam-se nos olhos e fundiram-se apaixonados. Ao se
levantar, rapidamente, roçou de leve seus lábios no dele e disparou correndo
para ler o papelucho. Poucos meses mais, o cunhado e família se mudaram. Ele
nunca mais viu a Gessy.
Recentemente, quarenta anos passados, voltou
à rua onde moravam seus pais, de onde partia, menino, para aquela casa da irmã,
a ver sua Gessy. Tudo mudado. Apenas poucas árvores, de níveas magnólias, que
colhia para sua mãe, ainda subsistem, resistindo ao desgaste do tempo. Tomou
dois ônibus em demanda da antiga rua Carlos Petit, de recordações
inesquecíveis.
O retorno melancólico, em busca do
encantamento vivido, foi vão. O bom cunhado não mais existe, como inexiste o bonde,
tão romântico. O trecho da Vergueiro desapareceu com as obras do Metrô e a casa
da irmã foi demolida. Só a janela mágica permanece intocada, fechada e vazia,
triste e sombria...
Nada sabe da Gessy. Resta-lhe a esperança de
fazê-la saber que conserva a trança negra recebida na longínqua tarde de
primavera. Que ainda sente o suave roçar dos lábios dela e que o instante de
enlevo e amor ficou, indelével, guardado dentro dele e perdura vivo, até hoje.
Gessy.
MACHADO, Altino. A outra Gessy (contos). São
Paulo: Clube do Livro, 1988. p.174-176
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José Altino Machado nasceu em Taubaté no dia
21 de fevereiro de 1924, e faleceu no dia 09 de maio de 2011 em São Paulo. Era
formado em Direito pela Universidade de São Paulo (1947); foi Governador do
Território do Acre (1961), durante o governo do Presidente Jânio Quadros e
Deputado Federal também pelo Acre, exercendo o mandato de 1963 a 67. Membro da
Academia Paulista de Letras, foi autor de 4 livros, com um total de 82 contos
editados. Além de ter sido conselheiro e presidente do Tribunal de Contas do
município de São Paulo.
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