Era 24 de dezembro,
justo na véspera do aniversário de Jesus. O ano? 81 ou 82, creio eu.
Por volta das 22
horas, quando a cidade já se preparava para as festas, chega um carro oficial à
minha porta, com uma ordem expressa, entregue em mãos pelo motorista. Dali, de
imediato, deveria ir receber um alvará de soltura, já combinado entre meu chefe
e o juiz, sem que houvesse qualquer tipo de procedimento jurídico aplicável.
Tudo feito ‘de boca’, entre autoridades. Tudo elaborado nas coxas, para
libertar um funcionário da empresa, por causa de um rapapé que acabou em grossa
pancadaria e lesão corporal de natureza ‘razoavelmente’ grave.
Fui. De má vontade,
mas fui. Peguei o alvará com o porteiro e rumei para a delegacia onde, segundo
meu chefe, o plantonista estaria esperando.
Que plantonista?
Qual delegado? Na delegacia, além de dois desordeiros e do meu ‘cliente’,
apenas um vigia cochilando numa cadeira caindo aos pedaços.
Acordei-o e
perguntei onde se encontrava a autoridade de plantão. Falei a razão de ali
estar e mostrei o alvará.
- Olhe, dona
doutora, a senhora pode aguardar ali na saleta. O delegado saiu pra jantar e
disse que logo voltaria.
- Muito obrigada!
Dito isto, voltou a
cochilar. Fiquei ali, com cara de paisagem, à espera do delegado. E este,
arrotando peru e cheirando a Sidra Cereser, nó de gravata desfeito, apareceu já
no amanhecer do dia.
‘Cliente’ solto,
ordem cumprida, fui pra casa dormir. Antes, porém, combinei com ele uma solução
para o problema que motivou seu recolhimento ao xadrez. Deixaríamos passar o
dia de Jesus e, logo nas primeiras horas do dia 26, na sede da empresa, nos
encontraríamos e passaríamos a régua no triste caso.
O resumo do
entrevero: meu ‘cliente’ era caçador, tido e reconhecido dos melhores. Fez
amizade com um português, também caçador dos bons e pediu-lhe emprestado uma
cadela de nome Faísca, verdadeira águia na arte de achar e nocautear qualquer
bicho do mato. Do tatu ao veado de capoeira.
De bom grado, pela
amizade, o lusitano cedeu e emprestou a quatro patas, não sem antes avisar que
aguardava a devolução imediata, tão logo retornasse da mata.
O resultado da
caçada foi tão produtivo que meu ‘cliente’, de má fé, além de não cumprir o
trato, passou a evitar o português. Sempre uma desculpa esfarrapada, uma
escapulida, uma mudança de calçada, tudo para não devolver a cadela Faísca. E
nessa demora, também de má fé, patrocinou o acasalamento da boa menina caçadora
com um galgo, igualmente bom de caça. Isso levou meses, é bom que se diga.
Mesmo prenhe, o
português exigiu-a de volta e, com paciência e educação, ainda prometeu ao meu
‘cliente’ que dividiria com ele as crias que escolhesse, machos ou fêmeas, que
fossem. A cadela, a estas alturas, estava bem longe da confusão, escondida na
casa de um parceiro de safadeza do meu ‘cliente’, já parida e alimentando seus
filhotes, sem que o português soubesse do fato.
A ruindade de
caráter do meu ‘cliente’ optou pela negativa e apelou para a ignorância. Daí,
para as vias de fato foi um pulo. Levou a pior o pobre português, até por conta
da idade.
Finalizando o
episódio: no dia, hora e local marcados para a devolução do animal, saí com meu
‘cliente’ para a casa do português. Ele carregava nas mãos uma frágil caixa
onde se encontrava a pivô da confusão. Estava sério, parecendo raivoso. No
trajeto, nada falou, embora eu puxasse conversa e desse-lhe uns conselhos,
coisa bem normal entre patrono e ‘cliente’.
Diante da
residência do ofendido, chamei-o e fomos recebidos de forma séria, porém
amigável. Não houve tempo para mais nada. A caixa foi jogada aos pés do
português. Caiu aberta. Dentro dela, pesada e fria, estava Faísca, esfaqueada
na parte frontal, pouco acima dos olhos.
Meu ‘cliente’ saiu
em disparada e tomou rumo na estrada. Atônitos, eu e o português apenas nos
entreolhamos. Com o animal em seus braços, olhar carinhoso, falou: vou
enterrá-la. E saiu.
Enquanto ele
enterrava Faísca, ali mesmo, enterrei minha carreira na área penal.
Ele chorou a amiga.
Eu chorei a maldade.
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