segunda-feira, 24 de setembro de 2018

DA DESCRIÇÃO DE JOHN UNDERHILL, PURITANO DE CONNECTICUT, SOBRE UMA MATANÇA DE ÍNDIOS PEQUOT

Eduardo Galeano (1940-2015)

Eles não sabiam nada de nossa chegada. Estando perto do forte, nos encomendamos a Deus e suplicamos Sua assistência em tão pesada empresa...

Não podemos outra coisa além de admirar a Divina Providência quando nossos soldados, inexperientes no uso das armas, lançaram uma carga tão cerrada que parecia que o dedo de Deus tivesse posto fogo na mecha. Ao romper do dia, a andanada provocou terror nos índios, que estavam profundamente adormecidos, e escutamos os gritos mais cheios de lamento. Se Deus não tivesse preparado os corações nossos para o Seu serviço, teríamos sido movidos à comiseração. Mas havendo Deus nos despojado de piedade, nos dispusemos a cumprir nosso trabalho sem compaixão, considerando o sangue que os índios tinham derramado quando trataram barbaramente e assassinaram a uns trinta de nossos compatriotas. Com nossas espadas na mão direita e nossas carabinas ou mosquetões na mão esquerda, atacamos...

Muitos morreram queimados no forte, outros foram forçados a sair e nossos soldados os recebiam com as pontas das espadas. Caíram homens, mulheres e crianças; os que escapavam de nós caíam nas mãos de nossos índios aliados, que esperavam na retaguarda. Segundo os índios pequot, havia umas quatrocentas almas nesse forte, e nem mesmo cinco conseguiram escapar de nossas mãos. Grande e lastimável foi a visão do sangue para os jovens soldados que nunca tinham estado na guerra, vendo tantas almas que jaziam de boca arfante no chão e tão amontoadas que em algumas partes não se podia passar.

Se poderia perguntar: por que tanta fúria? (Como alguém disse.). Não deveriam os cristãos ter mais clemência e compaixão? E eu respondo recordando a guerra de David. Quando um povo chegou a tal ponto de sangue e pecado contra Deus e o homem, David não respeita as pessoas, e sim as rasga e destroça com sua espada e lhes dá a morte mais terrível. Às vezes as escrituras declaram que as mulheres e as crianças devem perecer junto a seus pais. Às vezes se dão casos diferentes, mas não vamos discutir isso agora. Suficiente luz recebemos da Palavra de Deus, para nossos procederes.

GALEANO, Eduardo. Memória do fogo, 1: nascimentos. Tradução Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p.259-260

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