segunda-feira, 24 de setembro de 2018

FAÍSCA

Leila Jalul

Aconteceu comigo. Houvesse sido contado, dificilmente acreditaria.

Era 24 de dezembro, justo na véspera do aniversário de Jesus. O ano? 81 ou 82, creio eu.

Por volta das 22 horas, quando a cidade já se preparava para as festas, chega um carro oficial à minha porta, com uma ordem expressa, entregue em mãos pelo motorista. Dali, de imediato, deveria ir receber um alvará de soltura, já combinado entre meu chefe e o juiz, sem que houvesse qualquer tipo de procedimento jurídico aplicável. Tudo feito ‘de boca’, entre autoridades. Tudo elaborado nas coxas, para libertar um funcionário da empresa, por causa de um rapapé que acabou em grossa pancadaria e lesão corporal de natureza ‘razoavelmente’ grave.

Fui. De má vontade, mas fui. Peguei o alvará com o porteiro e rumei para a delegacia onde, segundo meu chefe, o plantonista estaria esperando.

Que plantonista? Qual delegado? Na delegacia, além de dois desordeiros e do meu ‘cliente’, apenas um vigia cochilando numa cadeira caindo aos pedaços.

Acordei-o e perguntei onde se encontrava a autoridade de plantão. Falei a razão de ali estar e mostrei o alvará.

- Olhe, dona doutora, a senhora pode aguardar ali na saleta. O delegado saiu pra jantar e disse que logo voltaria.
- Muito obrigada!

Dito isto, voltou a cochilar. Fiquei ali, com cara de paisagem, à espera do delegado. E este, arrotando peru e cheirando a Sidra Cereser, nó de gravata desfeito, apareceu já no amanhecer do dia.

‘Cliente’ solto, ordem cumprida, fui pra casa dormir. Antes, porém, combinei com ele uma solução para o problema que motivou seu recolhimento ao xadrez. Deixaríamos passar o dia de Jesus e, logo nas primeiras horas do dia 26, na sede da empresa, nos encontraríamos e passaríamos a régua no triste caso.

O resumo do entrevero: meu ‘cliente’ era caçador, tido e reconhecido dos melhores. Fez amizade com um português, também caçador dos bons e pediu-lhe emprestado uma cadela de nome Faísca, verdadeira águia na arte de achar e nocautear qualquer bicho do mato. Do tatu ao veado de capoeira.

De bom grado, pela amizade, o lusitano cedeu e emprestou a quatro patas, não sem antes avisar que aguardava a devolução imediata, tão logo retornasse da mata.

O resultado da caçada foi tão produtivo que meu ‘cliente’, de má fé, além de não cumprir o trato, passou a evitar o português. Sempre uma desculpa esfarrapada, uma escapulida, uma mudança de calçada, tudo para não devolver a cadela Faísca. E nessa demora, também de má fé, patrocinou o acasalamento da boa menina caçadora com um galgo, igualmente bom de caça. Isso levou meses, é bom que se diga.

Mesmo prenhe, o português exigiu-a de volta e, com paciência e educação, ainda prometeu ao meu ‘cliente’ que dividiria com ele as crias que escolhesse, machos ou fêmeas, que fossem. A cadela, a estas alturas, estava bem longe da confusão, escondida na casa de um parceiro de safadeza do meu ‘cliente’, já parida e alimentando seus filhotes, sem que o português soubesse do fato.

A ruindade de caráter do meu ‘cliente’ optou pela negativa e apelou para a ignorância. Daí, para as vias de fato foi um pulo. Levou a pior o pobre português, até por conta da idade.
Finalizando o episódio: no dia, hora e local marcados para a devolução do animal, saí com meu ‘cliente’ para a casa do português. Ele carregava nas mãos uma frágil caixa onde se encontrava a pivô da confusão. Estava sério, parecendo raivoso. No trajeto, nada falou, embora eu puxasse conversa e desse-lhe uns conselhos, coisa bem normal entre patrono e ‘cliente’.

Diante da residência do ofendido, chamei-o e fomos recebidos de forma séria, porém amigável. Não houve tempo para mais nada. A caixa foi jogada aos pés do português. Caiu aberta. Dentro dela, pesada e fria, estava Faísca, esfaqueada na parte frontal, pouco acima dos olhos.

Meu ‘cliente’ saiu em disparada e tomou rumo na estrada. Atônitos, eu e o português apenas nos entreolhamos. Com o animal em seus braços, olhar carinhoso, falou: vou enterrá-la. E saiu.

Enquanto ele enterrava Faísca, ali mesmo, enterrei minha carreira na área penal.

Ele chorou a amiga. Eu chorei a maldade.

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